Por João Borba -15 de agosto de 2006 – artigo 08, vol. 1
(originalmente publicado em www.eleicao.info)
Situações-limite pró-autoritárias e
desarticulação dos intelectuais de esquerda
Em um outro artigo sobre o PCC (Bola de neve), escrevi sobre os pequenos contrastes que compõem o tecido da nossa vida cotidiana, sobre as coisas de maior contraste, que se destacam nesse tecido, e sobre situações-limite que podem acabar reestruturando todo o tecido (desestruturando-o no caminho). Em tom de utopia negativa, procurei entre outras coisas assinalar como a conjunção entre a força atual do PCC e a decadência moral das autoridades governamentais poderia confluir, assustadoramente, para uma dessas situações-limite. O assunto aqui é mais uma vez o PCC e a questão das situações-limite.
Mas gostaria de começar a chamar a atenção do leitor, neste artigo, para um duplo problema, extremamente grave, que desarticula o que poderia (e deveria) ser um grupo de defesa da sociedade contra esse tipo de situação-limite, quando ela aponta para uma reestruturação mais autoritária, ou “autoritarista”: os intelectuais de esquerda.
As seduções auto desarticuladoras da esquerda
A primeira face desse duplo problema que desarticula por dentro a intelectualidade esquerdista, é uma certa sedução teórica desses intelectuais (entre os quais me incluo) por algumas características do banditismo. A outra face do problema, é uma segunda sedução ainda mais grave do que esta: a sedução autoritária, que na verdade é uma característica muito profundamente direitista — eu diria que direitista por excelência, a mais direitista de todas. Diante de fenômenos assustadores como o PCC, que esfacelam aquela nossa sedução teórica e romântica por um banditismo tolamente idealizado, nós, os intelectuais de esquerda, tendemos frequentemente a uma valorização da autoridade que é ainda mais tola, e que na verdade difere muito pouco dos princípios autoritários que costumam nortear, na prática, o próprio banditismo, com duas diferenças apenas, e bastante discutíveis.
A primeira diferença é o aval da legalidade, muito menos relevante do que se julga — para não dizer irrelevante, uma vez que as próprias leis, no direito positivo atualmente vigente, são construções artificiais das autoridades oficiais, e não emergem dos costumes populares e da ética. A segunda diferença (esta sim, um pouco mais relevante) é o caráter menos abrupto, mais lento e sutil, da violência e da morte causadas indiretamente e ao longo do tempo pelas elites governamentais e econômicas, em comparação com a morte e a violência explícitas e abruptas do banditismo. As do banditismo geram contrastes maiores em relação ao resto do que percebemos ao nosso redor em nossas vidas diárias — razão pela qual a violência bandida tende a ter mais foco na mídia do que a violência regular e costumeira dos que estão “por cima” — e contribuem para uma qualidade de vida que é imediatamente a pior possível, calcada no pânico, e de uma maneira que não nos oferece o tempo de nos organizarmos contra isso.
A dificuldade em nos organizarmos contra essa violência mais abrupta e escancarada, está em que as vítimas são imediatas, a morte não é lentamente anunciada pelo crescente agravamento da falta de condições para uma vida decente, mas súbita, e as experiências da violência são mais traumáticas, porque não há tempo para nos acostumarmos a elas. Sob este aspecto, a violência bandida é similar ao que ocorre em nossas vidas diárias com as violências de uma ditadura, que só se tornam algo “habitual” para os que baixam a cabeça e tapam os olhos, vivendo covardemente nos limites em que é exigido que vivam. As violências das forças econômicas (e dos poderes falaciosamente democráticos da atual democracia representativa) ocorrem mais lentamente, e é possível combatê-los com menor sofrimento e risco.
O aspecto mais moderno que essa sedução das esquerdas pela direita e pela autoridade tem assumido, é a valorização da “eficácia prática” como se ela estivesse acima dos valores políticos (os seduzidos costumam dizer, acima das classificações em “direita” e “esquerda”, como se nenhuma distinção do gênero, em termos de valores, fizesse mais sentido… o perigo autoritário embutido nisto é enorme). Deixarei para falar mais dessa sedução das esquerdas pela direita em um outro momento. Focalizemos aqui a questão do banditismo.
