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1. Pré-história
Este artigo é sobre um cãozinho chamado Chiquita. Mas peço um pouco de paciência ao leitor, porque vou um pouco longe para falar dessa amiga. Só um pouquinho. O coração é que exige. Vou começar pela pré-história. E vou terminar contando uma pequena historinha sobre coragem e medos.
Existe uma grande possibilidade de que os caninos tenham sido os primeiros animais domesticados pelo homem, na pré-história. Um processo de domesticação que deve ter se desenvolvido a partir de laços de apoio mútuo entre as duas espécies, laços que por sua vez podem ter se combinado com a alta capacidade de empatia por outros animais que ambas as espécies apresentam.
Ao que parece, lobos pré-históricos caçavam junto com nossos antepassados ainda peludos e de costas curvadas, que possivelmente ainda tinham rabo, e corriam saltitantes pela mata quase de quatro junto a esses caninos, usando as costas das mãos quase como patas. É possível que, apesar de diferenças de cheiro e comportamento, os lobos pré-históricos tenham considerado os nossos antepassados como uma espécie de matilha aliada de lobos um tanto diferentes, capazes de prestar boa ajuda na caça.
Nossos antepassados parecem ter começado isso, comendo os restos da caça dos lobos — pois nossos aparelhos digestivos são adaptados para uma variação muito maior de alimentos, e podíamos já desde aquela época (mesmo antes da Era dos Salgadinhos Entupidos de Sódio!) comer e digerir partes que os lobos não sentiam como muito saudáveis, e das quais nossos estômagos conseguiam extrair bom alimento. Depois de um tempo, ao que parece, começamos a seguir matilhas de lobos à espera desses restos que nos sobravam, com todo o cuidado para não atrair a inimizade deles.
Depois passamos a ajudá-los discretamente na caça, cercando e espantando na direção deles as presas, ou impedindo que essas presas fugissem, mas sem roubá-las dos lobos — apenas aguardando que eles comessem para nos aproximarmos dos restos. Depois, provavelmente aperfeiçoamos nossas estratégias de auxílio aos lobos na caça. E como caninos são animais bastante espertos, e que tendem a se acostumar às coisas e a apreciar tratamentos respeitosos… (e a apreciar ainda mais quem lhes garanta comida), é de se imaginar que matilhas de lobos tenham começado a aparecer perto de agrupamentos dos nossos antepassados, como que chamando-os para a caça (avisando que está na hora do almoço!).
Aos poucos, é claro, nosso cérebro diferenciado deve ter deslocado naturalmente para nós a tarefa de, por assim dizer, conduzir a coisa do modo mais proveitoso para todos, lobos e homens — provavelmente para o grande prazer desses caninos, inclusive — até tomarmos o lugar de honra na escolha das partes da caça, no momento da partilha. A postura dos caninos, que podem aceitar e assimilar animais de outras espécies como membros de sua própria matilha, deve ter contribuído fortemente em todo esse processo.
Há de se pensar também se não houve outras fortes influências do modo de ser canino sobre o modo de ser humano, já que somos de uma linhagem de animais extremamente maleável e permeável a influências — provavelmente a mais maleável e a mais permeável de todas, com a possível exceção de certas espécies avançadas de moluscos. É bastante conhecida, por exemplo, a postura canina de reverência, com rituais de estabelecimento de respeito mútuo e, frequentemente, de respeito hierárquico à “autoridade” de quem mostra maior autodomínio e maior competência — em todas as atividades que visam o benefício coletivo (como a caça).
Os caninos além disso demonstram respeito também, e carregado de rituais, pela capacidade de cada membro da matilha de determinar com firmeza, de maneira justa, e sem histeria, a sua própria parte na partilha (e fazer isso respeitando também a hierarquia do grupo). Saber determinar deste modo, dentro das regras, qual é a sua própria parte na partilha, parece ser para os caninos um sinal de que aquele membro da matilha merece a parte que tomou para si mesmo. E determinado quando fica para quem, o que cada um depois cede ou não cede para outros também segue todo um ritual de consideração do respeito mútuo e do respeito pela posição de cada um na matilha.
Quanto disso, de toda essa ritualização carregada de respeito e reverência, envolvendo hierarquias e determinação de posses individuais na partilha do bem coletivo, não se transferiu durante a pré-história — numa versão adaptada e reinterpretada — para as comunidades humanas, então divididas em pequenos grupos de organização ainda bem simples?
Se herdamos deles grande parte disto tudo, o que é uma possibilidade, é claro que em nós por outro lado essas coisas, para o bem ou para o mal, nem sempre são sentidas como coisas tão naturais assim. Se deveriam ser naturais para nós ou não, em que medida, em que circunstâncias e de que modo, para nós é uma questão política (e de minha parte digo que não, quem me conhece sabe que prefiro a relação equilibrada ao desequilíbrio das hierarquias, e prefiro mil vezes a informalidade simpática ao respeito)… mas para o nosso cãozinho, que nos olha com todo aquele respeito que nos comove, tudo isso é natural, e não são coisas mobilizadas exatamente pela razão, mas principalmente pelos sentimentos que ele tem, e que vêem do fundo de suas entranhas.
Quanto de nossas próprias sementes não está lá, geneticamente escondida, no fundo dos olhos amorosos do cãozinho hoje que vem nos avisar, alegremente e quase sempre respeitosamente, mas com insistência, que está na hora do almoço dele? — Eram os deuses astronautas, como sugerem algumas publicações místicas e um tanto apelativas? Ou não eram deuses… e andavam de quatro?
2. Hoje: Chiquita
Saltando séculos, milênios, de assuntos de que poderíamos mas não vamos tratar detalhadamente aqui, referentes às lendas de lobisomens, deuses egípcios e outras coisas, é o momento de dizer, como conclusão a tudo isso, que tenho em casa uma cachorrinha extraordinariamente especial… (eu sei, eu sei, nosso cãozinho é sempre extraordinariamente especial, e aposto que para ele seus donos são sempre os mais extraordinariamente especiais). Ela se chama Chiquita.
Chiquita adora carinho. Às vezes se senta ao nosso lado elegantemente como uma lady, e puxa nossa mão com a pata exigindo carinho… agora quer carinho especificamente no peito, agora especificamente na cabeça… e por aí vai, mas a campeã de preferência é a própria patinha. Com a patinha em nossa mão, ela olha para lado e para o alto, com um ar “superior” um pouco extasiado, um pouco aborrecido-chique, como se não desse assim tanta importância, e fôssemos apenas seus lacaios responsáveis pela tarefa do carinho, e aquilo tudo fosse digno de um gostoso bocejo.
Mas fica um pouco agitada se não damos suficiente atenção ou paramos o carinho antes da hora. Insiste puxando nossa mão com a patinha, e se não fazemos o carinho, resmunga um pouco, vira e se deita levemente indignada com um suspiro ou um choramingo (olhando para o outro lado, não para nós)… dali a pouco rola pra perto de nós de novo, meiga e enrodilhada ou com a barriga pra cima, e sem exigir mais nada, contentando-se com a proximidade.
