• *PROPOSTA DO BLOG*

    O Blog Quemdisse visa uma postagem inicial mais ágil, descompromissada e espontânea sobre meus pensamentos e assuntos de momento, para um powterior exame mais aprofundado na “euciclopédia” ProjetoQuem (enciclopédia filosófica e interdisciplinar online, de vocação crítica e social, informativa mas com posicionamentos).

Sobre bolhas de fantasia e rocamboles de carne

Esta não é pra ser uma postagem “bonitinha”. O grotesco também faz parte da vida. E na verdade, não é tão ruim como a palavra pode sugerir à primeira vista.

Certo dia resolvi tentar mostrar uma manobra de skate para o filho de uma amiga (sendo q nunca andei de skate) e, como era previsível, quebrei um osso. Da mão. Escafóide. Pura tolice infantilóide minha. Punho engessado por meses, e isto disparou em mim uma fase de depressão, pela constatação de muitas coisas. Idade, consciência de que não tenho mais tanto tempo de vida, e de que planos para décadas são planos de risco. Fragilidade da vida (e se quebrasse o pescoço na queda?). Imaturidade ainda, depois de tanta idade já vivida! — o que me fez pensar também na instabilidade geral de minha vida.

Mais do que na instabilidade geral da vida, passei a pensar na estabilidade que atingi em condições de vida absolutamente insatisfatórias, absurdas na verdade para tanto tempo de experiência, tempo que poderia ter me levado a caminhos melhores. E como essa experiência  ainda pode levar a caminhos melhores, essa pouca estabilidade atingida (ainda que insatisfatória), se torna ela própria além disso frágil, beirando a instabilidade, em vista de expectativas e planos que às vezes parecem tão próximos, para depois escaparem entre os dedos e correrem muito adiante de mim, e desaparecerem no horizonte, inalcançáveis. Fragilidade não só da vida, mas do modo de vida também (e se fossem as duas mãos, com as quais escrevo, e se perdesse os movimentos nelas?). Tudo isso passei a sentir, com aquele gesso na mão.

Passei a pensar em mim mesmo como um pedaço de carne. Só.

Desses pensamentos, passei naturalmente a dar uma atenção especial ao tema da morte, e a repensar minhas relações com isso. Gente muito querida, agora, em condições de enfrentamento muito mais iminente da morte do que o da maioria de nós, me levou a pensar ainda mais nestas coisas. Mas mesmo antes de tomar conhecimento da situação dessa gente querida e amiga com muito mais razão do que eu para pensar nesses assuntos, já estava com umas minhocas chafurdando meu crânio, quero dizer, com uns questionamentos na cabeça.

O problema era o seguinte: que pedaços de carne não pensam. Passei a pensar no fato de estar pensando… e vivo. O que significa isso?

Pensando, logo me dei conta de que pensar em mim mesmo como um pedaço de carne era apenas uma metáfora, um produto fantasioso desse tal “pensamento”. Afinal, havia quebrado um osso. Osso não é simplesmente carne. Então passei a pensar em mim como um pedaço de carne e ossos… dotado de pensamentos. Só que era insuficiente. Se, por realismo, admito a diferença entre carne e ossos, por que não considerar também o sangue, as veias, as tripas, os tecidos orgânicos todos, os líquidos etc. etc. etc.? Dizer que “sou de carne e osso” continuava a ser uma mera metáfora. Fantasia, e não a realidade material referida diretamente.

Mas será possível fazer referência direta à realidade material, por inteiro, por completo, e de modo absolutamente realista, sem metaforizar, sem fantasiar? Quando me dei conta de que “carne”, “ossos”, “sangue” etc. eram apenas nomes, palavras que criamos, inventamos (fantasiamos) para caracterizar essas coisas como distintas e separadas umas das outras, e que seria perfeitamente possível não fazermos isso, tratarmos tudo com outros termos e outras categorias pelas quais por exemplo sangue e veia seriam uma mesma unidade, com o mesmo nome, tive que, finalmente, desistir de tentar qualquer referência direta à realidade material. Estamos mergulhados no mundo da fantasia, e a única base que uma tal referência poderia ter é a fé: fé materialista, crença na realidade da matéria.