A esquerda romântica e as Revoluções
No artigo Bola de neve procurei mostrar como as situações-limite reais, e as experiências limite vividas psicologicamente pelas pessoas nessas situações, podem perigosamente alimentar uma à outra, enormizando as duas em uma espécie de avalanche. Existe um tipo específico de situação-limite, que tende a estabelecer esse mesmo tipo de bola-de-neve com as experiências limite que provoca: estou falando das revoluções. Uma revolução, como qualquer situação-limite, é uma situação em que todas as regulagens, todos os padrões de funcionamento da realidade ao nosso redor, se alteram drasticamente. E o que se vive então são essas experiências limite. Evidentemente estamos longe de qualquer coisa desse tipo, não há nada de remotamente “revolucionário” no que está acontecendo. Mas o que estamos vivendo em São Paulo é mais do que perturbador: em certos momentos beira uma experiência limite, e por isso serve como pretexto para falarmos no assunto.
É que, curiosamente, o PCC procura se apresentar como se não fosse exatamente, ou não somente, uma facção criminosa, mas algo como um “grupo revolucionário”. Adota uma “estética”, uma postura, diante da mídia e do grande público, que imita a de grupos terroristas e pequenos partidos revolucionários ilegais, que atuam na clandestinidade por aí pelo mundo afora. Algo como se suas pretensões fossem “revolucionárias” em relação ao modo de vida de uma comunidade específica, a comunidade carcerária… — e é este o ponto ao qual devemos atentar em primeiro lugar, se queremos entender alguma coisa. Porque nos esquecemos de que existe ali uma comunidade, com seus valores e interesses, e que a existência desse grupo tem para essa comunidade, especificamente, um sentido completamente diferente daquele que tem para nós, aqui do lado de fora. É uma comunidade isolada da nossa, e isto nos dificulta compreender esse sentido. É uma comunidade de bandidos.
O historiador Eric Hobsbawn escreveu um excelente livro chamado Bandidos, onde descreve o que chama de “bandidos sociais”, bandidos com legitimidade junto à população, que os apoia contra as autoridades e os vê como uma espécie de “heróis”. A principal figura lendária desse gênero de de anti-herói é Hobin Hood. Os bandidos sociais são um fenômeno tipicamente rural, e têm sido sempre muito valorizados ao longo da História pelos intelectuais de esquerda em geral, especialmente os intelectuais “revolucionários”. Por que? Porque esses bandidos sociais parecem representar as normas de vida legitimamente acatadas pela população, em seus costumes e segundo seus valores, contra as leis e a estrutura de vida impostas a essa população artificialmente por governantes que, por isso mesmo, patentemente não estão representando de fato os valores e interesses dessa população.
Além disso, outra coisa nos bandidos sociais que seduz a intelectualidade revolucionária de esquerda, é que a atuação fora do campo da legalidade sugere que esses estranhos “representantes” do povo contra as autoridades estão, na verdade, em uma posição propícia para articularem algo como uma revolução. Isso porque já estão vivendo fora dos padrões, já estão vivendo em experiência limite momento após momento, e na medida em que angariam membros, afiliados, simpatizantes etc. para o seu movimento de rebeldia, são mais pessoas com os olhos abertos para a possibilidade de experimentar sair dos padrões, e viver diferentemente. São mais pessoas se aproximando da experiência limite, e um caldo maior de neve para aquela bola-de-neve, para aquela avalanche revolucionária tão esperada.
Só que uma revolução não é qualquer situação-limite. Não é um caos pura e simplesmente. É uma situação-limite direcionada, que tem um sentido determinado, o sentido em que se quer a mudança. Orientados pela ideia marxista de que a História tem um sentido predeterminado, e de que todas as revoluções apontam no fundo para ele, muitos intelectuais esquerdistas do passado romantizaram a figura do bandido social (que aliás nem sempre é tão “social” nem tão “revolucionário” assim quanto se pinta), como se ele sempre tendesse a ser um instrumento de revolução e, por isso mesmo, a esperança viva de um porvir melhor — uma vez que, reza o santo Marx, qualquer revolução que seja mesmo revolução, aponta direta ou enviesadamente para esse porvir melhor, a tal ponto que talvez se deva falar de uma só grande revolução: A Revolução (a única realmente proletária, que se se supõe que irá se realizando cada vez mais em cada pequena pseudo revolução burguesa e superficial do caminho).