3. Guardiã
Chiquita preta como a noite, e como protege a casa com ferocidade, no escuro pode assustar alguém se estiver no quintal da frente… evitamos deixá-la lá. Mas de dia já entendeu que, de vez em quando, se não latir assustando as pessoas, pode ficar um bom tempo empoleirada na beira do muro do quintal da frente, farejando o ar tranquila enquanto leio alguma coisa ou apenas tomo sol ou fumo meu cachimbo, sentado e outro canto. Mas ali só fica tranquila se estivermos também em algum canto do quintal. Senão se põe em vigilância, e não descansa de fato. Me parece ficar mais sossegada na área do fundo da casa, onde gosta de tomar sol, preguiçosamente, e não assume a vigilância de nada.
No quintal da frente, sempre observa atentamente quem se aproxima da casa. Para alguém entrar, precisamos colocá-la para dentro. E o visitante para o qual abrimos a porta, se nunca esteve em casa, ela continua, digamos assim, “pastoreando” e meio que “vigiando”, ainda que brinque com a pessoa.
Uma vez aceita em casa a pessoa como visitante “de sempre”, e conversando sempre conosco (principalmente se a pessoa se senta conosco à mesa, pelo que pude observar), a desconfiança se evapora, e Chiquita se torna festiva com essa pessoa… e inclusive doce doce doce. Até pula de alegria quando a pessoa amiga chega. Pula leve feito uma dançarina, pipocando pra lá e pra cá, e brinco de dizer que é um caxinguelê tostado que ficou saltitando num tanquinho de açúcar (branca só no focinho, no peito e nas pontas das patas), com aqueles olhinhos castanhos arregalados feito jabuticabas.
O único problema é que aí a pessoa amiga, quando vai embora, não pode dizer “tchau”. Porque a Chiquita fica fula da vida, e late em protesto sem parar, como se fossem deixá-la sozinha. É preciso sair sem dizer a palavra mágica “tchau”… e a cãozinha ainda fica muitos e muitos minutos depois atenta aos sons lá de fora, checando se a pessoa não está só no quintal, e à espera de que ela volte. Pode chegar a choramingar de levinho, depois se conforma e vai deitar no sofá.
4. Uma senhora jovial
Chiquita na verdade já está com certa idade, é uma senhora… mas que digo! É um perfeito filhotinho! Apesar do focinho já branquejado, pula, rola, brinca, corre, rói a bola de borracha, sobe e desce as escadas correndo feito uma doida.
Minha amiga Chiquita, com toda a idade que tem, possui os pelos lisos, brilhantes, sedosos, e cheirosos, um faro insuperável, instintos afiadíssimos, uma agilidade impressionante, mas acima de tudo, uma capacidade absolutamente inigualável de se esparramar em qualquer lugar nas posições mais absurdas como uma contorcionista de borracha (principalmente entre as almofadas do sofá e de preferência com a barriga para cima), demonstrando que o mais profundo conforto pode ser encontrado nas condições mais inesperadas.
Sei que é um tanto bizarro, mas às vezes experimento imitar as posições em que ela fica… e me surpreendo — porque é mesmo confortável, delicioso, a gente nunca iria imaginar! Chiquita fica assim imóvel por horas, às vezes apenas abanando o rabo e virando um pouco a barriga para cima à espera de cosquinhas, ou (se a posição permitir e estivermos bem perto) esticando a patinha para que a tomemos na mão e acariciemos longa e lentamente.
As únicas coisas que apontam sua idade avançada são a pouca paciência quando há filhotes ainda mais agitados que ela visitando a casa. E também os olhos, que já não enxergam como antes… — descendo a escada escura do sótão, ela agora passou a choramingar no meio dos degraus vazados, um pouco aflita, pedindo que eu acenda a luz para que ela possa descer sem medo. Quando acendo, desce feliz da vida.
Parece sempre feliz com sua própria façanha de subir e descer de qualquer lugar, pular, correr e despejar pra todo lado sua jovialidade e energia… mas com filhotes energizados e barulhentos por perto, depois de se cansar rapidamente, vai pro seu canto reclamando tranquilidade, e fica bastante ranzinza quando a agitação chega perto demais. Vão-se embora os filhotes, ela já começa de novo com a sua própria “filhotice”. Corre pra lá, corre prá cá, pula, brinca, sobe correndo as escadas e… se forem as escadas do sótão, aquela dificuldadezinha pra descer. Mas desce mesmo sozinha, se demoramos pra perceber que subiu e pra acender a luz que a ajuda.
Subir, subir! O curioso é que de qualquer modo gosta de altura, adora, como se tivesse algum gene de felino. Gosta de se equilibrar em lugares altos e estreitos. Ainda bem que não há lugar nenhum em casa que ofereça perigo real nesse sentido.
Também está mais difícil para ela, com a idade, se espremer feito um molusco pra entrar debaixo do sofá, onde às vezes gosta de ficar. E há certos dias em que parece implorar para a gente levantar o sofá um pouco para ela, vejam só que folga dessa senhora! Fico preocupado cada vez que ela se espreme desse jeito, porque já teve um problema na coluna.
Como se não bastasse, não aceita mais qualquer canto no sofá da sala, quando estamos todos lá… de preferência costuma pedir que a gente levante um cobertor fino que mantemos ali bem limpinho, da mesma cor da preta do seu pelo, para que ela entre debaixo.
Quer ficar inteiramente coberta, até a cabeça. Às vezes no máximo com o focinho de fora. Ela se mimetiza com esse cobertor, se enrosca e se mistura nele fazendo suas posições torcidas, estranhas e estranhamente confortáveis… é como se ela se transformasse numa almofada… — olho para aquilo, e não consigo parar de pensar, não consigo parar de pensar no problema de coluna que ela teve, e no modo estranho como me senti com uma coisa que o veterinário disse: que era a idade, e bom a gente se acostumar, porque provavelmente não ia passar, e daqui para a frente, tenderia a piorar.
A certa altura, ela não estava conseguindo sequer subir no sofá. Ficava ali, com os olhos de pedinte, até que com todo o cuidado de manter o corpo dela todo reto, eu a pegava e transportava para cima do sofá. Virei o elevador da Chiquita. Isso estranhamente me lembrava o que vivi com minha avó, quando estava com câncer e não conseguia se mover. Durante muito tempo, eu ia até lá ajudar meu avô a descê-la pelas escadas da casa, porque ela queria continuar a sua vida diária como antes, passando uma parte na tarde na sala da TV, vendo seus programas favoritos.
