• *PROPOSTA DO BLOG*

    O Blog Quemdisse visa uma postagem inicial mais ágil, descompromissada e espontânea sobre meus pensamentos e assuntos de momento, para um powterior exame mais aprofundado na “euciclopédia” ProjetoQuem (enciclopédia filosófica e interdisciplinar online, de vocação crítica e social, informativa mas com posicionamentos).

Contra o sacrificialismo no modo de ação revolucionário

O projeto de uma ficção filosófica

Entre meus diversos projetos simultâneos sempre em (lento) andamento — e ainda mais lento do que normalmente devido a uma pedra de gesso presa em uma das mãos —, há já um mês no momento em que escrevo estas linhas, está um livro de um gênero literário criado pelo filósofo Vilém Flusser: uma ficção filosófica. E seu tema é a relação entre pensamento mítico e razão filosófica na formação de um filósofo principiante (ou estudante de filosofia em geral)… o protagonista da história é alguém precisamente nessas condições, um estudioso de filosofia com seus pensamentos em formação, ainda em fase inicial.

O assunto diz respeito à questão política sim, o título deste artigo não engana. Diz respeito a problemas relativos a certos princípios gerais que têm servido de fundamentação filosófica para posturas de esquerda dita “revolucionária” em política, e envolve também questões  de psicologia política. Por isso peço ao leitor um pouquinho de paciência: vou começar falando de literatura e mitologia, mas chegaremos lá.

 

A mitologia mesopotâmica antiga e seus mitólogos

Esse livro de ficção filosófica que estou escrevendo não vai tratar diretamente da mitologia grega em comparação com a filosofia, e sim de fontes mitológicas muito mais antigas e primitivas que ajudaram a constituir-lhe os fundamentos: a mitologia mesopotâmica do terceiro milênio antes de Cristo, a mais antiga de que se tem registros escritos (em escrita ainda cuneiforme).

São mitos que giram em torno de dois protagonistas principais. O herói Gilgamesh, cujas histórias têm os seus registros já consideravelmente completos, apesar de algumas lacunas e contradições; e a deusa Inana, cujas histórias — soterradas por sob as mais conhecidas de Gilgamesh — só têm registros fragmentários, e exigem um certo exercício investigativo, de detetive. Isto significa que exigem querer, e muito, compreender a deusa Inana e toda a sua significação simbólica, para além do já tão famoso Gilgamesh.

A antiga mitologia mesopotâmica é muito estudada por adeptos do paganismo mágico e do ocultismo, pelos interessados em alquimia e em formas variadas de misticismo, e pelos mais libertos e profundos estudiosos do próprio cristianismo, que superando preconceitos, encontram nesses mitos as fontes originais de mitos cristão como o dilúvio, a ressurreição de Cristo e até mesmo toda a carga simbólica (e pessoalmente eu acrescentaria sadomasoquista) envolvida na crucifixação.

Mas em todo esse campo diletante e secundário de estudiosos do mito (que vale notar, não é de maneira nenhuma o campo dos mitólogos especializados), quem mais se dedica, e com maior profundidade, a esses estudos, em alguns casos chegando até a penetrar o campo dos estudos de fato especializados, embora de modo às vezes bem questionável, são os psicanalistas junguianos.

Destes, as contribuições não podem ser desmerecidas, pois chegam a afetar fortemente, e de modo interessante, importantes mitólogos (como o famoso e inteligente Joseph Campbell, ou o não tão famoso e quase absolutamente brilhante, genialmente polêmico, Walter Friederich Otto… contra o qual vale muito a pena debater, aliás).

Considero-me pessoalmente mitólogo, quase tanto quanto filósofo. E influenciado também por certas leituras junguianas desses mitos, apesar de não ser nem junguiano nem sequer de linha psicanalítica em meus posicionamentos em psicologia — a título de curiosidade, alinho-me principalmente entre os existencialistas e próximo à Gestalt… e entre os psicanalistas, minhas maiores simpatias vão para o materialismo, ou carnalismo, de Reich, não para Jung ou Freud.

 

Provocações para a ideia de uma ficção filosófica
baseada na mitologia mesopotâmica: 1ª) originais de Flusser

O que me levou a formular a ideia deste livro que estou escrevendo, foram duas provocações: de um lado, meu braço engessado e o sentimento de sua utilidade; de outro, o fato de estar começando a examinar,  junto com meu amigo Miguel, filho de Vilém Flusser, 19 caixas de material filosófico do seu pai que estavam em Nova Iorque, e que foram trazidas para cá.

O material do Vilém, consiste principalmente em volumes de livros publicados em diversas línguas e uma quantidade absolutamente assustadora de artigos, duvido muito que já todos publicados. O Miguel me sugeriu escrever um livro registrando e acompanhando o processo de exame desse material (coisa que vai tomar um bom tempo), e como ele vai me influenciando. É uma excelente ideia, e estou mesmo começando a formular isso.

Mas  a ideia, em conjunto com o fato de já estar estudando essa mitologia mesopotâmica, e de estar com a mão engessada, me provocou também o aparecimento desse outro projeto paralelo. Por quê? Porque estudar a filosofia flusseriana é para mim uma espécie de retorno às minhas origens, é retomar o início de minha formação filosófica.

Estudar o pensamento mítico, por sua vez, está nas origens da razão filosófica como um todo, ela nascer diferenciando-se disso — e, coisa curiosa, a razão filosófica é uma razão radicalmente reflexiva, que vai à raiz geradora das próprias questões que examina, a ponto de examinar também os seus próprios fundamentos e origens… então por que não brincar de examinar mitologicamente o aparecimento da filosofia em mim mesmo e na humanidade como um todo, ao mesmo tempo?

Mas decidi ir além da mitologia imediatamente “pré-filosófica”, ir além da mitologia grega: decidi ir, mais radicalmente, ao próprio exame do mítico já desde seus mais antigos registros escritos (os mesopotâmicos) e além, buscando na arqueologia da pré-história elementos para a compreensão (ou interpretação) desses escritos cuneiformes, desses antiquíssimos mitos ancestrais mesopotâmicos.

 

Mitologia mesopotâmica: o herói Gilgamesh e a deusa Inana

Esses mitos falam de Gilgamesh — ou mais precisamente de sua poderosa sombra que é outro personagem na verdade bem mais importante: Enkidu, o metamorfo chifrudo, a animalidade humana, o bode expiatório da autosuperação na cultura, o sacrificado protetor da natureza e dos animais, cujos cornos representam (sexualmente, inclusive) o poder de fertilização e de participação na produtividade da natureza (coisa que se vê também no símbolo pagão antiquérrimo da cornucópia, chifre oco recheado e transbordante de frutas, verduras e legumes).

Esses mitos falam também de Inana (ou Ishtar, na versão babilônica… a estrela), deusa inconstante da feminilidade. Deusa do amor e da guerra, da fertilidade e da destruição, prostituta dos deuses e patrona das prostitutas humanas — deusa cujas sacerdotizas eram também, na época, “hieródulas”, prostitutas sagradas — mas que é ao mesmo tempo a eterna virgem, apaixonando-se profundamente e desapaixonando-se a cada novo parceiro de hierogamia (hierogamos é o sexo sagrado). E porque se apaixona de novo e de novo, Inana vai sacrificando o parceiro anterior em favor do novo.