Das favelas às penitenciárias
No Brasil, não deixou de haver, tempos atrás, intelectuais de esquerda seduzidos por aquele “governo paralelo” de bandidos nas favelas do Rio de Janeiro que, afinal de contas, não deixava de ter nitidamente mais legitimidade junto à comunidade local do que as autoridades oficiais. A sedução se inspirava justamente na figura clássica do bandido social de que Eric Robsbawn nos fala. Mas um pouquinho mais de atenção revelaria facilmente que se trata de um fenômeno bem diferente. A começar porque este é tipicamente urbano, e não rural. Em segundo lugar, porque essa “legitimidade” brota do medo, assim como em um regime ditatorial… E que raio de esquerda é essa, afinal, que apoia uma estrutura governamental (não-oficial, a estrutura da bandidagem) que arranca sua legitimidade do medo da população, que não aceita qualquer voz discordante, que dita as normas como bem entende e não as coloca livremente em discussão etc.? Será que já não tivemos bastante de Stalin, por exemplo, pra sabermos que isto não é “esquerda” nem aqui nem na **** que o pariu?!
Esse fenômeno das favelas do Rio de Janeiro é bem mais similar ao que estamos vivenciando em São Paulo do que pode parecer. Ali, o crime organizado se alastrou por entre a população a tal ponto que todos vivem à beira da criminalidade, bastando uma irrecusável “convocação” dos bandidos para uma missão, coisa que pode acontecer a qualquer um em qualquer momento, estando especialmente vulneráveis os jovens. Quem é que vai ter a cara e a coragem (para não dizer a estupidez) de negar o “servicinho” que lhe é pedido? No entanto, há casos em que a população protege os criminosos, ou os prefere à polícia. Não há como compreender o que se passa sem um cuidadoso estudo antropológico, porque se trata evidentemente de uma comunidade, com suas características próprias, seus valores etc., que foi enlaçada por dentro pelo crime organizado, e que fundiu-se parcialmente com ele.
Aqui, a comunidade é a própria extensão não tão organizada do crime organizado, dentro dos presídios. A situação, por absurdo que possa parecer, é a mesma, e o status paralelamente “governamental” do crime organizado, na comunidade carcerária e em meio a seus laços extra carcerários, também é o mesmo. Eles “governam” aquela comunidade, e a governam por assim dizer “na porrada”, como uma pequena ditadura acatada por aquela população, já tão acostumada à violência.
De certo modo, se trata de uma disputa de poder: só o PCC se acha no direito de maltratar “sua gente” — e na certa não acha que a está “maltratando”, provavelmente nem mesmo essa comunidade que o legitima se considera “maltratada” pelo PCC, e deve achar muito natural que um dos seus seja sumariamente eliminado se não concordar com certas coisas… Do ponto de vista do PCC, “sua gente” está sendo maltratada por outros. Carcereiro, polícia, “autoridades” de fora do mundo carcerário… quem eles pensam que são para meterem o bedelho aqui na “nossa” pequena ditadura? — Este é o raciocínio. Trata-se de uma questão de soberania, e se pedem a atenção dos nossos governantes, é por uma espécie de gesto diplomático, como quem reconhece que há certas forças (certas outras autoridades) com as quais é melhor manter boas relações, é uma questão de “política externa”…
O PCC quer que reconheçamos legitimidade em suas ações?
Em relação ao PCC, exceto pelo caráter isolado dessa comunidade, que é a carcerária, o caso é quase rigorosamente o mesmo das favelas do Rio. Só que a total impossibilidade de associá-los, por mais remotamente que seja, à linhagem dos heroicos bandidos sociais, é evidente: estão queimando ônibus, apavorando as pessoas na rua, já depredaram escolas de criancinhas… Como é possível, como pode fazer qualquer sentido, para nós — que nem sequer nos damos conta da existência dessa comunidade carcerária — que esses caras queiram de algum modo conquistar legitimidade para o seu movimento? Porque esta é justamente a loucura da coisa. Este é o ponto perturbador. Não são apenas bandidos atuando meramente como bandidos e ponto. Querem que se reconheça alguma legitimidade em suas ações! — ou pelo menos, este é o discurso. Mas como podem querer isso? Estão presos justamente porque romperam com as leis! — Não é isso? Então o que estão fazendo? Perderam toda e qualquer coerência! Será que estão loucos?
Há dois aspectos a considerar quanto a este ponto.