Fazíamos uma cadeirinha de braços, o meu avô e eu, um de cada lado, e ela se sentava em nossos braços, abraçando os nossos pescoços. Descia fazendo graça: “Ô… ô… calma aí com a vó”, dizia ela, em voz sempre bem-humorada “calma que a vó desequilibra”. Mais tarde, meu avô e eu fazíamos de novo a cadeirinha de braços para levá-la escada acima de volta para o quarto. Às vezes eu telefonava, e meu avô dizia “não precisa, fica tranquilo, já tem gente aqui, já chamei”. Eu era adolescente, ou quase isso, ficava impressionado e um tanto aflito. Acho que meus avós percebiam. Mas me incomodava não ir. Sentia-me responsável.
Agora eu era o mesmo com a Chiquita… — era o que me passava pela cabeça. Essa senhorinha jovial de quatro patas!
Tive em relação a essa dor nas costas da Chiquita, pouco tempo depois, uma experiência emocional muito estranha, dessas que ocorrem apenas na intimidade do nosso coração, que não dizemos para ninguém, mas que para minha surpresa, foi como se ela reagisse lendo meus pensamentos… isso me surpreendeu, me chocou e me moveu, foi uma experiência importante para mim… e no entanto, pode estar toda ela apenas e somente na minha cabeça. Pode ter sido apenas imaginação, carregada de mil sentimentos.
Mas o que quero aqui relatar, com todo esse artigo, desde a primeira linha, é ainda uma outra experiência, marcada por esta que vou contar primeiro. O centro de todo o artigo (peço mais uma vez a paciência do leitor), está somente no final, nessa outra experiência que vou contar depois, e tudo o que o que eu disse até aqui é, incluindo a primeira experiência que vou narrar já no tópico 6 do artigo, relativa à dor das costas da Chiquita, foi apenas uma preparação de terreno para narrar aquela última experiência, com a qual terminarei este artigo, depois de tanto suspense.
Então paciência por favor, paciência. Acompanhe no próximo tópico 6 este meu primeiro relato de uma aventura emocional talvez imaginária que tive com meu cãozinho, e compreenderá melhor a segunda aventura, que vou descrever no final… mas o que digo! O próximo tópico ainda nem mesmo é o 6: ainda é o tópico 5, um loooongo tópico 5!
Caramba, acho que vou ter que lhe pedir mais paciência ainda…
5. As lendas mesopotâmicas e ciclo invencível da entropia natural
Quando o veterinário disse que o problema de coluna da Chiquita tinha vindo para ficar, que apesar do remédio recomendado, iria se agravar com o tempo, talvez oscilar, ir e voltar, porque estava ligado à idade, e que era bom já irmos nos preparando porque sentiríamos a idade dela chegando, fiquei encafifado. Bastante. E atento aos movimentos da Chiquita, às suas pequeninas e quase imperceptíveis dificuldades para subir no sofá, acompanhadas de pequeninos e quase imperceptíveis resmungos, coisas que eu nunca havia notado antes. E é preciso dizê-lo: estou com meus quase cinquenta anos de idade… esse tipo de coisa me afeta… porque também já não me dobro e pulo e brinco exatamente como antes, por mais jovial que pareça para muitos que me conhecem.
A mais antiga lenda de lobisomem da história da humanidade, o mais antigo mimetismo mútuo de caninos e humanos de que se tem notícia escrita (portanto do final da pré-história) é de uns 2100 anos antes de Cristo, de um mito da antiga Mesopotâmia, no Oriente Médio. E é um mito que está diretamente ligado às relações entre a vida e a morte — …pois é delas que estamos falando quando falamos desse fenômeno orgânico e psicológico que chamamos de “envelhecimento”. Um mito indireta mas firmemente ligado à questão do envelhecimento… e da morte.
A narrativa mítica mais famosa daquela época (cerca 2100 anos antes de Cristo), escrita em tabuletas de barro em linguagem cuneiforme, um tanto na língua sumeriana, outro tanto em acádico — a mais completa narrativa mítica e poética que chegou até nós daquele período, e que se encontra hoje em museus ou nas mesas de estudo dos arqueólogos — é a lenda de Gilgamesh, o herói que buscava a imortalidade. É mais antiga que o famoso Código de Hamurabi. E a lenda do lobisomem é ainda mais antiga — embora envolva alguns dos mesmos personagens das aventuras e desventuras de Gilgamesh. Dessa lenda mais antiga (pelo menos por enquanto) só chegaram até nós, pelas mãos dos arqueólogos, algumas poucas tabuletas escritas, uma narrativa incompleta.
Trata-se de uma lenda de uns 2300 anos antes de Cristo, e tem como protagonista, em ação heróica, a deusa Inana, que na lenda de Gilgamesh aparece de certo modo como vilã da história. A lenda de Inada é de tempos de matriarcalismo, de valorização do poder da mulher na família e na religião, possivelmente também na política.a lenda de Gilgamesh, que a completa, parece ser do preciso e exato ponto de virada desse matriarcalismo para o patriarcalismo, que rebaixa a figura feminina em favor da masculina — daí Inana ter se tornado de certo modo a vilã da história.
O que tudo isso tem a ver com o que vinha falando sobre o envelhecimento, a morte, e as dores nas costas de minha amada amiguinha de quatro patas, a Chiquita? Calma, vamos chegar lá. Peço mais uma vez paciência ao leitor, porque se antes me alonguei falando da pré-história, agora vou me alongar falando da Mesopotâmia arcaica,bem no momento de saída da pré-história, quando começaram a ser escritas todas as histórias da humanidade.
Quando a lenda de Gilgamesh foi escrita, parece ter “completado lacunas” que haviam ficado sem explicação na lenda anterior, principalmente em relação à morte de um deus da fertilidade: Gugalana, o touro do Céu, cujos chifres seriam a lua e representariam também de certo modo toda a terra fértil da Mesopotâmia, território que tem o formato aproximado de uma lua crescente (Gugalana, pela nova lenda, teria sido morto por Gilgamesh e seu amigo inseparável, Enkidu).
Na lenda mais antiga, de tempos ainda matriarcais, e que tem como eixo as aventuras da deusa Inana, ela se sacrifica, morre empalada (o que tem sim conotações sexuais) e renasce ressuscitada, para trazer de volta a fertilidade. E para conseguir isso ela sacrifica também, logo em seguida, seu esposo-amante-amado, o pastor nômade Dumuzi, que é amaldiçoado e transformado em lobisomem, criando com essa transformação um mecanismo mágico pelo qual Inana, com sofrimento, recria a fertilidade da terra na Mesopotâmia, salvando a humanidade.
Existe aqui um giro inexplicável do tempo em que o futuro age sobre o passado, o tipo de coisa que só nas lendas poderíamos encontrar. Porque a lenda de Gilgamesh, escrita mais tarde, pretende explicar como Gugalana, o touro do céu, veio a morrer. Mas também diz que Gilgamesh é descendente do amaldiçoado Dumuzi, e que ele culpa a deusa Inana por essa maldição — o que significa que Dumuzi, portanto, já havia sido amaldiçoado. No entanto, considerando em conjunto as duas lendas, Dumuzi é amaldiçoado justamente no final daquela aventura em que Inana se sacrifica… e o sacrifica também. E acontece que o começo de toda essa aventura do duplo sacrifício de Inana (de si própria e do seu amor) se dá com… a morte de Gugalana, o touro do céu!