A própria sucessão de parceiros de Inana, no entanto, é representada na figura de um parceiro especial: Dumuzi (ou para os babilônicos Tammuz) — o pastor nômade, o andarilho, o eterno estrangeiro, o eterno outro. Destarte podemos dizê-lo o… mutante, aquele que nunca é o mesmo e que por isso, de certo modo, está sempre apenas “de passagem” para a cópula hierogâmica com Inana (segundo minha leitura da coisa).

(Curiosamente, Gilgamesh, não o mítico, mas o rei que de fato existiu com esse nome na cidade mesopotâmica de Uruk e que deu origem ao mito, era descendente de um pastor nômade de nome Dumuzi — coisa que se for incorporada ao mito, como pretendo fazê-lo, acaba por transformá-lo, todo ele, em uma intensa e violenta história de amor.)

 

Mão engessada, pedaço de carne

Mas e a mão engessada? E a maldita da mão engessado? O que tem a ver com tudo isto afinal? Pois bem, aí vai a questão do gesso na mão… Na mão, note-se bem, na mão! — este símbolo tão forte da produção cultural, da superação humana da natureza… a mão, com seu famoso polegar opositor, esse forte símbolo da ideia de… revolução).

Ocorre que, com esse gesso, sinto minha mão esquerda (a engessada) perder precisamente o seu caráter de mão — e ainda mais dramaticamente pelo contraste com a mão direita, que permanece tão ativa, tão construtiva e produtiva, tão gilgameshiana (pois Gilgamesh é o símbolo da tirânica e suicida superação cultural da natureza animal humana, do seu próprio lado Enkidu).

A esquerda engessada contrasta, para mim, brutalmente, com a atividade incessante,  tão humana e tão cultural da minha incansável mão direita (incluindo este mesmo instante em que seus dedos saltitam à minha frente no teclado do meu laptop, digitando estas palavras). Estou em flagrante desequilíbrio, e isto faz pensar.

Faz pensar a respeito da mão esquerda: na verdade faz ver que ela, neste momento, já não é (ou já não finge mais ser) uma mão. Posso enxergá-la na crueza de sua verdadeira condição: mão é uma palavra, apenas. O que tenho aqui é um punhado de carne e ossos (e outros tecidos orgânicos, se quisermos “recortar” ainda mais esse punhado em componentes rotulados, falando também de “veias”, “sangue”, “músculos”, “cartilagens” etc.). O que tenho aqui é um punhado de matéria orgânica pendurado no corpo… matéria ainda viva sim, sensível, mas nada mais do que isto: um punhado de matéria orgânica (casualmente envolto numa pedra de gesso).

“Mão” é apenas um rótulo que atribuímos a um recorte de nosso corpo — corpo que já é ele próprio um recorte separando de tudo o mais ao seu redor uma porção de algo (esse algo que rotulamos de “corpo”). Mas o corpo é ao menos um recorte mais fisicamente intuível, menos abstrato que esse recorte que rotulamos de “mão”, pois o corpo se desloca no contexto parecendo destacar-se dele, enquanto a mão não se destaca visualmente com corte nítido e preciso do braço do qual ela pende, e que já é parte do resto do corpo. Onde exatamente termina a “mão” e começa o “braço” nessa vaga região que no nosso português chamamos de “pulso”?

Os movimentos do pulso, justamente, são o que pode nos dar ao menos uma imprecisa noção de onde, na ponta do “braço”, começa exatamente a “mão”. Uma impressão mais precisa só pode ser obtida por exemplo junto aos radiografistas, pois o o raio-x pode mostrar o contorno da ponta do último osso do braço, no pulso, antes dos ossos considerados “da mão”.

 

Mão engessada, mordida da deusa

Ok, ok… mas o que é que toda essa medicina de boteco tem a ver, afinal, com os mitos milenares da Mesopotâmia? — É que a deusa Inana, assim como o heróico Gilgamesh, também tem sua sombra: Ereskhigal, a mãe natureza, o símbolo maior daquilo que o culturalismo antinaturalista de Flusser, tão claramente gilgameshiano, sempre parecia querer exorcizar, mas cuja presença no fundo reconhecia com mordaz pessimismo, para não dizer com um certo humor negro: a entropia.

Flusser era um campeão na luta contra a entropia. Mas por detrás de sua verve que, neste sentido, era frequentemente antinaturalista, artificialista, culturalista, acolhia a ideia de uma outra relação com a natureza, acolhendo-a nos braços da própria artificialidade humana — como se lê por exemplo no seu ensaio Caminhos (Uma espécie de introdução), no livro Natural:mente.  E nem por isso diminuía a intensidade da presença da animalidade natural nesse ser de artifícios, artefatos e artimanhas que é o homem — como se depreende da leitura atenta do genial livro Vampyrotheutis Infernalis… extensa e saborosa contra-analogiase podemos dizer assim, entre o ser humano e uma espécie particular de molusco gigante dos mares.

Trata-se de uma analogia na qual aliás, de passagem, Flusser indica (infelizmente sem desenvolvê-la de modo explícito mais que umas poucas linhas) a melhor crítica que posso imaginar à psicanálise fisiologista de Reich… uma crítica igualmente fisiologista, inclusive — pois Reich, no tratamento que dá ao que chama de “couraças musculares” humanas, adota como modelo o corpo externamente encouraçado dos artrópodes (aranhas, escorpiões, baratas etc.), quando teria feito melhor nos comparando ao modelo dos grandes molusos dotados de alguma ossatura interna, como o polvo gigante vampyrotheutis.

Mas voltemos à grande mãe mitológica de todo fisiologismo: voltemos a Ereskhigal, e à face entrópica de sua ação, que é em geral a que mais impressiona e assusta. Entropia é tendência de toda informação, de toda organização, de todo produto cultural e comunicacional, de toda autosuperação do humano em relação à natureza… de desmanchar-se nos puros punhados de matéria natural inerte, desorganizada, inculta e sem qualquer humano sentido. Bem assim como sinto minha mão esquerda neste momento: tomada pela entropia.

Minha mão esquerda foi abocanhada pela Ereskhigal. Está sendo digerida em massa informe de carne, não é mais mão. Tenho que esperar pacientemente que ela largue. E torcer para que largue. Nada mais há a fazer. Ereskhigal é a força mais poderosa da Terra. Do universo, possivelmente. E diante disto não sou nada. Não somos nada. Nem eu, nem vocês, meus leitores, nem a humanidade inteira com todos os seus milênios de civilização. Ando agora, então, com a deusa Ereskhigal pendurada pela boca no meu pulso.

Por isso brinco sempre de dizer, fazendo alusão a minha companheira, Paula (que tem a paciência de me aguentar como esposo), que estou assim porque “a mulher me mordeu”: é que no no fundo é mesmo isso.

A mordida de Ereskhigal é a mordida fatal, dissolvente, destruidora de tudo o que seja cultura ou esforço de superação gilgameshiana. É a mordida insuportavelmente lenta (e no fundo sedutora, porque não deixa de ser também mordida de Inana, do sentimento, da vida, do combustível para futura superação). Mordida tenaz, que puxa em movimento sempre incessante, contínuo e inescapável. Mordida da deusa Ereskhigal — a mãe natureza, o eterno feminino (que está evidentemente também em qualquer “mordida” de quem é esposa, amiga, companheira, em sentido metafórico ou não).