O primeiro é de caráter estratégico: esses criminosos não são nem um pouco tolos, e é ingenuidade grossa considerar que isto seja muito mais que um discurso, uma “pose” para impressionar, uma “sugesta” (para usar um termo da antiga bandidagem do centro de São Paulo), e que eles realmente queiram que suas ações sejam reconhecidas pela sociedade como legítimas… não acho que queiram. O mais provável é que estejam pouco se lixando para isso. Mas os policiais estão. Estão sendo mortos nas ruas. Precisam do apoio da sociedade e das autoridades, porque esse apoio, que lhes dá legitimidade, no fundo é a única razão de usarem um uniforme que os distingue dos criminosos — que sabem perfeitamente disso. Trata-se de uma estratégia dos bandidos contra eles. Eles — os policiais — são o alvo. Nós, opinião pública, somos o instrumento, e nada mais do que isso. Não se trata tanto de conquistarem legitimidade perante os olhos da sociedade como um todo, mas de arrancarem a legitimidade dos seus inimigos (pessoais mesmo) que são os policiais, aqueles que os colocaram ali, naquele inferno cultivado pelo descaso dos políticos. Trata-se de se igualarem aos seus inimigos — e em certa medida, estão conseguindo. É uma guerra de nervos.
O segundo aspecto é que eles não precisam conquistar essa legitimidade junto a nós, e por uma razão muito simples: porque já a possuem junto a um outro público. Seu movimento é legítimo para a comunidade que lhes interessa, a comunidade carcerária, porque ela os apoia. E ao que parece, todos os laços extra carcerários dessa comunidade também os apoiam. O resto de nós é simplesmente o resto, e não está interessando a mínima para eles a não ser como massa de manobra contra seus inimigos — as autoridades políticas e a polícia.
No entanto, é claro que se conseguirem essa legitimidade junto a nós, junto a essa comunidade maior extra muros, tirarão o maior proveito que puderem disso. Se por exemplo sentirem que o “P” de sua sigla tem alguma chance de passar de “Primeiro” para “Partido”, e de os colocar em pé de igualdade com os políticos que fabricaram por omissão o inferno em que vivem, farão isso, porque é o que segue a mesma lógica de sua estratégia em relação à polícia: igualar-se ao inimigo. Os nossos políticos por si mesmos já deram uma ajudinha polpuda nesse sentido, com a onda de corrupção em que se envolveram.
A comunidade carcerária oculta debaixo do tapete
A única diferença em relação ao que ocorre nas favelas do Rio, é que ali reconhecemos a presença de uma “comunidade”. Nos presídios, não. E no entanto, o fato é que onde quer que haja um grupo mais ou menos grande de pessoas convivendo diariamente, há comunidade. Não reconhecemos isso porque nossa relação com os criminosos, aqui no Brasil, é a de quem joga a sujeira para debaixo do tapete, e depois tenta se esquecer de que ela algum dia existiu. Nós os ignoramos, os jogamos lá aos montes, naquelas grandes caixas (e sabemos muito bem que não tão grandes assim), e esperamos que desapareçam da nossa vista, como se nunca tivessem existido. E aí pronto, são um problema a menos. Em suma, a palavra mais precisa para descrever nossa atitude é… descaso. Pois bem, aí estão os frutos. Não dá mais pra ignorar. Há um calombo no tapete, e estamos tropeçando perigosamente nele. O problema é que o calombo parece pesado demais para o tirarmos daí… e para nosso pavor, acabamos de perceber que esse calombo está vivo, porque mordeu o nosso dedão. Não é um problema. Problemas não mordem. É uma comunidade criando problemas, porque criaram problemas para ela.
Não há como desfazer uma comunidade de tipo carcerário. Como o faríamos? Construindo uma cela isolada para cada preso e organizando as coisas de modo que nunca se encontrassem pelos corredores da prisão? Não há fortuna no mundo que pagasse construir uma penitenciária inteira para cada preso, ou organizar uma penitenciária de modo a deixar cada preso sempre isolado. O fato é que sempre houve e sempre haverá uma pequena comunidade, desenvolvendo sua própria subcultura, onde quer que haja um cárcere com uma certa concentração de pessoas convivendo diariamente, e é para isso que não estivemos suficientemente atentos. Supostamente trata-se de uma comunidade controlada, vivendo sob regras rigorosas projetadas artificialmente por nós (que digo… pelas autoridades, porque nós, realmente, nem nos demos conta até agora de que isso existia e de que havia algum interesse em pensar realmente a respeito!).