Mas saiamos um pouco desse círculo legendário para colocar mais às claras sua ligação com toda a relação humanos-caninos da qual vim falando, e também com a questão do envelhecimento e da morte.
Observe-se o seguinte: Dumuzi, o primeiro lobisomem da história do imaginário humano, é condenado a passar meio ano “no inferno”, mais precisamente transformado em lobo, e meio ano em sua forma original, isto é, como deus-pastor em forma humana, enquanto sua irmã, por amor fraternal, toma seu lugar.
Quando Dumuzi está em forma de lobo, não pode pastorear os homens, isto é, não pode estar no comando, pois devora seus comandados (os reis na época eram tratados frequentemente como “pastores”), deixando livre o domínio matriarcal, o domínio das mulheres e de sua representante maior, a deusa Inana, sobre os homens. Quando está em forma humana não pode também assumir poder sobre as mulheres (ele depende de sua irmã para permanecer em forma humana durante esse tempo), mas pode manter relações sexuais com Inana, o que magicamente fertiliza a terra.
O sexo sagrado entre Inana e Dumuzi trazia de volta em ciclos periódicos a fertilidade nas terras da Mesopotâmia — os estudiosos costumam chamar isso de “hierogamia”. “Hiero” quer dizer “sagrado”, e a expressão que usamos quando dizemos que estamos “gamados” em alguém também vem daí.
Esse mecanismo mágico dos ciclos de fertilidade da terra criado por Inana veio a substituir uma outra hierogamia, um outro sexo sagrado: o de sua irmã mais velha Ereskighal e seu marido falecido: Gugalama, o touro do céu, que era forte, agressivo — suas patadas no chão, quando descia do céu, eram responsáveis por terremotos! Gugalama, antes de Dumuzi, também tinha sido transformado em animal por uma maldição: havia sido amaldiçoado por ser um estuprador. Havia estuprado Ereskhigal (a irmã de Inana) antes de casar-se com ela, e daí ser transformado em touro.
Nos dois casos, o de Dumuzi e o de Gugalana, temos o parceiro sexual masculino amaldiçoado, e sua maldição é fundir-se a algum animal — isto é, fundir-se com a natureza, perdendo aquilo em que, como humanos, superavam a sua própria natureza aproximando-se um pouco mais dos deuses. Isso tudo é um bocado ambíguo, cheio de duplos sentidos, porque há uma parte da lenda de Gilgamesh em que um personagem, Enkidu (também meio boi e meio gente, o que lembra Gugalana), tinha sua integração total com a natureza, e isto era para ele um paraíso… um paraíso que foi perdido com sua depilação e transformação em humano civilizado (apesar dos chifres).
Quanto aos amaldiçoados Gugalana e Dumuzi, Gugalana foi fundido definitivamente ao touro agressivo. Dumuzi, periodicamente ao lobo… — lobisomem que, ao contrário do primeiro (estuprador de Ereskighal), não deixa de ter por Inana uma certa fidelidade canina, o que torna ainda mais trágico o seu amaldiçoamento: pois o pretexto usado por Inana para amaldiçoá-lo (ao que tudo indica amaldiçoando-o mas com lágrimas nos olhos), é o de que ele teria tentado usurpar-lhe o trono.
Estamos na verdade diante de lendas que exprimem toda a tensão e todo o conflito social e político existente, na época, entre povos matriarcais, predominantemente agrícolas, e povos patriarcais de pastores nômades, descendentes de antigos nômades caçadores e guerreiros — pastores cujos animais de rebanho destruíam frequentemente as colheitas, gerando conflitos e até guerras. Essas lendas estão marcados pela tensão entre domínio político-religioso das mulheres e domínio político-religioso dos homens.
Para além de tanta guerra, há muito de história de amor nisso tudo, em todas essas lendas. Quem acompanha minha produção deve conhecer uma música que compus dedicada a minha esposa: O carinhoso lobisomem. Se gosto de cães — como é evidente — ela gosta ainda mais (só que sabe lidar com eles melhor do que eu). A Chiquita na verdade já era o cãozinho dela desde filhotinho, muito antes de estarmos todos juntos aqui em casa. Em minha música Carinhoso lobisomem, costumo brincar de dizer que me comparei a um lobisomem para não ficar deixado para atrás, tamanho o amor dela pelos caninos…! Mas sigamos adiante com as explicações.
Quem é, ou como é, afinal, a deusa Inana? Inana é seu nome em sumério, mais tarde foi rebatizada em língua acadiana como Ishtar, a estrela Vênus, que hoje sabemos que é na verdade um planeta. Inana é a deusa da fertilidade, como já vimos… é a “mãe-terra”, na verdade a mais antiga entidade divina de que se tem conhecimento, representada na pré-história por estatuetas com os órgãos reprodutivos exagerados, que ficaram conhecidas entre os arqueólogos como as “Vênus primitivas”.
Mas é também a deusa “parceira”, a deusa “companheira”, especialmente no sentido sexual, mais tarde representada cada vez mais como bela e sedutora. Inana deusa do amor, da sedução, e da feminilidade e especialmente da companheira feminina, em todas as suas formas… padroeira e protetora das esposas, das mães, das filhas, das amantes, das virgens apaixonadas e das prostitutas, e assume em si mesma tudo isso ao mesmo tempo. Ela é precisamente tudo isso.
Deusa criativa, ousada, esperta e emotiva, extremamente inconstante, oscilando a todo momento por todo o leque das emoções humanas, que nela são sempre exageradas. Curiosamente, quando se irrita, frequentemente contra homens (TPM?) se transforma subitamente na assustadora deusa da guerra.
Entretanto nem mesmo como deusa da guerra encontramos em Inana o que poderíamos considerar o seu “lado sombrio”. E todos os deuses e humanos têm, na mitologia mesopotâmica, o seu “lado sombrio”.
O lado sombrio de Inana é, justamente, sua “irmã” Ereskighal, que na verdade não é propriamente sua irmã… é a própria Inana sob outra face. Outra face do feminino, a violada, a estuprada, a agredida pelo masculino, e que lhe dedica ódio. Ereskighal é o que os mesopotâmicos chamavam de “o duplo” de Inana, assim como Enkidu, o homem-boi que perdeu sua integração com a natureza para se tornar o amigo de Gilgamesh, é na verdade o “duplo” do próprio Gilgamesh.
Note-se de passagem que, ao contrário do chifrudo Enkidu, que nos encanta e educa em cada atitude ao longo da história, Gilgamesh não era um herói lá muito “bonzinho”… antes de ser “amansado” pela companhia do dócil mas heróico amigo Enkidu (aliás apaixonado por uma sacerdotiza de Inana), Gilgamesh era um rei que tiranizava terrivelmente seu povo, e era também um estuprador. Deste ponto de vista, poderíamos dizer que Gilgamesh é que era o “lado sombrio” de Enkidu.