É a mordida que não larga, que se prolonga. A mordida do ciclo natural da matéria, que em seus lentos processos de transformação, devora e arrasta para si, dissolvendo em si, todas as formas, para fecundarem nela, nessa dissolução, novas formas ou versões renovadas das mesmas.

No seu ritmo de vagarosa inércia entrópica, Ereskhigal nos digere leeeeeeeeeentamente. Nos arrasta nessa sua entropia para só muuuuuuuuito mais tarde — talvez — nos largar aos pouquinhos, neguentropicamente, até que possamos tomar a ação e gerenciar novamente as formas que gerenciamos na vida corrente (inânica e gilgameshiana) de todos os dias… a forma da minha “mão esquerda”, no caso, enquanto realmente mão.

Mordido por Ereskhigal, é preciso, como já disse, paciência, nada mais há a fazer por enquanto, senão esperar. Ela provavelmente virá sim a devolver renovado, vivo, carregado da energia de Inana, o pedaço que me abocanhou e “matou”. Ainda falta muito, acho (espero) para que queira me devorar de corpo inteiro afinal, e dissolver em um grande pedaço de matéria orgânica inerte essas frágeis formas abstratas a que damos nomes de “alma”, “mente”, “vontade”, “razão”, “personalidade” etc. etc. etc. etc.

Ereskhigal vai largar minha mão quando quiser largá-la, se quiser largá-la. Posso apenas apelar para Inana, pedir-lhe atenção. Inana é o lado vivo da deusa, que anima minha mão de vez em quando com pontadilhas de dor e outras sensações, para que eu saiba que ainda está viva, e com momentos de um certo torpor ali que não deixa de trazer um sutil prazer sedutor, como o que sentimos quando nosso corpo vai adormecendo. Inana me lembra que essa mordida tem também algo de sensual, como uma mordida de amor.

Posso puxar o meu braço e pescar Inana, a sedutora vida, de dentro de Ereskhigal? Ainda não: meu Gilgamesh interior que talvez capaz de seduzi-la, a força cultural heróica que pode fazer desse punhado de matéria orgânica engessada novamente uma mão vibrante e viva — acarinhando Inana, a vida — ainda não tem tanto poder para isso, para tomar a ação. A mordida de Ereskhigal ainda me prende ali com força. É preciso esperar.

Contra o sacrificialismo

Feita assim brincalhonamente, em metáforas psicológico-literárias, a conexão entre mitos mesopotâmicos e mãos engessadas, falemos um pouco desse livro de ficção mitológico-filosófica que estou planejando escrever, para que possa vir à tona finalmente, depois de tanto gesso psicológico e mitológico, o que se libera de político nisto tudo, e que me levou a dar a este artigo o título Contra o sacrificialismo no modo de ação revolucionário.

Desde já e por enquanto indico apenas que o sacrificialismo a que me refiro tem conexões históricas profundas com o que se costuma interpretar do modo dos antigos de lidarem com suas entidades míticas. As relações com tais deuses e monstros e semideuses heróicos, e mesmo as relações entre eles, segundo os intérpretes da mitologia mesopotâmica (sobretudo os de herança junguiana) tende a pautar-se na ideia de sacrifício. Guardemos por ora esta informação. Retornaremos a ela mais adiante.

Em meus rascunhos e apontamentos para o livro, que se distribuem em toda uma árvore de tópicos de ficção narrativa e de dissertação a serem tratados, com suas ramificações, há um tópico ao qual dei o seguinte título: Possibilidade da substituição da troca sacrificial (pautada na perda compensada) pela troca de excedentes, de excessos (pautada nos ganhos).

Por aí se pode intuir que tratarei da noção mágico-mítica de “sacrifício” da antiguidade como algo presente e atuante ainda hoje, no fundo do modo como se costuma conceber o que seria uma atitude politicamente revolucionária — e com isto quero dizer uma atitude de defesa da “revolução”, aproximadamente no sentido inaugurado para esse termo pelas tradições socialistas europeias do século XIX).

 

O paralelo com um livro de Flusser

A ideia do livro de ficção mitológico-filosófica que estou projetando (ou que está se projetando neste “nó cultural” particular que sou eu), é a de fazer um pouco como Flusser fez (mas fez sem explicitar o que havia de traço autobiográfico ali) em um de seus livros inaugurais: História do diabo. Seu diálogo com o judaísmo e o cristianismo, tendo vindo o próprio Flusser da primeira dessas duas formações culturais, diálogo paralelo ao de um outro interlocutor, Vicente Ferreira da Silva (este vindo da segunda formação, cristã), é um diálogo que estava já de certo modo presente naquele seu romance inaugural de ficção filosófica, que brinca com elementos da mitologia cristã.

Só que meu diálogo não é com o judaísmo e o cristianismo, mas com os “magos” maluquetes que cultuam, de um modo ligeiramente hippie, o pensamento mágico-mitológico; gente com a qual dialogo com simpatia (inclusive porque minha mulher é ligada a um simpaticíssimo grupo deles), mas entrando nesse diálogo na condição de materialista e ateu… além de um tanto brincalhonamente cínico, talvez.

Esses neopagãos de ascendência meio que hippie são realmente simpáticos.

 

De Enkidu até o bode expiatório

De qualquer modo, o Enkidu do mito de Gilgamesh é a interessantíssima origem histórica, simbólica e lógico-genética do bode expiatório sacrificial de inúmeros povos pagãos antigos. (Bode expiatório, pois é! — Essa figura tão mal e superficialmente compreendida pelo antropólogo René Girard, uma de minhas maiores decepções. O bode expiatório! — Essa figura cultivada e “incorporada” como um modelo por grandes escolas de atores em todo o mundo, como a do excelentíssimo Vittorio Gassman, por exemplo).

O Enkidu mesopotâmico é também a origem do deus Pã dos antigos gregos, e daquilo em que os cristãos medievais quiseram ver não a vítima sagrada pagã, sobre a qua se lançam todos os olhares e se descarregam catarticamente todas as emoções… mas sim o vitimador, o “mau”, o castigador: o “diabo”, de que fala Flusser.

Curiosamente, Flusser compreende muito melhor diversos aspectos sutis e interessantes desse símbolo histórico especialmente útil para o trabalho de atores, embora se mantenha tão limitado às toscas referências cristãs quanto o decepcionante Girard (talvez Flusser tenha visado apenas manter a coerência nas referências que colheu para a ficção em sua narrativa; na minha, estou escolhendo outras).

Os cristãos, do mesmo modo, viram feiticeiras “más” naquelas entidades imaginárias ou mulheres reais cujas atitudes tinham origem histórica, simbólica e lógico-genética em Inana e suas sacerdotizas hieródulas. 

Destarte, se meu avô filosófico Flusser escreveu uma ficção filosófico-mitológica sobre o “diabo” cristão medieval, me sinto perfeitamente apoiado na ideia de escrever, de minha parte, uma ficção filosófico-mitológica sobre as origens ancestrais dessa entidade supostamente “má” e de suas supostas adoradoras, supostamente “más”…!

E se Flusser não deixa de fazer suas críticas ao diabo que o fascina, por que deveria eu deixar de fazer as minhas?