Dei um passo atrás, então, assumindo a condição metafórica de minhas referências à “realidade” material do meu corpo, e adotei apenas uma visão metafórica sintética do conjunto do que parece ser o meu corpo: algo como um rocambole confuso de todas essas coisas, carnes ossos, substâncias pegajosas etc. Só que bem mais esquisito, porque o rocambole tem impulsos eletroquímicos dentro dele, fluxos de substâncias pra lá e pra cá… e se mexe!

Essa imagem, do meu corpo como um rocambole desengonçado de todas essas coisas, e se mexendo, me fez rir da primeira vez que a visualizei.

Flusser, em seu livro Vampyroteuthis Infernalis, nos compara a um polvo gigante. Minha imagem do rocambole tinha algo de moluscóide… será que éramos polvos fora dágua? Alguém já viu um polvo andando fora dágua? — Ah, sim, eles “andam” fora dágua, ou melhor, deslizam, de um jeito todo desengonçado, em geral em busca da água mais próxima, embora possam raramente, sair também pra pegar um siri numa pedra, se estiverem com muita fome. Se moluscos andassem de skate não quebrariam os ossos, né? Quebrei o meu. Não somos moluscos. Temos ossos também, nesse nosso rocambole desengonçado que se move a cada choque eletroquímico que o percorre. A imagem vai ficando cada vez mais esquisita.

(Estou me lembrando, não sei por que, de uma comédia excelente de humor negro, com o Cary Grant, chamada, na tradução brasileira, Esse mundo é um hospício… acho que foi a imagem dos eletrochoques que me fez essa bolha pular do corpo, isto é, que me despertou essa associação!)

E quando percebi que essa imagem, cada vez mais esquisita, me fazia rir… me encantei — a feiúra da imagem tem um belo efeito!

Trata-se do efeito do ridículo grotesco, daquilo que é tão bizarro que, se visualisarmos mentalmente com toda atenção, dá vontade de rir (ou seja, traz… alegria! — uma alegria ácida, é verdade, um riso de autoironia). Comecei a pensar na estética do grotesco popular cômico analisada por M. Bakhtin no seu delicioso livro sobre o ainda mais delicioso Rabelais: Cultura popular na idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais.

Aí fui pensando mais um pouco, aos trancos e barrancos, no ritmo do escárnio: ainda havia o problema dos pensamentos, que diante dessa imagem, se tornavam algo de uma leveza, superficialidade e fragilidade incríveis, algo sem densidade, oco e transparente… bolhas?

De metáfora em metáfora, de risada em risada, de autoironia em autoironia, aonde isso iria me levar? Comecei a ficar… curioso.

Aí fui chegando no seguinte.

Se tudo na mente é um aglomerado de bolhas de fantasia pulando do corpo, e o corpo um rocambole confuso de carnes, tubos e tecidos orgânicos, e líquidos pastosos, tudo grudado em ossos e com uma mini tempestade de choques eletroquímicos na carne dentro de uma caixa de osso chamada crânio nesse rocambole, e os choques correndo pra fora dela pelo resto do corpo… se é isso que somos, e as bolhas da mente brotam de dentro disso, elas devem ter algo a ver com isso, devem trazer nelas alguma marca desse rocambole esquisito todo.

Em resumo: antes eu pensava em mim como um “bloco de carne” com pensamentos… mas a imagem agora é mais a de um rocambole esquisito e confuso mesmo, e com os tais choques. Somos uma coisa esquisitíssima, assim como se o rocambole de carne tivesse sido largado no chão por alguém e se esculhambado todo, alguém que largou talvez pelo susto com os choques (ou por perceber que o rocambole esquisito está vivo, se mexendo). Só que essas duas camadas, a das bolhas e a do rocambole de carne esculhambado, não estão desligadas. As bolhas (provavelmente) carregam alguma coisa do modo como foram produzidas por esse rocambole.

Minha tendência é pensar na conexão dessas bolhas com o rocambole com base nos estudos do pessoal do “novo inconsciente” (que estudam a psicologia com base na neurociência)… — uma boa introdução é o livro Subliminar, de Leonard Mlodinow.

Mas uma coisa é o fato de termos isto: mente, e uma parte dela (provavelmente a imensíssima maior parte) inconsciente. Outra é o modo como essa mente com essa sua muitíssimo maior porção inconsciente se manifesta, a forma que essa tal “mente”, esse conjunto de bolhas fantasiosas, vai assumindo ao longo dos movimentos do rocambole desengonçado enquanto ele ainda está, como dizemos, “vivo”.