Agora… quem é a deusa Ereskighal? Quem é essa irmã mais velha de Inana que ao mesmo tempo é outra face (um “duplo” sombrio) da própria Inana? Ereskighal é na verdade, em sentido muito mais profundo que Inana, a “mãe terra” violada pelos homens no ato “fertilizador” da agricultura. Só que Ereskighal não representa propriamente o aspecto fértil da mãe-terra ou mãe-natureza. Representa, pelo contrário… a morte.
Ereskighal, a senhora dos infernos subterrâneos — face sombria da própria Inana — é a invencível deusa do eterno e desesperadoramente lento, mas irrefreável e incontornável, ciclo da natureza… que arrasta tudo ao envelhecimento e à gradual decomposição até a perda total de suas formas, até a morte (para que as coisas, voltando ao seio da terra, possam alimentar o nascimento e a evolução de novas formas no mundo).
Na linguagem científica de hoje, chamaríamos isso de entropia. O poder de Ereskighal, incessante e continuamente exercido, é o poder natural da entropia. Entropia é a tendência natural, expressa pela segunda lei da termodinâmica na Física, de levar tudo a ir perdendo energia, a ir perdendo as formas, a ir incessantemente perdendo informação, envelhecendo, se desmanchando, deixando de existir… morrendo.
Flusser falava da entropia negativa, ou neguentropia — tendência dos seres vivos de se organizarem, tomarem formas cada vez mais complexas ao longo da evolução natural, negando a entropia, resistindo a ela… e o ponto máximo de culminância da neguentropia, da resistência contra a morte energética e a dissolução em ausência de forma e de informações, seria a espécie humana.
O problema com isso — problema que me deixa ainda mais pessimista que meu mestre Flusser (que já era por si só consideravelmente pessimista) — é que a a tal tese da “entropia negativa” já não é mais abraçada pelos físicos: a própria complexificação dos seres orgânicos ao longo da evolução parece não passar de uma ilusão pseudoneguentrópica, uma falsa aparência de preservação, de sobrevivência, num movimento que é muito melhor explicado como resultado da própria entropia, da própria dissolução da natureza rumo à morte.
Não, não somos o ápice de um processo de resistência contra a morte: somos, com toda a nossa complexidade orgânica e apesar do que ela aparenta, a própria manifestação mais extrema do processo de decadência natural, de envelhecimento, perda de forma e dissolução. Os seres orgânicos são paradoxalmente manifestações da própria morte, dotadas da capacidade de se iludir quanto a isto. E quanto mais complexo o organismo, ainda mais aprofundado ele está nessa sua manifestação da entropia e da morte.
Os mesopotâmicos, milênios antes de nós, estavam bem menos iludidos: Ereskighal é realmente invencícel, e seu poder — o da entropia e da morte — incessante e irrefreável, agindo sobre npos a cada instante.
A dor nas costas de meu cãozinho era isso. A mordida de Ereskighal, a mesma terrível mordida que sinto em cada câimbra ou falha física da idade, nos meus já quase cinquenta anos.
Ereskhigal é impiedosa, absolutamente indiferente ao que quer que os vivos sintam ou façam, e muito superior a tudo isso. É o lado sombrio e desumano de Inana que ela própria aprende a enfrentar e assumir, e que os mesopotâmicos entendiam como uma “frieza” emocional adquirida pelo sofrimento, pelo “estupro” da terra. Na verdade Ereskighal não “odeia”. Já odiou, não odeia mais. Agora é apenas… indiferente.
Foi assim que senti o impacto da notícia evidente, de que meu cãozinho tão amado estava… envelhecendo! — assim como eu. Os sinais da velhice, nessa perspectiva, são os sinais do caminho do qual não nos podemos desviar, por mais que queiramos, porque somos arrastados por esse caminho por forças maiores que as nossas, que nos arrastam vindas de fora e de dentro de nós. São os sinais da morte vindo, porque o caminho da vida, por mais que nos iludamos, é o caminho para a morte.
Isso me assolou de uma maneira difícil de descrever. A ideia de que algum dia, necessariamente mais cedo do que o esperado, um dia no futuro que eu não poderia apagar da minha mente desde já, o meu cãozinho querido sumiria, levado do meu mundo por Ereskighal, levado do meu mundo pela morte.
6. Humano: os medos e dores da consciência do fim
Jorge Luís Borges tem um belíssimo conto chamado O imortal.
É a história de um homem em busca da imortalidade — o mesmo tema básico da lenda de Gilgamesh, que também procura por isso depois de ter vivido a terrível e angustiante morte de seu amigo inseparável, Enkidu — o forte, dócil, justo e corajoso Enkidu, com seus chifres ainda assinalando sua original e perdida integração à natureza, com sua naturalidade e pureza, meio boi meio gente, e com sua fidelidade verdadeiramente canina pelo amigo.
Enkidu, na lenda de Gilgamesh, morreu doente por castigo dos deuses no lugar de Gilgamesh, numa morte lenta e dolorosa. Foi castigado por ter se aventurado ao lado desse ousado e imprudente amigo em uma luta de enfrentamento dos deuses que não era a sua — mas na qual sentia a obrigação de acompanhar o insensato companheiro a fim de aconselhá-lo, protegê-lo e ajudá-lo a todo custo… bovino, mas de fidelidade claramente canina, como já mencionei. Essa morte do amigo torna mais premente e desesperada a busca de Gilgamesh pela imortalidade, até o capítulo final, em que finalmente aceita o fato de ser humano, e não um deus… o fato de ser um mortal.
Entretanto, no conto de Borges, que é diferente, algo estranhíssimo e bem menos comovente acontece: um anticlímax ainda menos dramático que a aceitação final da mortalidade humana por Gilgamesh após tanto lutar contra a morte.
O protagonista do conto de Borges chega enfim à cidade dos “imortais” para lhes decifrar o segredo… e descobre que os imortais, curiosamente, morrem a todo momento. Morrem aqui e ali, feito moscas, só que nem se preocupam com isso. Morrem sem que isso tenha para eles a menor importância. Eles nem sequer socorrem quem esteja a caminho da morte e por acaso ainda possa ser salvo! Nada. Simplesmente ignoram a morte, que os vai levando de qualquer modo, um a um. Esta é sua “imortalidade”: a inconsciência, a inocência, a ilusão negativa, a pura e simples, chocante, negação desse evento… da morte.
O que se pretendia afinal, em qualquer uma dessas fábulas, a de Borges e a anônima sobre Gilgamesh? Algum desfecho que miraculosamente rompesse com a ordem natural das coisas no universo? Os homens morrem. É tudo.
Nesse mesmo sentido, a maldição de Dumuzi na velha lenda suméria — a maldição do lobisomem — foi muito pior que a maldição de Gugalama, o touro. E o foi por duas razões.