As minhas se dirigem especificamente ao aspecto sacrificial presente em todas essas linhagens de cultivo do “sagrado” — que por isto mesmo tem este nome — sejam elas linhagens pagãs ou não. E digo que o sacrificial, o sacro, o sagrado do qual pretendo fazer a crítica, está ainda mais radicalmente presente na linhagem cristã, ao contrário do que alega com fraquíssimos argumentos a antropologia, ela própria indisfarçadamente cristã, de René Girard — o decepcionante). E está igualmente presente sob as mais diversas máscaras, jamais superada até o fundo, nas esquerdas revolucionárias socialistas, quase todas, especialmente as da linhagem marxista, autointitulada “materialista” (aliás não muito coerentemente).

 

Sundeterminação magico-mitológica das religiões:
um erro de Nietzsche

Quanto ao foco oficial de cultivo do sacro (do sacrificial), isto é, as religiões, o pensamento mágico-mitológico me parece não só muito mais interessante do que as grandes religiões monoteístas e o budismo, mas também muito mais mundialmente influente, bem ao contrário do que se costuma pensar — pois me parece cada vez mais que ele (considerado desde suas versões mais primitivas, na pré-história, e mais nitidamente a partir dos mitos mesopotâmicos, porque já escritos) na verdade subdetermina inconscientemente inclusive todas essas religiões, a começar pelo próprio pensamento judaico-cristão.

Dito de outro modo, pensamento judaico-cristão me parece cada vez mais todo ele, em última instância, subdeterminado por influências do antigo paganismo mágico — e diria que essencialmente inclusive. A tal ponto, que pretender “purificar” por exemplo o cristianismo em relação a isto seria o puro e simples suicídio do cristianismo.

Destarte Nietzsche está errado: errou o alvo. Ou melhor, não foi profundo o suficiente — então me corrijo, pois acertou sim o alvo, talvez. Mas não o atingiu. Porque sua crítica só tocou a superfície da coisa, só a carapaça, o courinho na pele da couraça muscular, digamos assim. A massagem nietzscheana não quebrou o nó da coisa. A questão é que o cristianismo e o judaísmo não são alvos tão importantes para a crítica, eles são essa mera superfície.

É preciso ir mais longe, ser mais radical, porque a raiz da coisa que em Nietzsche se pretendeu criticar ainda não está no fundo mais imediato do pensamento judaico-cristão. Está em alguns elementos subdeterminantes presentes já nessa influência pagã anterior ainda mais profunda e antiga que sobreviveu nele. E falar do apolíneo e do dionisíaco (referências de Nietzsche aos deuses gregos Apolo e Dioniso), está longe — muito, mas muito longe mesmo — de dar conta do recado.

 

Sacralização camuflada em pensadores políticos “materialistas”

Vejamos de novo o título que dei àquele tópico dos rascunhos para meu futuro romance de ficção filosófica: Possibilidade da substituição da troca sacrificial (pautada na perda compensada) pela troca de excedentes, de excessos (pautada nos ganhos) ,

(Não deixa de haver algo de nietzscheano aí, apesar dessa noção nada nietzscheana de “troca”. Reconheço isso. Todavia a referência mais exata seria àquele que Nietzsche, sem assumi-lo, pretendeu em certa medida continuar e reinterpretar fazendo o que julgava talvez ser uma “radicalização”: falo do anarco-individualista Max Stirner. Gosto de ler aos dois juntos como se fossem partes mutuamente complementares de um só, combinação na qual dou preferência a Stirner. Nietzsche não me parece de fato mais radical, apenas diferente. A combinação dos dois dá um bom samba.)

Retomemos a questão do sagrado. Chamemos a essas entidades que aparecem nos mitos (deuses semideuses, monstros etc.) de potências. Para operar, como pretendo, uma tal substituição das trocas sacrificiais pelas trocas de excessos, seria preciso então o nosso equilíbrio em relação a essas potências, via potencialização do humano rumo a uma relação horizontal com tais potências.

(Isto, reconheço, por enquanto lembra de algum modo a filosofia de Feuerbach, só que dirigida a algo histórica e geneticamente mais profundo e subdeterminante que o objeto da crença cristã… o conhecedor do assunto perceberá logo que não é esta no entanto a referência, não há nada aqui que vá realmente no sentido de algo como uma “divinização” do humano). Apenas atento para o fato de que o desequilíbrio de poderes entre os partícipes em uma troca tende a forçar a emergência da sacralidade, da sacrificialidade (com sacrifício da parte mais fraca) nessa troca, por tal desequilíbrio de poderes dificulta a superação dessa sacrificialidade.

Um ateísmo materialista qualquer não basta para efetivamente vencer subdeterminações deste tipo, sacralizantes, que já se fizeram historicamente atávicas. A sacrificialidade continua presente com toda a clareza, por exemplo, no pensamento de Karl Marx.

A própria noção marxiana de uma “tarefa” ou “missão histórica” superior a ser realizada pelas pessoas de um “proletariado” já é subdeterminada pela condição do sacrifício pela causa — sendo pessoas que aliás sequer se reconhecem na descrição marxiana do que caracteriza essa entidade superior, esse “proletariado”. Nem teriam remotamente como, aliás, se reconhecer de modo autêntico, personalizado,  vivencial, em uma tal abstração generalizante — formulação de um pensamento que desconhece divergências e interações internas e só as considera como objetos de reflexão meramente estratégica, de relevância menor em face indiscutível, inabalável e previamente dada “missão” histórica.

 

O mito é lúdico: não é uma religião
nem se liga neccessariamente ao sagrado

O mito não é uma religião, não é necessariamente sagrado. É uma construção do imaginário e da prática coletivos, um produto cultural pelo qual uma cultura cultiva a si mesma em alguns de seus traços fundamentais. Exprime-se perfeitamente como veículo principal daquilo que, no caso dos gregos antigos, Werner Jaeger chamou de paideia.

Veículo de autocriação e autocultivo de uma coletividade por meio de seu imaginário, o mito por outro lado pode ser caracterizado também como um gênero linguístico específico pelo qual esse imaginário coletivo toma formas e se manifesta. Um gênero linguístico ancorado na forma narrativa, mas que ultrapassa o verbal e se exprime em inúmeros outros tipos de signos (na verdade todo tipo de coisa pode ser sempre transformado em signo linguístico, e o pensamento mítico facilita especialmente isso, é especialmente maleável quanto aos signos que é capaz de codificar).

Há sempre no mítico, além disso, traços de um estilo que se pode comparar ao realismo mágico da literatura sulamericana, porque o realismo mágico é um estilo literário que se espelha no mítico, justamente — falta-lhe apenas o caráter de produção coletiva e autopedagógica que, no mítico, faz com que realmente as criações do imaginário social adquiram, para a coletividade criadora, o mesmo peso e força dos dados de realidade (quero dizer, dos demais dados da realidade).

Essa transformação da fantasia em realidade dotada de consistência e resistência próprias, essa materialização do imaginário coletivo, é o que dá ao mítico o seu caráter mágico — lembrando que a palavra magia se liga diretamente, em termos etimológicos, a imago. Por meio desta palavra (imago), o pensamento mágico se liga à palavra imaginação… — tratando também aqui a magia como algo que percorre indistintamente todo o leque de suas possíveis variações de sentido, que vão desde as crenças mágicas sacralizadas em seu fundamento, até a magia fundamentalmente lúdica dos truques praticados pelos mágicos em circos e casas de show.