E aí vai a pergunta: uma comunidade controlada exatamente para quê, com regras de convivência artificiais rigorosamente projetadas… sim, mas com qual finalidade? Qual é a razão de ser dos presídios, afinal? Fazer essa gente sumir da nossa vista e do nosso convívio? É só isso? — Porque é apenas isso o que o nosso descaso até o momento sugere. Há uma subcultura formando-se necessariamente ali, como em qualquer agrupamento de gente. E essas pessoas estão desenvolvendo a sua mentalidade e adaptando suas personalidades a essa subcultura. Esse ambiente supostamente “controlado” por nós gerou, e está alimentando, uma comunidade com valores antissociais em relação a toda a sociedade circundante. E essa comunidade gerou o PCC.
Não se trata de “banditismo social”, mas é assim que eles próprios parecem se enxergar, em relação à única fração da sociedade para a qual eles parecem de algum modo importar. Portam-se como se fossem anti-heróis, hobin-hoods em defesa dos injustiçados, que são todo o contingente do crime não-organizado que está nas cadeias ou passou por elas e as conhece por dentro. É assim que se portam, e não como pessoas cientes de estarem cumprindo pena justamente por atentarem contra a justiça ! Ao que parece, apesar de seu discurso, a nossa justiça afinal de contas não lhes interessa. Eles têm a sua própria. É a resposta por não termos nos interessado por eles durante décadas a fio (e não só no últimos governo, o que no entanto não o desculpa). Agora estão marcando com traços bem fortes essa diferença entre “eles” e “nós” aqui de fora, porque nós mesmos fizemos isto, por meio do nosso descaso.
Como tirar a força do PCC?
E agora? Como derrotar esse grupo de criminosos? — a resposta não poderia ser mais evidente, porque o próprio PCC já a ofereceu: promovendo nos meios carcerários uma “revolução” como esta de que pretendem se fazer os defensores. Mais precisamente, “roubando” deles a posição de promotores da grande mudança — porque é preciso fazer isso sem deixar qualquer margem para que se aproveitem politicamente das mudanças, em sua comunidade, como se fossem eles os responsáveis, como se só estivéssemos fazendo isso em resposta às suas exigências — porque se realmente promovêssemos as mudanças necessárias, mas o PCC conseguisse capitalizar isso a seu favor entre os presos, o PCC sairia perigosamente fortalecido.
Trata-se então de descobrir um modo de fazer as mudanças necessárias, mas de alguma maneira deixando claro para os demais presos que elas são feitas a contragosto e contra a vontade do PCC. Entretanto, as mudanças precisam ser feitas. E precisam ser radicais, sentidas por aquela comunidade como uma “revolução”. O PCC nasceu do descaso da sociedade e dos maus-tratos decorrentes por parte dos responsáveis mais diretos. Lutar por isso é a sua fonte de legitimidade em meio à própria comunidade carcerária.
Como organização dotada de poder ali dentro, e de um poder autoritário, o PCC naturalmente depende de que suas próprias exigências legais, manifestadas por meios ilegais no documento que nos forçaram a ouvir pela TV, não sejam cumpridas pelas autoridades aqui de fora. E na verdade, aliás, essas exigências do PCC foram colocadas bem timidamente, em face das reais necessidades de sua comunidade, e não poderia ser de outra maneira, porque as exigências eram apenas pro-forma. Esses caras do PCC não esperam e não querem que exigências como essas sejam realmente cumpridas e que a vida carcerária como um todo se torne mais decente e humana — porque não são idiotas, são os líderes ali e sabem que isso lhes tiraria o argumento, que perderiam terreno junto aos seus liderados. A maior parte das lideranças oficiais de movimentos políticos não-partidários atua da mesma maneira.
O que querem realmente é tirar aos nossos policiais e às autoridades a sua legitimidade… (muito bem, que tirem, do meu ponto de vista isso não faz lá tanta diferença, porque de qualquer maneira tem sido sempre uma falsa autoridade que nos forçam goela abaixo, desde o começo dos tempos!). Mas querem fazê-lo justamente para fazer valer a sua própria autoridade como uma espécie de “justiceiros vingadores” em sua própria comunidade — e com um autoritarismo muito maior e, para nós aqui de fora, muito mais ilegítimo, do que jamais poderíamos considerar o da nossa polícia ou o das nossas autoridades políticas.
A vida carcerária precisaria ser replanejada — se é que alguma vez realmente chegou sequer a ser planejada. Estou falando da vida carcerária, e não das construções, não meramente das obras, dos muros etc. A vida dessa comunidade precisa ser repensada por especialistas… e não apenas especialistas em segurança (que naturalmente devem ter a palavra final), pois reduzir a questão da vida de toda uma comunidade a esse nível, como se tem feito sempre, lamento dizê-lo: é uma grossíssima estupidez.