Parei de pensar por aí.

 

Mais tarde, quando voltei a pensar nesses assuntos, já estava lendo coisas, e observando comportamentos de pessoas e de coisas, que me levaram a pensar mais longe e tirar toda uma série de conclusões. E se trata mais ou menos do seguinte: a vida social nas condições do capitalismo contemporâneo manipula e remodela essas bolhas segundo interesses de mercado. Google, Facebook, You Tube etc., são instrumentos fortes nessa manipulação, na produção e na coleta do que interessa ao mercado. Quanto a isto, a leitura indicada é Lazzarato, ou diretamente Guattary (que pode muito bem ser combinado com Gross, desde que pensemos Gros como tronco comum anterior (e mais lúcido, ao contrário do que se pensa) ao W. Reich e ao Jung.

A “personalidade” e as condições de previsibilidade por ela fornecidas quando a entendemos a partir de classificações padronizadas, categorias, são o próprio modo de ação desses instrumentos de manipulação mercadológica do consumidor. Manipulação que arranca do consumidor uma produção não paga (mais valia, no caso exorbitantemente maior q a da exploração de “trabalhadores”, que são aliás mais uma categoria manipulada na produção de personalidades…) — pensar “sou da turma dos que se identificam como trabalhadores”, ou “sou cristão”, ou “sou ateu”, sou isto, sou aquilo, já é estar sob o domínio dessa exploração, já é se enquadrar em um perfil de consumo, manipulado para produção de informação.

Quanto às bolhas de fantasia, a crença, a fé (no que quer que seja inclusive a fé atéia e/ou materialista) tem um papel especial: é especialmente alienadora — e quanto mais estável (previsível, e sem liberdade para variações), mais coloca essa alienação a serviço do capitalismo. A crença, ou fé, finca em nós certas categorizações, nos desconecta da possibilidade de lutarmos para tomar em nossas mãos a construção de nossa própria personalidade nos libertando desses mecanismos de mercado.

Os antigos não separavam “crer” de “criar”…empenho emocional e dedicação a algo que se cria, que se inventa, pode ser uma experiência tão intensa quanto “crer” (sob certas circunstâncias inclusive muito mais), no entanto sem nos prender ao objeto de nossa dedicação, mantendo espaço para o senso crítico e a imprevisibilidade do desligamento e do ligamento quando bem o entendermos.

Entre as crenças repensadas em termos de um crer-criar que não se rompe separando essas duas ações, a materialista é especialmente interessante: desde que não caia em simples “fé” acrítica, é desalienante e libertária, porque nos impulsiona no sentido de rompermos as bolhas e buscarmos algo além, e algo além numa direção palpável, sensorialmente captável, que é a direção do nosso corpo… — ainda que seja impossível nos referirmos a esse não-sei-quê palpável e sensível sem fantasia. Nos impulsiona numa aventura carnal rocambolesca que tende inclusive a alterar as próprias bolhas, a recriarmos isso que, de nós, afinal, parece ser tudo o que nos importa realmente (ou seja: a fantasia).

O prazer — que é em última instância, justamente, um mergulhar no nosso sensorial, no nosso físico e corpóreo, no fisicamente tangenciável pelos olhos, narinas, ouvidos, pela língua, pela pele etc… ou ainda pelo que nossa memória e nossos pensamentos podem bela e deliciosamente imitar do sensível, reconstruindo-o na fantasia — o brincar, enfim, e o ousar ir além dos chavões e do previsível, têm um papel importante nisto, nesta luta desalienante e libertária do ir materialmente além.

Tenho me considerado a mim mesmo, se quiserem (PUAH!) me categorizar, como um materialista existencial, ou materialista metafórico.

Os prazeres, vivenciados nesse sentido, são as coisas que tornam a gente mais livre — além de tornarem nossas vivências mais emocionantes, e curiosamente, rebeldes em relação às categorias-chavão sociais, como as do “moribundo” e do “vivo”, por exemplo, categorias-chavões que nos impedem de encarar certas coisas… no fundo, porque encará-las, se conseguíssemos fazê-lo sem cair em depressão, nos tornaria mais livres e menos “coisas” para manipulações mercadológicas.

Não somos todos moribundos e vivíssimos, desde o primeiro dia em que nascemos, afinal? — Ora bolhas!

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