Do Mito da caverna de Platão ao Prometeu de Protágoras

Disse que o mítico não está necessariamente preso ao sacrificial e ao sagrado. Há estudiosos que recusam-se a considerar o Mito da Caverna de Platão, por exemplo, como um mito, e acham mais correto tratá-lo como “alegoria”. Estão errados: não é uma simples alegoria (e pouco importa qual a palavra usada pelo próprio Platão para nomeá-la). É precisamente um claro exemplo de utilização dessacralizada do mito — embora Platão esteja longe de ser, no sentido geral de seu pensamento, um dessacralizador, e seja muitíssimo pelo contrário, um cultivador inveterado de horrendas sacrificialidades.

O Mito da Caverna, especificamente, é mito (ou antes participação particular do filósofo em universo mítico, interagindo com a coletividade) porque se integra no conjunto do pensamento mítico de sua época e sociedade em cada uma de suas imagens mais básicas — a caverna, as sombras, o sol que ilumina —  procurando ressignificar tais imagens, reorientar a mitologia, o imaginário autoeducacional coletivo, da sociedade em que o autor está inserido.

O sofista Protágoras (provavelmente ateu, aliás) praticou esse tipo de estratégia de modo ainda muito mais coletivamente inserido do que Platão, porque aceitava melhor o específico imaginário de Atenas na época — que era, sob diversos ângulos, democrático. Protágoras criou e procurou difundir, neste sentido, uma variação sua do mito de Prometeu (suspeito que bem conhecida do anarquista Proudhon, pelo modo como ele se utiliza da imagem metafórica desse deus grego), e mais consistente com esse posicionamento político.

O mito é uma espécie de mentira?

A linguagem mítica contamina magicamente com sua forma (no sentido amplo de “magia” acima exposto) os conteúdos expressos e todo o material de que se serve na geração de seus signos, de modo que  incorpora em sua prática linguística atitudes e sentimentos coletivizados, que assim incorporados no mítico se transformam em um código de símbolos e adquirem sentido conjunto.

O mito também não é “enganador” ou necessariamente veículo de falsidades — é preciso parar de usar a expressão “mito” neste sentido, e encontrar alguma outra mais adequada para esse tipo de crítica às comunicações falsificantes e enganadoras. Porque esse uso nos faz perder um importante recurso linguístico e socializador, um importante veículo da criação e do cultivo coletivos de valores e comportamentos, pelo qual podemos lidar coletivamente não só com o que nos é consciente acerca de nós mesmos e desses nossos valores e atitudes, mas também com o caldo de associações e forças que necessariamente investimos, de modo inconsciente, em tudo isso de que temos consciência — caldo inconsciente que envolve e embebe quaisquer desses nossos valores e comportamentos coletivos.

O uso da expressão “mito” com o sentido de falsidade, enganação, pretende ser conscientizador e laico, libertador em relação a posturas religiosas… mas não é. Se insere pura e simplesmente no conflito histórico entre as crenças religiosas em favor das sacralidade em suas formas monoteístas e contra as crenças igualmente sagradas do paganismo, mas combatendo este último em algo — a linguagem mágico-mítica (e o modo de pensar que lhe corresponde) — que não lhe é o essencial. Pois para combatê-lo no essencial teria de combater o sagrado em si mesmo, portanto a sacralidade monoteística também num único e mesmo movimento.

Mas os praticantes dessa estratégia, que associa “mito” a “mentira” (como Marx) pretendem combatê-las em separado para (sem se darem conta) valorizarem indiretamente a sacralidade de tipo monoteístico como de algum modo superior e justificarem para si mesmos a absorção e manutenção indireta de vários de seus traços.

Trata-se aliás de redobrada tolice, porque na verdade o uso da linguagem mágico-mítica não deixa de estar presente também nessas religiões monoteístas, embora sob uma forma corrompida — corrompida precisamente, aliás, por uma sacralidade que, nessas crenças monoteístas, é quase sempre excessiva e mata a ambiência lúdica essencial ao mítico para ser vivenciado como foi feito para ser vivenciado.

 

Do equilíbrio à hierarquia: linguagem mágico-mítica
versus
ruptura sacralizante entre crer e criar

Nas narrativas em linguagem mágico-mítica ainda lúdica e não corrompida, que é a que pode ser encontrada nos momentos menos sacralizados dos antigos cultos pagãos, o equilíbrio entre as potências míticas (deuses, monstros, heróis etc.) e as coletividades humanas é ainda realizável, porque o crer e o criar ainda não estão separados, e a própria materialização dessas potências com peso no real, como se fossem reais ainda é vivenciada como algo parcialmente lúdico, ainda é vivenciada como uma materialização dependente da ação criadora humana.

As crenças religiosas pagãs eram frequente e facilmente dominadas pela ludicidade de seus mitos — eis o que torna possível esse equilíbrio, que possibilita a dessacralização. Mas esse mesmo equilíbrio é quase impossível nas religiões monoteístas (após a ruptura crer-criar), quando a existência e a força do divino passam a ser apenas objeto de , projetado em posição inescapavelmente superior à dos homens.

Como objeto exclusivamente de fé, é claro, uma potência divina deixa de ser simultaneamente objeto também de criação imaginária coletiva e lúdica, e perde essa possibilidade de ser equilibrada com as forças do humano. Uma possível exceção é a horizontalização da relação com o divino no neohassidimo peculiar de Jacob-Levy Moreno e Martin Bubber, fundado por Baal-Shen-Tov no fim da Idade Média… é possível que haja outras, mas não as conheço.

Não sou especialmente interessado no estudo de religiões e crenças em geral, aliás muitíssimo pelo contrário: o assunto me desagrada, e acho uma lástima que, para estudar o interessantíssimo pensamento mágico-mítico, tenha que estudar também as suas frequentíssimas (mas felizmente não necessárias) conexões com o sagrado.

 

Sacrifício pagão, sacrifício cristão:
da troca à dívida incompensável 

O sacrifício, no paganismo, está ligado à noção de uma troca, em que se oferece a perda de algo precioso em troca pelo favor de uma potência mítica em alguma coisa. Isto só não se caracteriza como uma perda também para as potências porque são imaginadas como muito superiores, de modo que normalmente não chegam a sofrer perda comparável ao sacrifício feito pelos humanos nessa troca.

Entretanto, o sacrifício pagão é quase sempre apenas simbólico, uma representação (com perda real bem pequena), do que os humanos estariam dispostos a sacrificar de grande (o sacrificado é em geral um objeto inanimado de valor mediano, ou legumes, frutas, pequenos animais que não chegam a ser particularmente estimados…), os sacrifícios prometidos, então, não costumam chegar a ser os que se realizam de fato: realizam-se apenas simbolicamente nesses “sacrificados” menores, como uma promessa a cumprir-se quando necessário, se necessário.

No paganismo, também, as próprias potências praticam entre elas, na fantasia das narrativas míticas, as trocas sacrificiais — e ali diretas e violentas.

Entretanto a pior, a mais radical condição do sacrificialismo, é aquela da perda sem compensação, aquela do sacrifício sem retorno — que tem apenas uma pálida aproximação na noção pagã de sacrifício mútuo. Sua formulação radical está na noção (cristã) de um sacrifício de compensação impossível que leva a uma “dívida eterna” (sacrifício do cristo).