Trata-se de uma comunidade formada artificialmente e à força, e depois largada às traças. Para reformulá-la, seria preciso especialistas capazes de projetar as condições para que se forme, ali dentro, uma subcultura propícia para os fins desejados. Isso inclui a ambientação e o espaço físico, mas não se reduz a essa questão. Com base nesse projeto, a vida carcerária, não digo só no Estado, mas preferencialmente em todo o país, deveria então ser reformada de cima a baixo, tão radical e subitamente quanto possível. O efeito, para essa comunidade, não poderia ser o dos pequenos contrastes assimiláveis como habituais ou absorvíveis pelo PCC como se fossem pequenas vitórias suas. Seria preciso um grande contraste, que tivesse para os membros dessa comunidade o caráter de uma verdadeira revolução localizada, e nitidamente fora do controle do PCC. Uma revolução, como já disse, não é uma situação-limite qualquer, mas uma claramente direcionada.
Que direção daríamos a uma tal revolução na vida carcerária no Estado (e se possível, no país?) Quais são os fins dessa comunidade criada artificialmente, chamada penitenciária? A “penitência” justamente? A punição? — não é o meu ponto de vista. Sou contra essa ideia. Considero-a um barbarismo primitivo que não difere muito da mentalidade do próprio PCC. Mas não sou o único cidadão que existe para julgar isso, não sou o dono da verdade. Então digamos, por hipótese, que fosse esse o caso. Refletindo com o mínimo de inteligência, não ajudaria em absolutamente nada que eles fossem maltratados (já o são, aliás!). Os maus tratos seriam (e são) uma estupidez, porque os presos se sentiriam (já se sentem) injustiçados. É claro que procurariam (como procuram) o colo dos seus “justiceiros”… Na verdade, o que está acontecendo atualmente não é apenas fruto do descaso, mas justamente de uma combinação de descaso com uma mentalidade nossa que já é essencialmente essa mesma mentalidade punitiva.
Neste caso (e ainda estou procurando raciocinar como se eles devessem ser todos punidos, e não reeducados), seria preciso pelo contrário, que fossem sim, decentemente tratados, que se sentissem completamente ao abrigo da autoridade oficial, e naturalmente com todas as devidas limitações (que deveriam ser drásticas), e o ponto fundamental seria que tivessem como perceber claramente o que estão perdendo por se oporem ao que a legalidade tem a oferecer, e também como perceber por que estão perdendo tudo isso. Nessas condições, não me parece que seria assim tão difícil criar na população penitenciária o reconhecimento generalizado de que são culpados e merecedores da punição. Issoseria fácil, porque esse sentido de culpa e de merecimento do castigo, para o dizermos logo com todas as letras, é uma mentalidade completamente tacanha e ultra reacionária, que coloca a autoridade acima de tudo, e à qual já estão sendo habituados na marra pelo próprio PCC — que é quem tem “autoridade” por ali, a autoridade da bala.
De minha parte, pessoalmente, creio que a solução se desenrolaria melhor tendo como finalidade o reencaminhamento psicológico dessas pessoas para a reintegração à sociedade (dentro dos limites do possível), principalmente pelo viés da educação e do trabalho, mas trabalho em condições dignas e em troca de benefícios (talvez com graus de liberdade como moeda, rumo ao convívio social extramuros como meta… mas seria preciso valorizar muito, muito mesmo, cada centavo dessa moeda)… ou qualquer coisa por aí. (Infelizmente, e me incluo nisto, segurança nunca foi um assunto muito atraente para intelectuais de esquerda em geral, porque concentram suas atenções em outras coisas, mais naquelas coisas que mudam as situações do que naquelas que conservam)
Tenho amigos interessados em uma coisa curiosa que eu gostaria de “fuçar” um pouco melhor, chamada “abolicionismo penal”. Não conheço bem a ideia, pelo pouco que sei, a princípio me parece muito apoiada em valores e pouco em questões de eficácia, e como considero os valores sem eficácia tão perigosos quanto a eficácia supostamente neutra e sem a orientação de valores, fiquei por enquanto à margem dessa discussão… como já disse, ainda não estudei essa ideia, e não posso avaliá-la devidamente. Precisaria examinar com mais cuidado o assunto. Talvez fosse boa ideia um abolicionismo seletivo: aboliríamos as penas de todos os presos comuns, e deixaríamos na cadeia só o pessoal do crime organizado: os do PCC e os lá de cima… eles que se entendam!