Em primeiro lugar porque foi injusta. Mas uma trágica injustiça que não se podia evitar perpetrar, em nome da ordem natural das coisas, a ordem de funcionamento de tudo no universo, e que encaminha cada coisa para sua morte como parte dos insuportavelmente lentos ciclos da natureza, conforme a lei da fria Ereskighal.
Uma ordem que, segundo os Sumérios da Mesopotâmia, tinha que ser preservada a todo custo pelos deuses, de modo que sacrificar seu amado Dumuzi, para Inana (lado “luminoso” da própria Ereskighal), foi ainda mais heróico do que sacrificar a si mesma em sua morte empalada para a refertilização do mundo. Era preciso, porque sem a maldição de Dumuzi tudo se destruiria.
Depois do desequilíbrio gerado no universo pela bravata de Gilgamesh e Enkidu, matando Gugalama (o touro do céu), se nada fosse feito pelos deuses não seria apenas o fim da fertilidade da terra e o fim da humanidade, que daí tira seu alimento. Seria o fim do próprio universo e dos deuses — pois os deuses só existiam para manter o universo em ordem.
Os mesopotâmicos não parecem especular sobre isso, mas com o fim do universo, podemos prever que talvez permanecesse existindo somente uma única deusa, uma espécie de mar primordial imóvel, infinito e irracional, de perfil feminino. Porque esse “caldo” primordial feminino estaria para além do universo. O universo inteiro, para os mesopotâmicos, estava em uma bolha de ar no fundo desse mar vivo, misterioso, feminino e imenso.
Mas acima de tudo, a maldição de Dumuzi foi a pior, em segundo lugar, porque não foi uma transformação definitiva em animal. Ele teria meio ano como lobo, meio ano com forma humana, para sofrer com a consciência de sua maldição. Claro… porque um lobo que noção pode ter de ser “amaldiçoado”, e como sofreria com uma coisa dessas? Um lobo é um lobo, nada mais. Assim como Gugalama era apenas o touro celestial dos chifres de lua e do tropel de terremoto, em sua grandeza e beleza, e com o poder fertilizante desses chifres — representação dobrada do órgão sexual com o qual teria violado Ereskighal, rasgando a carne da terra para fecundá-la. Entretanto, quando em forma humana Dumuzi teria sim, a dolorosa consciência de sua injusta condição.
Pois bem: para mim, dar-me conta do significado daquela dor nas costas da Chiquita, a consciência daquele primeiro sinal de que o meu cãozinho tão jovial na verdade estava, como eu, envelhecendo, no caminho natural da morte, me deixou estarrecido. Tenho vocação para o drama, é verdade, e tendência a exagerar as coisas. Começou a me ocorrer que talvez em breve, muito em breve, eu tivesse que me despedir desse meu caxinguelê tostado com olhinhos de jabuticaba e que sapateou na caixa de açúcar — esse animalzinho que aprendi a amar e cuja imagem me vem sempre abanando o rabo no colo de minha mulher, como se fosse uma bebê peludinha da gente.
Então poucos dias depois, um tanto angustiado — e aqui começa a primeira das duas experiências especiais que tive em contato com esse cão, e que gostaria de contar — me veio de repente uma súbita e tranquila aceitação da perda próxima, uma súbita compreensão de que assim as coisas são, de que é a ordem natural deste mundo, e de que, afinal, o tanto que passei com esse cãozinho ao nosso lado foi já suficientemente maravilhoso.
Fuga da dor de pensar no assunto? Antecipação covarde para sofrer menos? Talvez. O fato é que nesse dia abracei de modo especialmente sentimental a Chiquita, fazendo o mais gostoso cafuné de corpo todo que sei que ela adora, e em seguida, olhando-a bem fundo nos olhos, me despedi mentalmente transbordando de carinho e agradecendo, agradecendo pela passagem maravilhosa dela na minha vida, e pensando que ela não se preocupasse, que fosse tranquila quando chegasse a hora. E a abracei novamente.
Surpresa minha (ou imaginação?), o cãozinho pareceu comovido.
E nos dias seguintes, para o meu mais pavoroso terror (ou imaginação minha mais uma vez?), ela, mesmo lá do fundo da sua inconsciência canina, pareceu como que instintivamente “aceitar a coisa”, fosse ela qual fosse, aceitar a despedida. Mas de uma maneira que me pareceu deprimente, assustadoramente deprimente. Não pulava nem brincava mais tanto, comportava-se como se estivesse já indo e simplesmente não houvesse mais o que viver… — o que quer que isso realmente quisesse dizer… porque eu havia como que informado que algo como de “definitivamente” nessa tal despedida iria acontecer, que seria um “adeus”.
Desgraçadamente, eu havia como que preparado a Chiquita para isso, e assegurado que era assim mesmo que eram as coisas, que não havia o que ou por que continuar insistindo para manifestar tanta vida… como se com essa simples aceitação, sem mais, estivesse enfim tudo bem. E de fato a Chiquita de repente apenas, e calmamente, parecia… esperar a morte?! Claro, claro, tudo imaginação minha, não era possível isso.
Mas ainda assim… passei uns dias verdadeiramente horrorizado.
Sentia-me culpado. De alguma maneira, sentia como se tivesse transmitido a ela algo dessa consciência de morte por vir. Era horrível, horrível, imperdoável, horrível. Mas devia ser imaginação, tinha que ser imaginação.
Ignoro se a cachorrinha se comportava assim também com minha mulher. Nunca lhe contei nada disso, nem ela fez qualquer comentário nesse sentido sobre a Chiquita. Mas na minha presença era assim, o cãozinho não era mais a filhotinha cheia de vida que por alguma razão desconhecida tinha uma dorzinha nas costas. Comportava-se de repente como uma cachorra idosa e tranquila a sentir dores normais e esperar calmamente pelo fim. O que estou dizendo? Cachorros não pensam nessas coisas, certamente. Mas de algum modo, o meu gesto parecia ter provocado nela todo esse novo quadro de comportamento diferente.
Que direito tinha eu de lhe tirar toda aquela alegria e vitalidade? Será? Será que eu tinha mesmo feito isso com aquele meu fatídico abraço como que de despedida? Será que, por alguma telepatia inconsciente, a tinha levado a uma espécie de “entreguismo” conformista em face da idade e da proximidade da morte? Será que.. será que eu lhe tinha roubado um tanto da alegria, sem querer?
Estava mortificado por isso. Tinha que corrigir minha “despedida”, fazer a Chiquita sentir de novo que ainda era viva e vivíssima.
Minha mulher, se lesse isto, decerto pensaria meu deus, casei-me com um esquisofrênico, completamente maluco! — …mas ela já sabe disso.