É a mais terrível de todas as formas de sacrificialismo, e repercute ecoando em posturas do tipo “sacrifício por um ideal” e também sob a forma de tendência econômica de “achatamento” das condições de vida dos menos favorecidos no capitalismo, na figura do endividamento crônico. É também a forma mais destrutiva e mortal do sacrificialismo, a que mais destrói e a que mais mata, no sentido absolutamente literal do termo.

(É ainda pior no endividamento financeiro: o credor é difuso ou variável, e a atribuição de responsabilidade ao devedor tende a parecer incontornável, ele se sente responsável, o que coloca entraves mais duros ao sentimento libertador de revolta, que exige da pessoa, então, firmeza, força e altivez muito maiores nessa revolta, que não sejam abalados por baixa autoestima.)

 

Sacrificialismo na mitologia mesopotâmica:
um problema
para a teoria política das revoluções

Um porém a tudo isto: o que é exatamente que quero combater no sacrificialismo? É preciso perguntar isto, por que seguramente há algo no modo como ele é tratado nas interpretações psicológicas da ação de Ereskhigal (a sombra entrópica de Inana), que quero incentivar, não combater.

Trata-se da noção de uma ruptura necessária e radical com o que éramos para nos tornarmos algo inteiramente novo: sacrifício do passado pelo futuro — o que se chamaria, sob outras circunstâncias, de “revolução”. Mais do que isso, advogo em favor do que se poderia chamar de “revolução permanente” (e não, não há nisto alusão absolutamente nenhuma àquele carrasco de camponeses, chamado Trotsky)… talvez a Proudhon. Por isso a necessidade da pergunta.

O problema é: de que “revolução” se trata? Falar em revolução permanente significa considerar revolução não como meio para um modelo de vida visado, mas como um modelo de vida ela própria. E neste caso, preciso me perguntar: qual é o modelo de vida que quero? Quero viver em constante sacrifício? Em dor de rebentação?

Quero viver em negação incessante (portanto em conflito, atrito incessante contra outras pessoas), dependendo constantemente desse conflito, inclusive, para continuar existindo? — Porque é assim que as coisas se passam no processo revolucionário segundo a dialética marxista: o proletariado, explorado pelos capitalistas, só se caracteriza como proletariado explorado precisamente devido a essa relação com a classe capitalista exploradora. É em função dessa relação que se define quem é o proletário e qual a sua “missão histórica”, que está apoiada justamente na negação desse modo de vida (capitalista) posto pelos exploradores.

O proletariado explorado deve realizar essa negação e o fará negando a si mesmo simultaneamente — a imagem acaba por ser a de um suicídio. Um suicídio visando transformar-se, a destruição (sacrifício) do modo de vida presentemente vivido, no mesmo ato em que se destrói o inimigo que o mantém, visando uma nova vida. Supõe-se que não haveria sacrifício nisto porque não há nada de bom no modo de vida perdido, para que se considere sua perda como sacrifício… será mesmo?

Em primeiro lugar, o sofrimento da exploração (do qual os explorados se livrariam de bom grado e sem nenhum sentimento de sacrifício) é apenas um traço, ainda que terrível, da vida presentemente vivida pelo trabalhador. Reduzir toda a sua vida a esse único traço, declarando que não há nada de bom na vida dele que vá ser sacrificado (e portanto que vá torná-lo, em alguma medida, conservador), é uma abstração delirante, sem qualquer realidade possível.

Não quero nem uma coisa, nem outra, nem a terceira.

Em segundo lugar, a própria luta contra os exploradores tende a construir condições de vida compensatórias e, por isso mesmo, conservadoras, contradizendo os próprios objetivos da luta e fazendo-a tender a perpetuar-se em uma versão hipócrita, falsamente revolucionária: no processo de luta formam-se estruturas e cargos de poder, sentidos razoáveis e emocionalmente estimulantes para os comportamentos e ações, forma s de convivência comunitária e cooperação, e com todas essas compensações provisórias, vai surgindo a tendência subjacente a preservá-las e perpetuá-las.

Mas ainda pior que essa hipocrisia, que pelo menos quer ser, viver, existir, é a sincera e revolucionária autonegação destruidora da vida. O marxismo prático há muito perdeu de vista essa negatividade sinceramente revolucionária (e autonegadora) fundada pelo marxismo (ou marxianismo) teórico original, da interpretação revolucionária da dialética hegeliana, e isto… não faz a menor diferença.

Não faz diferença porque essa fonte negativista não estava realmente na dialética teórica, na reinterpretação marxiana de Hegel: ela apenas exprimia coerentemente uma postura sacrificialista atávica inscrita no modo de pensar de Marx. E ele fez o suficiente — mais, muito mais do que o suficiente — para encravar esse sacrificialismo no modo de pensar e viver a “revolução” cultivado pela comunidade mundial dos militantes socialistas.

Lutar e sofrer, morrer em vida se necessário, pela causa, pela (sagrada) missão histórica de libertar-se da condição proletária e da exploração capitalista. Em certos casos, o discurso ainda avança no tempo: “pelas gerações futuras!”. Mas ainda mais curioso: sacrificar também os outros — mesmo quando “não compreenderiam” (não aceitariam) esse sacrifício — em nome da Grande Missão, tratando-os como ferramentas, meios, dutos, caminhos, para um objetivo cuja importância e necessidade, supostamente, a sua consciência e compreensão não atingem.

Meu modelo de vida revolucionária não é este. Não é o de uma em que sofrimento e tensões conflituosas, carregadas das compensações provisórias de uma luta coletiva, caminham para o suicídio (ou por dentro dele, por meio de uma morte em vida) em nome de algo melhor.  Também não é aquele em que nos contentamos com as pequenas e provisórias compensações  oferecidas pelo próprio processo de luta, transformando esse caminho de lutas numa mentira.

Não quero nada disso.

 

Contra um suposto “negativismo” intrínseco
das esquerdas políticas

O modo como quero viver é construtivo, não negativo.

Renego até a medula a tradição essa tradição imbecil que, começando com Hegel e culminando infelizmente com o interessante, apaixonado, belíssimo e impossível nihilismo louco de Bakunin, tem Marx como o medíocre realizador de sucesso entre os dois, a meio de caminho.

Essa tradição fez da “negação” uma suposta caracterização essencial das esquerdas revolucionárias. Tradição imbecil da qual os anarquismos de Proudhon e Stirner tiveram a felicidade de escapar, mas que empurrou e continua empurrando muitos anarquistas tolos para longe dos dois, porque lhes custou a tão mentirosa quanto convincente rotulação de “falsos revolucionários” postulada por Marx, o maior mestre da calúnia de todos os tempos. — Sim, os próprios anarquistas tendem a cair na lábia infamante e completamente sem sentido de Marx em relação a esses dois autores.

O fato, entretanto, é que ambos escaparam para darem origem a uma concepção inteiramente outra dos processos revolucionários, e pela qual os anarquistas têm mostrado simpatia sem examinarem-lhe as fontes: a nietzscheana… — ruptura e revolução pelo transbordamento afirmativo que extrapola e ultrapassa o já construído, o já adensado. E não, nunca, jamais, por negação esvaziada, lacunar, carente, murcha, oca, e que depende do adversário (porque depende depende da destruição dele) para perpetrar uma transformação encarada doentiamente como necessária e logicamente suicida.

