Por João Borba – 18 de junho de 2013 – artigo 1, vol. 2
Uma primeira onda de manifestações públicas da vontade popular brasileira
Há políticos em cargos oficiais em busca de “agitadores” partidários de oposição que, supostamente, devem estar visando a desestabilização do Estado e a ingovernabilidade. É o que se chama de cegueira histórica (para não dizer pura e simples idiotice). Pois caso haja: qualquer possível estopim partidariamente interessado torna-se rapidamente insignificante e mesmo irrelevante em uma mobilização desse porte. Qualquer sociólogo ou historiador sabe disso. (E caso haja tais estopins, e estes acreditem ser de fato “Os Estopins”, estarão sendo ainda mais estupidamente ingênuos quanto a isso do que qualquer assustado político em cargo oficial).
Trata-se do que podemos chamar de uma primeira onda, evidentemente difusa, mas orgânica. É óbvio que grupos políticos procurarão “tomar posse” de um movimento desse porte como se pudessem exprimi-lo em uma versão “oficial” — e já imagino quais tenderiam a fazer isso, porque já houve recentemente o manifestação de grupos pretendendo “oficializar-se” na política com propostas de perfil similar (algo como uma onda palmeirense ou qualquer coisa assim… não sei bem, não é minha onda, sou mais pra corinthiano).
Isto — algum movimento institucionalizado tentando exprimir esse movimento social orgânico — pode ser até interessante em alguma medida. Mas será necessariamente superficial, para não dizer falso. O orgânico não se “oficializa”, não se “institucionaliza”, mesmo quando se pretende colar sobre ele uma casca ou verniz de institucionalização oficial no campo político. E acima de tudo, não se torna “plataforma eleitoral” de quem quer que seja, mesmo que seja alguém realmente interessante. Não importa.
Essa manifestação (ou conjunto de manifestações) é pura e simplesmente uma primeira e ainda muito leve e (por enquanto) desarticulada resposta orgânica da sociedade a uma história que pode ser simplificada mais ou menos assim. Cinco séculos de história, dos quais mais ou menos quatro de escravidão, e ainda mais que isso praticamente sem educação para a população. Duas ditaduras depois disso. E finalmente, um dos mais altos de impostos do mundo combinado a um dos mais altos índices de corrupção do mundo (ou seja, dinheiro que sobe e não desce).
Resumo da história brasileira:
por que as manifestações que se iniciaram em junho de 2013
não têm nada de “inexplicável”
Somos um povo com uma fama ridícula (puramente ideológica) de ser politicamente passivo, quando na verdade tem um histórico tão intenso e denso de revoltas populares de grande porte, tão impressionantemente frequentes em sua história, que o desconhecimento geral disso beira o absurdo. Mas sempre revoltas um tanto irracionais, sempre explosões passionais contra uma rede tão difusa quanto imprecisamente (mas intensamente) percebida de injustiças. Um povo que demonstra uma antena muito sensível para captar o injusto, e uma tendência à inflamação e à revolta fácil. Mas sem muito miolo na sua realização, sem muito tutano posto em atividade… como não podia deixar de ser, tendo uma história de nem dois séculos de ensino básico realmente difundido e duas ditaduras recentes no caminho.
Uma imensa massa de jovens de classes média e média-baixa no Brasil chegou recentemente (muitíssimo recentemente) ao nível universitário, geralmente primeiro ou segundo membro da família que, a muito custo e com muita luta, conseguiu isso. Grande parte dessa massa inflacionou a ocupação de vagas em cursos de direito e administração. Estão, portanto, aprendendo seus direitos, e aprendendo a fazer as contas. Junte-se a esse caldo a paixão do brasileiro pelas redes sociais na internet… pronto!
Esses jovens estão além disso visando, com muita evidência, uma vida que não tem absolutamente nada daquela imagem do “cordeiro manso”, do “rebanho” nietzscheano que as elites corruptas gostam estúpida e cegamente de acalentar. Isso já não era evidente nas pesquisas que mostram o quanto o brasileiro médio ambiciona tornar-se um microempresário ou profissional autônomo, e nunca empregado? Ensine algo de Nietzsche a um brasileiro médio, em linguagem simples e prática, que ele entenda… ele se identifica de imediato, desabrocha com a ideia rapidamente como um rojão. Isto é que é o brasileiro.