E aconteceu o seguinte: ainda sempre achando que podia estar tudo na minha imaginação (coisa que continuo achando), vim chegando um dia do trabalho com todo um preparo psicológico e emocional para me comportar de um modo inteiramente outro com a Chiquita, e passar-lhe, digamos assim, a ideia de que o que quer que fosse “já passou” e agora estava tudo vivo e alegre outra vez. Até respiração trabalhei, pra chegar em casa com uma vibração diferente. Chegando, abracei a Chiquita com a maior e mais carinhosa vivacidade que podia, olhei no fundo dos olhos dela, como da outra vez, e com a mais profunda e jovial alegria, pensei: pronto Chiquita! Passou, agora vivos! Vivos!
A reação dela me chocou. Na verdade me assustou, porque me vez pensar até que ponto ia realmente essa minha paranoia esquisofrênica: a Chiquita de repente, do nada, deu um pinote e saiu pulando feito a filhotinha que sempre pareceu, numa alegria impressionante como se tivesse nascido de novo. Correu para lá e para cá, e foi buscar a bolinha de borracha toda roída. Mas não se contentava, correu atrás de outra bolinha além daquela, queria as duas ao mesmo tempo!
Depois mordeu e chacoalhou alegremente o cobertor preto do sofá, pulou em sua caminha de cachorro, pulou de novo no sofá, bagunçou enlouquecida de alegria as almofadas jogando-as pra todos os lados, e finalmente se atirou de barriga pra cima com os olhos fixos em mim numa alegria doida… e dali a pouco, começou toda a correria de novo. E pulava também em cima de mim. Sentei-me no sofá sem ação, pasmo, e percebi que estava chorando de alegria. Não muito, só de leve, sabe, assim de umidade que a gente limpa com a mão. A cãozinha, feito louca, rolava pra lá e pra cá no sofá, e às vezes deitava a cabeça no meu colo, na maior agitação, feliz da vida. Era como se eu tivesse, digamos assim, dado a ela a permissão de continuar vivendo pra valer.
A coisa me impressionou um pouco mais quando aquela dor nas costas, que o veterinário disse que era quase certo que aumentaria e se tornaria crônica, porque era da idade, simplesmente desapareceu. A Chiquita se recuperou totalmente, e continua até hoje… filhotinha!
Um pouco assustador tudo isso.
Mas a segunda experiência que vivi com a Chiquita, em seguida, a última que vou narrar aqui, e que me marcou pra valer, foi ainda muito, muito mais interessante… e estressante também.
7. Coragem
A Chiquita tem medo de trovões e relâmpagos. Um medo irracional e pavoroso, como se alguma monstruosa entidade sobrenatural de força imensurável pretendesse fazer desabar sobre ela um castigo equivalente à própria morte.
Os relâmpagos e principalmente os trovões — assim como estouros de rojões em tempo de copa do mundo ou na virada do ano — são os únicos visitantes nada bem-vindos da casa que essa valente cachorrinha não se atreve a enfrentar de jeito nenhum. Foge pra debaixo do sofá, onde se sente menos insegura, ou se engancha desesperadamente nas almofadas do sofá junto a nós, com as unhazinhas cravadas, ou na coberta preta de que gosta, querendo se enfiar encolhida por debaixo de tudo e bem perto de onde possamos protegê-la.
Minha mulher, mais firme que eu, diz que não devemos dar colo nem carinho nessas horas, porque fazer isso é estimular — premiar — os comportamentos e sentimentos de pânico que ela já está tendendo espontaneamente a realimentar e realimentar. Mas até um tempo atrás ela própria às vezes não resistia e a pegava no colo… até que desenvolveu a técnica de distrair a Chiquita com a bolinha de borracha, jogando para ela pegar.
Num desses dias de chuva, comecei a ser assombrado novamente por aquela dolorosa experiência telepática do sentimento de morte por vir (ou alguma coisa parecida e insondável) que me pareceu ter de algum modo transmitido à Chiquita, daquela outra vez. E me veio a lembrança emocional daquele sentimento de culpa e responsabilidade naquela ocasião.
Note-se que sentimentos assim são muito estranhos e incomuns na minha vida, por isso particularmente marcantes… é que responsabilidade e culpa, para mim, são coisas normalmente dissociadas. Na verdade coisas sem qualquer conexão uma com a outra, embora compreenda que para muita gente venham juntas — …sei que conectar responsabilidade e culpa é comum em sociedades de formação cultural marcada por presença forte de certas religiões, em tais sociedades até mesmo ateus como eu não escapam por completo de conexões como essa.
Na maioria dos casos tendo a tomar culpa como uma espécie de patologia emocional horrível, absolutamente inútil e, do ponto de vista especificamente moral, absolutamente desnecessária para não dizer inclusive perniciosa. Liga-nos ao passado e nos faz sofrer de modo totalmente desnecessário, a não ser para a satisfação de sádicos ao nosso redor. Responsabilidade, por outro lado é inteiramente outra coisa, conectada ao futuro, àquilo sobre o qual há sim o que se possa fazer para que as coisas resultem melhores do que foram antes. Pensa-se daqui para a frente, e só. O passado se torna educativo, e não punitivo.
Entretanto, como já disse, nem sempre conseguimos escapar por inteiro de condicionamentos sociais sobre nossas emoções para nos tornarmos efetivamente responsáveis, isto é, para efetivamente respondermos nós mesmos por nossas ações no presente e no futuro — as únicas sobre as quais é possível qualquer responsabilidade, visto que o que está feito está feito, com a mesma fatal irreversibilidade do próprio envelhecimento em direção à morte, de modo que nada há a fazer quanto ao feito, a não ser no campo da fantasia ou da livre-interpretação, aonde esta ainda é cabível.
O fato é que observar os olhos esbugalhados de pavor Chiquita ao ouvir uma trovoada distante, naquele dia, me trouxe de volta essa mesma estranha, incômoda, incomum e indevida associação de responsabilidade e culpa que já havia experimentado daquela outra vez, quando tive a impressão de lhe ter sugado telepaticamente a alegria de viver através de um carinho mal direcionado.
Sentia-me tremendamente responsável pelo bem-estar daquela cachorrinha amada naquele momento, porque sentia que de algum modo tinha influência, como que telepática, sobre os sentimentos dela… de modo que precisava fazer a coisa certa. Precisava fazer algo, e algo que fosse a coisa certa. Não podia de modo nenhum meter os pés pelas mãos novamente com aquela cãozinha. Não podia deixá-la sofrer, e também não podia errar, porque igualmente a faria sofrer. Senti a responsabilidade crescendo muito muito muito aflitivamente, porque não sabia o que fazer, e a própria aflição me nublava o raciocínio.
Precisava fazer algo que a salvasse daquele medo irracional. Era minha responsabilidade, minha terrivelmente difícil missão naquele momento. Mas o quê? O quê? O quê? — Senti uma angustiante aflição crescendo mais e mais em mim conforme a chuva vinha chegando e o volume dos trovões aumentando. E aí surgiu em mim o pior: a consciência clara e alarmante de que a Chiquita poderia a qualquer momento começar a captar essa minha aflição, como uma antena supersintonizada, e absorvê-la para si feito uma esponja. Sim, feito uma esponja! Era assim que ela fazia, era assim que parecia funcionar a coisa: minha meiga cachorrinha era, coitada, uma telepata involuntária que absorvia as minhas aflições!