De um ponto de vista nietzscheano, tal tradição sacrificialista que se imiscuiu e inscreveu nas posturas revolucionárias é ainda pior do que suicida: suicida e ainda sem a dignidade de fazê-lo por si mesma, suicidando-se “através do outro”, ao dissolver-se em sua negação apenas mediante a dissolução do outro.

Essa dialética negativista imbecil de Marx e Hegelianos revolucionários — infelizmente presente também em Bakunin, de modo mais sincero, coerente, radical e explícito, mas bem menos forte na prática, sem má-consciência e bem menos doentio — precisa de um bom pontapé decisivo no traseiro. Precisa ser rejeitada e afastada pela esquerda e com radicalismo — com o cuidado também de não se fazer dessa rejeição mais uma dependência, mais uma luta do mesmo tipo, só que contra essa tradição no seio da própria esquerda. Que o marxismo corra atrás da solução oferecida contra sua imbecilidade (não precisamos nos definir pela luta contra ele): foquemos a atenção construtivamente em nosso próprio caminho… uma atenção independente).

Os imbecis… que se matem sozinhos, se quiserem continuar na sua imbecilidade!

 

Contra a autonomia do conservadorismo direitista

O que já foi dito quanto à dependência dos negativistas em relação àquilo que negam, vale também quanto ao modo como se deve lidar com o conservador assumido, o capitalista por exemplo, ou o autoritário em geral. O adversário à direita, o conservador.

Ele — conservador — é que tem que ser arrastado à dependência para com o revolucionário. Arrastado de modo a ser dissolvido como mero efeito colateral de uma ação revolucionária afirmativa, construtiva e voltada para si mesma, independente da presença das forças conservadoras desviantes… e em luta com elas apenas na mesma medida em que elas se coloquem como barreira ou entrave. As barreiras ou entraves colocados pelos conservadores devem ser considerados puramente circunstanciais, por maior que venha a ser por acaso a força dessa circunstancialidade.

O processo revolucionário, a ação revolucionária, deve se desenvolver em um sentido geral que, em sua essência, seja totalmente independente da ocorrência ou não desse mero efeito colateral — que é confrontação com forças conservadoras. Tal confrontação deve ser apenas uma questão estratégica, ainda que fundamental. Não se deve permitir que ela contamine o próprio sentido geral resultante que se pretende dar às ações revolucionárias.

Portanto é, pelo contrário, o conservador que tem que ser arrastado a essa dependência para com o revolucionário — devemos insistir nisto. Precisamente para que não tenha forças enquanto empecilho, enquanto resistência contra a ação revolucionária, ficando na dependência dela.

O conservador, então, dependente da existência de ações que, no presente e em um sentido imediato, são as do revolucionário (apesar desse seu sentido último revolucionário), lutará naturalmente agindo em relação ao revolucionário (e não o revolucionário em relação a ele).

O conservador atuará sobre o revolucionário tentando dissolver-lhe a radicalidade, moderá-lo, contê-lo ou desvirtuá-lo nessa radicalidade para que suas ações não atinjam, precisamente, esse seu potencial revolucionário. Mas ele próprio nunca poderá desvirtuar ou conter ou dissolver por completo o sentido da ação revolucionária; mesmo quando bem sucedido em suas ações (parcialmente) desvirtuantes, corruptoras. Não poderá eliminar essa semente de possível radicalização futura, porque estará dependendo dela.

Restará entretanto uma possibilidade de ação ao conservador; a mais perigosa e a que mais devemos combater: ele poderá adotar justamente a estratégia de tornar o revolucionário dependente de sua relação com as forças conservadoras, e portanto suicida… em outras palavras, a pior estratégia dos conservadores a enfrentar é… exatamente o modo de pensar que Marx, mais do que qualquer um outro, inscreveu pela força de suas ações, no coração do pensamento revolucionário, como um maldito cavalo-de-tróia a destruí-lo por dentro… Marx, o pelego!

Em suma: é preciso recusar a postura puramente negadora e sacrificialista no pensamento revolucionário.

 

A deusa mítica mesopotâmica e o caminho
da autosuperação por transbordamento

Qualquer revolução digna deste nome deve ser compreendida como uma autosuperação do revolucionário que ultrapassa a si mesmo (e com isto se altera e redesenha) no transbordamento de conquistas já realizadas que, na interação com seus próprios excedentes, vão assumindo novas formas. Transbordamento em que se torna algo para muito além de si mesmo. Em que ele avança para além do já construído e extrapolando-o de modo a alterar-lhe radicalmente o sentido, arrastando portanto o seu histórico a uma inteira ressignificação e reorientação de sentido não pré-projetada nele, mas realizada por esse transbordamento e a partir dele.

Esta é a ruptura revolucionária que se deve buscar: a ruptura pelo transbordamento de um excesso ressignificante de tudo o que já se conquistou no correr da luta. Não a ruptura suicida que sacrifica pelo futuro tudo o que já se conseguiu.

E adivinhem só: isto se ajusta também perfeitamente (e aliás talvez ainda melhor) ao inteiro sentido “dissolvente” da ação de Ereskighal, a deusa mítica da Mesopotâmia, a força insuperável das transformações naturais, a sombra indiferenciante da potência vital apaixonada que é Inana.

No mito de Inana, ela desce até o mundo subterrâneo de sua sombra Ereskhigal para confrontar-se com ela. No caminho é despida simbolicamente de tudo o que possuía em vida, é morta, tornada um pedaço de carne. É espetada, empalada, diante de Ereskhigal, e ali, empalada, apodrece. No seu apodrecimento ela magicamente fecunda sua sombra: Ereskhigal engravida, e Inana renasce transormada (assim como Ereskhigal se transforma também no  processo).

Esta descida de Inana tem sido interpretada como uma troca sacrificial mútua entre as deusas — que são, na verdade, as duas faces de uma só deusa. Um sacrifício interno mútuo entre suas facetas, que gera por fim uma transformação revolucionária.

Pois bem: minha leitura um tanto nietzscheana e antisacrificial das coisas não só se ajusta melhor aos processos de transformação naturais operados pela força de Ereskhiigal, como lhes fornece uma outra interpretação. Uma que, na descida de Inana, incorpora melhor o fato de que é ela própria que destrói suas formas vivas presentes — porque Ereskhigal, como já dito, é a própria sombra de Inana, é a própria Inana em sua face ctônica, ínfera, infenal… nesta nova leitura que sugiro das coisas, a (auto)destruição é uma infernal autosuperação no momento da excedência, no momento do excesso daquilo que já é de si mesma. É Inana assumindo e levando até o fundo sua própria sombra, até o ponto de ultrapassar-se excedendo a si mesma, e assim, transformar-se… revolucionariamente.

O “sacrifício radical” é apenas uma má interpretação, uma interpretação ainda presa a limites em processo de ultrapassagem, para o que é de fato auto-ultrapassagem, ultrapassagem radical dos próprios limites. Não há “sacrifício” senão para a mente ainda conservadora, ainda apegada não ao que era, e sim à moderação, à contenção, ao medo de ser mais, radicalmente mais, daquilo que essencialmente já era.