E é isso o que está acontecendo. O brasileiro. Só isso. Uma simples primeira onda do óbvio, do resultado dessa história no momento em que a democracia e a educação se iniciam. E ainda tem gente que acha estas nossas manifestações de junho “inexplicáveis”.
Como assim… “inexplicáveis”?!
Uma avaliação quanto ao que essas manifestações
significam na história política do país
No meu entendimento (ou como meu pai gosta de dizer, “na minha fraca pensança”), trata-se de uma primeira e leve onda do que será, a longo prazo, a provável derrubada do que conhecemos no Brasil como uma democracia puramente representativa. Os nossos “lideres políticos oficiais” já fizeram o que bastava para cavarem a própria cova. Falta apenas o pontapé no traseiro. Vão ser forçados a se tornarem os funcionários do povo que deveriam ter sido desde o começo.
No Brasil a democracia participativa (e fortemente participativa) tornou-se historicamente inevitável. Para quando? Imagino que poucas gerações, bem poucas.
Estou sonhando com o que gostaria que acontecesse? — Não, o que eu gostaria é bem mais do que isso. Democracia participativa é só o que me parece direção óbvia dos eventos… é o que estou prevendo para daqui a algumas gerações, procurando ser realista. Para falar do que “quero”, do que “gostaria” — e que acho sinceramente irrealizável no momento — teria que alterar inteiramente a minha linguagem aqui, e falar para muito poucos. Estou falando o quase óbvio, para os ouvidos médios de qualquer brasileiro atento aos acontecimentos.
Repito: hoje, amanhã, depois de amanhã… a democracia puramente representativa no Brasil, salvo alguma reviravolta muito fora do mais evidentemente previsível, está historicamente condenada, com as gerações contadas. Para ser sincero, acho que vou ver o começo disso em vida, digo “gerações” apenas porque conheço (e procuro conter) minha própria tendência para o exagero.
Mas o fato, o real, é que o ritmo dessas coisas não é sempre previsível. E minha avaliação, reconheço, é bastante subjetiva. Mas estou confiando no que digo. Duvido que demorem muito a aparecer as pressões realmente consistentes dirigidas especificamente nessa direção: a de uma democracia participativa, com amplos e consistentes meios de consulta popular e talvez até espaços para a participação da população em decisões conjuntamente com os órgãos governamentais, como parte oficial dos processos decisórios. E isto seguramente vai pressionar, por questões puramente funcionais (que são as mais fortes de todas) no sentido de um forte incremento na área de educação.
Temos já no Brasil uma série de pequenos e discretos mecanismos de participação popular e de controle popular das ações dos governantes, e todos vinham sendo até agora superficiais e de fachada (para não dizer medíocres em seus resultados) — aqueles ligados aos abaixo-assinados, obrigações de esclarecimento público de gastos por parte do governo, consulta a algumas comunidades universitárias na formulação de leis, orçamento participativo etc. O que está já neste momento pintando (e é só um primeiro passo) é a transformação desse amontoado de contos da carochinha em atuação popular real.
Algumas previsões (ou o que ficaria melhor
com o título “bancando o profeta na política”)
As razões para toda essa avaliação futurológica me soar muito plausível (com maior ou menor moderação ou radicalidade, mas bem nessa direção) são, me parece, razões tão óbvias para qualquer historiador do Brasil — ao menos qualquer um que seja cuidadoso e combine seus conhecimentos com um pouco de antropologia do brasileiro — que simplesmente não há o que explicar.
Caros políticos “oficiais”. Querem entender um pouco do que está acontecendo? — Leiam uns bons livros de história, suas antas. Por que isso tudo é muito simples. (E parem de fantasiar sobre um povo “cordeirinho” que simplesmente não existe. O que existe é paciência esgotada, e muito saco cheio.)
E prestem bem atenção, não se iludam com os estranhamente súbitos períodos de calmaria que provavelmente virão: serão breves. Ainda vem muito mais por vir por aí à frente.
Os mexicanos se recolhem nos labirintos da sua solidão. Os brasileiros, no estômago do seu emocional. O estômago emocional é assim. No enfrentamento da injustiça, a saliva vem à tona gritando palavras de ordem, combinando um tanto de fúria com boa dose de humor, ou uma fingida “seriedade”, que é pra mostrar justamente isso (“seriedade”)… e as revoltas se manifestam pipocando explosivamente aqui e ali sem muito plano ou coerência.