Comecei a controlar minha respiração, forcei a calma, baixei o ritmo de tudo na minha mente, e tentei deixá-la clara. Tinha que relaxar o corpo, sim, relaxar, senão a cachorrinha perceberia a tensão! Mas quanto mais pensava nisto ainda mais tenso ficava. Era difícil. Tentei então olhar pra outro lado, pensar noutras coisas.
Aí percebi que estava conseguindo.
Um pouco tenso no fundo, é verdade, mas acho que na superfície estava fisicamente calmo. E é claro que a tal “telepatia” canina deveria ser física, já que telepatia mesmo não existe. A cachorrinha provavelmente captava sinais sutis de tensão emitidos pelo meu corpo, e eu agora estava sim, bastante apto a lidar com isso. Estava conseguindo controlar o corpo e a postura, bem como a expressão facial. Os trovões estavam chegando, a Chiquita mais e mais aflita. Experimentei então minha voz dizendo em voz alta de mim para mim uma bobagem qualquer. Estava calma. Ótimo. Voz calma, autodomínio, firmeza e tranquilidade. Era o tom certo. E estava com a postura certa. Hora de agir, e de repente, com grande clareza, já sabia o que fazer.
Não poderia ensinar à Chiquita como respirar, mas podia ajeitar-lhe a postura, e infundir-lhe o sentimento certo para enfrentar os trovões. Sentia-me fortalecido para isso pela sabedoria acumulado de milênios na história da supremacia evolucionária humana, como se Enlil, o próprio deus mesopotâmico dos ventos, das tempestades e raios, não pudesse me vencer… porque eu era o mais evoluído dos seres, e havia atingido a sabedoria do mais evoluído ateísmo, e da compreensão desencantada, natural e materialista das coisas. Havia apenas dois organismos vivos ali, o cãozinho com seu medo irracional dos trovões, e eu, humano “superior”, consciente de tudo isso, e por essa mesma exata razão o responsável.
Hora de tomar atitude, então. Vamos lá, cãozinho, vamos lá, minha querida amiguinha: atitude! Fazendo carinho e massagem, mas com voz calma e firme, repetia “Chiquita, força, coragem. Chiquita, força, coragem.” — e não a deixava encolher-se com os trovões. Ali, sentada no sofá ao meu lado, com as mãos massageando-a calmamente, endireitei-lhe o corpo numa postura valente, peito erguido, pescoço estendido, sem baixar a cabeça. “Chiquita, força, coragem. Chiquita, isso menina… força, coragem. Não é nada. Força, coragem.”
É claro que ela não “entendia” — e que importa? Ela sentia, nitidamente o que as palavras queriam dizer. Pelo tom de voz, pelo modo como as mãos a massageavam e firmavam carinhosamente em postura mais ereta e de enfrentamento tranquilo, sem deixá-la encolher-se, e reprimindo baixinho, com carinho e voz grave, quando tremia ou cedia ao seu medo. “Chiquita, força, coragem. Chiquita, força, coragem.”
Dali a pouco fui tirando as mãos aos pouquinhos, e ela foi ficando, sem reclamar, firmemente, heroicamente, trovão após trovão. Parecia começar a acostumar-se. Olhava para mim em busca de aprovação e eu sorria, mas às vezes escorregava para um olhar de leve desespero e queria minhas mãos de volta. Eu resistia e apenas dizia: “Coragem, menina… coragem, força, coragem.”
E ela ficou assim algum tempo. Resistindo aos trovões, e olhando de soslaio pra mim. De vez enquanto eu fazia um carinho, porque estava ali firme, sentadinha ereta, sem se esconder: “Isso, menina, não é nada. Coragem, força, coragem”.
Às vezes temia que meu autodomínio estivesse me escapando, e que ela estivesse percebendo minha preocupação e aflição, o peso inteiro da responsabilidade que sentia, a necessidade de cumprir minha missão, de salvá-la do medo dos trovões. Mas olhava para ela e estava lá, firme, a cachorrinha valente. Estava dando certo, eu tinha certeza que sim, e que ela não percebia a tensão oculta da responsabilidade pesando no meu coração.
E então aconteceu: de repente, sem aviso, ela desabou, coitada. Desmanchou de repente quase num desmaio, virou pó, como um castelo de cartas de areia.
Caiu deitada absolutamente exausta e mole ao meu lado, coladinha em mim, carente… “Carinho, carinho, não força!” — ela me dizia com o corpo, sem forças sequer para levantar o focinho. E então, nem meio segundo depois… desabei assim do mesmo exato modo!
Caí colado a ela, subitamente exausto… virei pó como um castelo de cartas de areia, com meus milênios de sabedoria pairando em flutuação sobre minha cabeça e fora dela, numa poeira ainda mais fina e indistinta, virou tudo pó. “Humano”, “canino”, “deuses e deusas”, “Mesopotâmia”, “pré-história”… tudo se desfez em nada, todos os conceitos se evaporaram, toda a consciência se evaporou. Meu corpo agora era só corpo, e simplesmente desabou ali, sem qualquer energia restante e sem controle também, era só corpo inerte, colado ao da cachorrinha amiga… — caí molemente, sem forças, no sono.
Desmaiei.
Fim da história.
(Mas dormimos gostosamente!)
…
8. Bolinha de borracha
(ou A sabedoria discreta da esposa)
Fico pensando o quanto o realmente importante na vida não são propriamente as responsabilidades, e ainda menos algo como uma luta contra os medos e a morte… Fico pensando se o que importa não é afinal deixar tudo isso pra lá, ainda que não se consiga iludir um fundinho do medo talvez incontornável, que nos vem de qualquer modo na medida da própria consciência.
Fico pensando se o que importa não é buscar justamente a alegria jovial, a fantasia leve, o prazer, a curtição do apostar na vida e no viver o quanto há pra viver — do melhor modo possível, mesmo sabendo que “vida”, ao fim das contas não passa de uma fantasia, de uma fuga fugaz da entropia, na qual cedo ou tarde desabamos… sim, que se há de fazer! A gente mal nasce, começa a morrer, dizia alguém muito sábio. A vida toda não é esse lento desabar, que se revela mais nítido quando ao fim se precipita mais depressa?
É só uma mudança de ritmo. Importa é o que vai rolando.
A vida é mesmo engraçada. Acho que ela é só isso que “rola”.
É curta e boa, essa danada da vida.
Bem vivida, a vida é uma bola.
Dedico este texto à Pimpa Junqueira Homem de Melo. Mulher admirável que, quando eu era pequeno, costumava chamar de “minha segunda mãe” — quase tão admirável, na verdade, quanto a minha mãe de verdade, aquela que me trouxe à vida. Há mulheres muito muito admiráveis no mundo. Precisamos aprender mais com elas.