Essa hybris, como diriam os gregos, essa ultrapassagem de limites, essa transgressão pelo excesso, é transformadora precisamente porque nos mergulha na fusão com a alteridade. Mergulha no compartilhamento transformador de características do outro com o qual nos relacionamos.

Não apenas as transformações revolucionárias podem ser consideradas assim, a partir dos trasbordamentos de excessos, mas todas as transformações em geral.

 

O sentido de “revolução”

Uma transformação é revolucionária quando é radical e historicamente rápida para o seu porte. A rapidez é uma marca característica das revoluções porque elas só são efetivamente “revoluções” quando são também vivenciadas pelas pessoas como revoluções, isto é, como grandes viradas em que a situação se altera desde a raiz.

Em condições normais (não revolucionárias) uma transformação de tal porte, de tal radicalidade — alterando as próprias raízes que sustentam uma situação — ocorreria tão gradualmente que nem seria vivenciada, não seria sequer percebida de fato pelas pessoas que a vivem como uma transformação realmente profunda, radical.

 

Um exemplo de transbordamento
no discurso do Movimento Passe Livre

Um exemplo desse tipo de transformação por transbordamento é o que se esboça, por exemplo, em um texto que li em um pequeno manifesto do MPL (Movimento Passe Livre), grupo político que se iniciou defendendo apenas a proposta de transporte público gratuito. Nesse texto publicado na internet, no entanto, o MPL anuncia uma interessantíssima mudança de postura. Veja-se a citação abaixo, extraída de uma passagem do texto:

Através de uma reflexão interna e de estudos e diálogos com aqueles e aquelas com quem lutamos, o MPL ampliou sua forma de pensar o transporte. Passamos a enxergá-lo em um contexto mais amplo, dentro da esfera dos direitos (oferecido a todos e todas, sem distinção). O direito ao deslocamento que proporciona o acesso aos outros direitos como saúde, educação e lazer, ou seja, o direito à cidade. E o direito de decidirmos coletivamente como deve ser a cidade. Exigimos que o transporte seja público de verdade. Para isso, defendemos a tarifa zero, o controle público da gestão (fora das mãos dos empresários) e o fim da forma de remuneração do serviço dos ônibus que existe hoje: as empresas de transporte recebem seu dinheiro pela quantidade de pessoas que pagam as passagens. Isso faz com que elas concentrem suas linhas em regiões centrais e é por isso que pegamos ônibus lotados — é mais barato para as empresas ter menos ônibus com mais gente dentro. Essa é a lógica da mercadoria. Não é o lucro dos empresários que deve definir onde e quando existirão ônibus, mas o interesse público!

(O trecho foi retirado deste link)

 

Um transbordamento pessoal, e uma nova luz possível
sobre as práticas filosóficas de Sócrates

Um outro exemplo, pequenino, desta vez pessoal, de transformação por transbordamento — mas para mim bastante intenso — é o meu próprio interesse pelo pensamento magico-mítico, manifesto aqui neste texto.

Trata-se de um mergulho radical naquilo que venho construindo em mim mesmo já há muito tempo… mas um mergulho que me excede e me altera movendo-me, no caso, em direção à Paula (minha companheira), que é ligada a essa forma de pensamento mágico-mítico.

Não se trata de maneira nenhuma de uma conversão religiosa a alguma espécie de neopaganismo de perfil ligeiramente hippie (mesmo que minha simpatia pelos hippies em geral seja, aliás, ainda maior que minha simpatia pelo paganismo dos amigos de minha esposa).

Permaneço completamente materialista e ateu, avesso a qualquer outro cultivo de espiritualidade que não os estudos e reflexões racionais, argumentativos — preferencialmente filosóficos. Mas minha esposa é uma mulher interessante e admirável, com cujo convívio desenvolvi, sim, esse interesse muito maior pelo que sempre considerei um certo aspecto mítico não ultrapassado totalmente pela filosofia.

Destarte, atualmente venho levando tal mergulho nos estudos de assuntos mitológicos (e de suas relações com a razão filosófica) até o ponto de extrapolar-me… deixando de me considerar apenas filósofo praticante (e me sinto sempre forçado a acrescentar… principiante) para considerar-me também, além disso mitólogo. Passar a considerar-me também mitólogo é uma considerável transformação, pois até isto acontecer me parecia impossível sequer pensar em mim mesmo como sendo alguma outra coisa que não um estudioso de filosofia, de tal modo que isto define minha vida, tanto no sentido geral que dou a ela quanto cotidianamente.

Contudo se trata de um interesse (este pela mitologia) que, em si mesmo, já existia e se desenvolvia em mim, mas timidamente, muito antes de ter conhecido minha esposa. O convívio com ela, procurando compreendê-la justamente naquilo que talvez seja a sua mais radical diferença em relação a mim, ativou em mim o desenvolvimento exacerbado desse interesse já antigo e antes pequeno, até o transbordamento, até a ultrapassagem de minha forma antes puramente filosofante de praticar o pensamento.

Agora me interesso não apenas pelo estudo teórico acerca do pensamento mágico-mítico, mas pelo exercício filosoficamente refletido de pequenos, digamos assim, experimentos míticos no campo do pensamento. E uma prática de pensamento mítico, pelo próprio perfil desse tipo de pensamento, é algo se se realiza socialmente, nas nossas relações com as pessoas, seja de maneira discreta ou de maneira explícita e brincalhona, como é quase sempre o meu caso.

Mais precisamente: de maneira um tanto lúdica, gosto agora de brincar com elementos míticos que se desenvolvem no pequeno pensamento coletivo das pessoas com quem convivo, provocando, por exemplo, pequenas construções míticas das pessoas a respeito de mim mim mesmo, por meio da manipulação de minha imagem social (posso dizer “publica”?) junto a essas pessoas de meu convívio… e feitas essas pequenas brincadeiras de automitificação, muitas reflexões se disparam em mim (e pelo que percebo também em algumas dessas pessoas de meu convívio) a partir disto.

Minha profissão, aliás, é especialmente propícia para isso, porque sou professor, e esse tipo de brincadeira se bem realizado, contribui para os bons resultados nessa atividade. Passei a constatar com muita clareza, além disso, que esse tipo de brincadeira (um tanto teatral, digamos assim),  é um poderoso instrumento para o exercício do pensamento mítico, e ajuda a compreender, a sentir melhor alguns elementos (sobretudo os elementos mais lúdicos) do que era a prática disto para os povos eminentemente mágico-míticos da antiguidade.

No campo dos meus estudos mais diretamente filosóficos, por outro lado, isto me fez começar a compreender um aspecto importante, e bem pouco examinado, da tão polêmica e provocadora filosofia de Sócrates — que venho também estudando há bastante tempo, num esforço para diferenciá-lo tão nitidamente quanto possível de seu aluno Platão.

Comecei a compreender que o admirável Sócrates, o grande desmitificador, era também ao mesmo tempo um hábil manipulador de sua própria imagem pública, e filosofava utilizando-se dela, construindo propositalmente em torno de si mesmo um mito provocador de reflexão: manipulando sua imagem perante os outros, Sócrates se utilizava do próprio modo mágico-mítico de pensar de sua coletividade como um instrumento filosófico de estímulo ao senso crítico!

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