Depois essas revoltas parecem sumir meio que subitamente como se as pessoas se retirassem no final do expediente do trabalho, sem mais. Vão para casa fazer uma boquinha e dormir, para voltar no dia seguinte ao batente. Na verdade essas salivas revoltadas estão mergulhando lá no fundo da alma revoltada (isto é, no estômago) enquanto ela (a alma) se acalma na superfície meigamente pensativa do dia a dia. A alma segue vivendo sua vida como se nada tivesse acontecido. Restam os comentários ainda tensos no tom daqueles dias, só mais baixos, até sumirem em resmungos e murmúrios de reclamação, e mais nada.
Na verdade, as revoltas antes manifestas e agora recolhidas no estômago, estão sendo digeridas em seus resultados insatisfatórios… a digestão leva um tempo, ela se faz em silêncio. E então voltam as pipocas novamente. Mais intensas e um pouco melhor pensadas que antes.
Os revoltosos saem do cotidiano e emergem sua revolta. Sem pensar muito, fazem o experimento. Depois se abaixam de novo, mergulham em si mesmos e na vida cotidiana… e mais uma vez, digerem. Mais adiante, surgindo outra ocasião oportuna, as revoltas tornam a pipocar, mais ferozes e densas, em novos experimentos… Se não encontram condições orgânicas de expressão, as pipocas de revolta somem por um período de digestão desses que pode ser longuíssimo.
Parecem amortecidas. Não estão. O fogo está quieto, mas estão em brasas. É assim o Brasil. Tem sido sempre assim pelo menos, se observarmos sua história. A revolta brasileira é sempre em primeiro lugar emocional. A razão emerge do fundo com o tempo cada vez mais, como emoção digerida e repensada, e às vezes submerge de novo, para voltar bem mais nítida num momento lá adiante.
Aliás, as das elites corruptas que se lixem.
Vamos nos conhecer melhor, gente! Não somos o que eles dizem que somos.
Leiam a história do Brasil… não aquela tradicional, mas a que está no contrapelo. A história dos que foram calados (muitas vezes a bala, inclusive)… leiam a História do Brasil… leiam a história do Brasil!
(Um parênteses final aqui é necessário, devido a um comentário — corretíssimo — que li no site do CMI, e que mostrava desconfiança em relação a “patriotismos” exacerbados: é isso mesmo, o comentário está certo. O Brasil em si mesmo é o de menos. Enquanto instituição que está aí como uma moldura verde azul amarela e branca etc. pra tudo isto, esse Brasil em última instância nem mesmo interessa. Países são uma invenção histórica recente e têm um sentido que escapa inteiramente ao fundo do que estou dizendo aqui — embora eu deva reconhecer que percebo em mim às vezes umas propensões obsessivas, e que sentimentos de tipo exageradamente patriótico, meio doentios na verdade, às vezes me tomam. O que ocorre de importante, independentemente de minhas idiossincrasias patológicas ocasionais, é o seguinte: é que para além desse nome e dessa instituição do tipo “moldura geral” — chamada “Brasil” — esta região do globo é sim o lugar em que estamos, é o contexto real e geográfico em que somos o que somos e fazemos o que fazemos, é todo um conjunto de formas materiais interconectadas ao nosso redor que contribuíram enormemente para nos formar como aquilo que somos. E dito isto, redigo com mais empenho e ímpeto ainda: se querem conhecer a si mesmos (o que é fundamental na autoconstrução de qualquer agente coletivo de porte histórico, LEIAM SIM, A HISTÓRIA DO BRASIL…!)
(Ai que tentação de terminar com “…suas antas!” — e sapatear furiosa e gloriosamente com os meus próprios cascos (também de anta, claro) no chão.)
Umas sugestões
DANTAS, Mônica Duarte (org). Revoltas, Motins, Revoluções: homens livres pobres e libertos no Brasil do século XIX. São Paulo, Alameda, 2011.
AQUINO; FERNANDO, GILBERTO, HIRAN. Sociedade Brasileira: uma história através dos movimentos sociais. Rio de Janeiro: Record, 2006. Vol. 1 e também idem 2009, vol. 2 .
REIS, João José & GOMES, Flávio dos Santos. Liberdade por um filo: história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Cia das Letras, 2006.