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Ética e Ceticismo na Política: uma questão

Por João Borba – 11 de agosto de 2006 – artigo 06, vol. 1
(originalmente publicado em www.eleicao.info)

pés descalços na estrada até o horizonte P&BUm político pode ser ético?

Poderíamos dizer (na verdade repetir, e talvez um pouco demagogicamente) que existe hoje uma questão “na boca do povo”: é possível ou não é possível que um político seja ético? Muita gente se diz “cética” em relação a isto, mas não se dá conta de que o ceticismo não está em responder que “não é possível um político ético”, e sim em formular a questão e insistir nela — porque ceticismo não é sinônimo de “descrença”. Ceticismo quer dizer investigacionismo (escrevi a respeito no artigo A sombra do equilibrista).

Ser realmente cético em relação a isto, então, é não desistir jamais de investigar a questão — a não ser para “descansar” um pouco ou para se concentrar provisoriamente em algum outro assunto. É manter a questão sempre em aberto, sejam quais forem as possíveis respostas que acabemos encontrando provisoriamente pelo caminho. No caso da filosofia cética, especificamente, isso significa também procurar os impasses entre as possíveis respostas, e só aceitar respostas que de algum modo alimentem ainda mais o questionamento — e tentando fazer isso sem deixar que nada se fixe como se fosse mais certo ou mais verdadeiro do que outras alternativas possíveis. Não é uma tarefa fácil, como se pode imaginar…

 

O ceticismo e a difícil questão da Ética

O ceticismo sempre teve problemas para se definir no campo da Ética. Sair por aí fazendo as pessoas questionarem aquilo que elas costumam aceitar como se fosse um Bem ou como se fosse um Mal, às vezes pode ser perigoso.

Existe, sim, um certo jogo de valores na filosofia cética — ou para dizer as coisas de modo mais simples, existe algo que a filosofia cética valoriza e algo que ela evita. Evita o dogmatismo e as verdades imaginadas pelos teóricos, e até mesmo os critérios e métodos que os teóricos adotam para chegar a essas verdades. A filosofia cética trata toda essa mania de verdade como uma coisa meio doentia dos filósofos. No lugar disto, valoriza o prazer de pensar, o questionamento, a investigação sempre em aberto, como se toda a filosofia fosse no fundo um grande jogo. E como não tem certezas teóricas, tratando o mundo teórico como um brinquedo, valoriza também um modo de viver mais simples, prático e sem teorias, mais parecido com o modo de viver dos não-teóricos, do dia a dia das pessoas “comuns” em geral.

Só que esse jogo de valores da filosofia cética não é um jogo de valores morais, isto não é uma ética do ceticismo. O dogmatismo, as verdades teóricas, as certezas e os métodos certeiros para chegar a alguma verdade, não são coisas que o cético considera necessariamente más, por exemplo.

E a investigação interminável, a saudável vida comum e sem teorias, para ele, também não são necessariamente um bem. É perfeitamente possível imaginar um filósofo cético que considerasse a verdade como um bem, mas sem nunca conseguir atingi-la, e que depois de muitas experiências já tivesse desistido de procurá-la, e se contentasse de maneira pessimista com os impasses. Ou até imaginar um que considerasse a investigação como uma espécie de mal necessário ou inevitável. Nem por isso ele deixaria de ser um cético. Talvez um cético amargo, mas um cético.

Em outras palavras, esse jogo de valores do ceticismo não é suficiente para ser decretado como uma ética dos céticos. São apenas valores pessoais, avaliações pessoais a respeito das coisas, enfim, que ajudam a pessoa a se reconhecer como cética. Estes valores estão ligados a um modo pessoal e ao mesmo tempo cético de avaliar as coisas, que as avalia a partir dessa oposição entre mobilizar o pensamento e parar de pensar. O cético é aquele que só pára provisoriamente. Se for otimista, provavelmente considerará isso como um bem. Se for pessimista, provavelmente achará que essa situação de não conseguir parar é lastimável. São apenas duas maneiras diferentes de se ser cético.

O cético, então, é aquele que só pára provisoriamente, nos impasses. É preciso insistir nisto: esse jogo de valores (que avalia as coisas a partir da mobilidade ou da fixidez do pensamento), só serve para ajudar a descrever e compreender de uma maneira um pouco mais coerente o modo como os céticos se comportam, independentemente de ser um comportamento bom ou ruim do ponto de vista dos próprios céticos. Muito mais cético do que querer transformar isso em uma moral, seria talvez tentar entender ? investigando de maneira cética ? os problemas e impasses a que somos levados quando pensamos a respeito do bem e do mal. E tentar encontrar (ou acabar chegando a) uma resposta que mantivesse o debate e a reflexão sempre em aberto, e que não excluísse alternativas contrárias — se é que é possível uma resposta assim. Mas digamos que seja: neste caso, como fazer isso sem cair em um perigoso vale-tudo no campo da ética?

 

A coerência entre os valores morais

A lógica — uma outra área da filosofia, bem diferente da ética e que muitas vezes se aproxima da matemática — tem sido sempre a guardiã da nossa coerência de pensamento, da coerência entre as nossas ideias. É ela quem discute o que é um raciocínio correto, propõe normas para raciocinarmos melhor, e a partir dessas normas, aponta e corrige nossas incoerências.

A lógica pode nos ajudar no campo da ética. A coerência entre nossas próprias ideias a respeito do que é um bem e do que é um mal pode nos ajudar a agirmos de maneira mais ética. Quando nossos valores morais indicam caminhos incompatíveis para nossa ação, a lógica pode nos socorrer, porque pode nos ajudar a encontrar talvez, lá no fundo, alguma coerência entre esses valores que faça nos sentirmos um pouco mais seguros em nossas ações. Ou então pode nos ajudar a entender por que esses valores nos empurram para ações opostas ou incompatíveis, e corrigindo essa incoerência talvez consigamos tomar alguma decisão.

Mas esta só pode ser uma contribuição bem pequena da lógica para a ética. Não pode ser muito grande por causa de uma coisa fácil de constatar. É que infelizmente — sejamos um pouco mais céticos em relação a isto — não há nenhuma garantia de que descobrir quais são nossas incoerências e coerências vai realmente nos ajudar a tomar alguma decisão. Pode ser que não ajude em nada, a não ser por nos deixar um pouco mais lúcidos diante dos nossos dilemas morais. Perceber mais claramente que estamos em um dilema moral pode nos ajudar a sair dele? Talvez. Mas — para lembrar um velho amigo que gosta de repetir isso — diria que não necessariamente.

Além do mais, como se não bastasse, existem muitas “lógicas” diferentes umas das outras, muitas diferentes maneiras de se raciocinar “corretamente”, e apesar do que os lógicos costumam sugerir, nada nos garante que um raciocínio lógico possa realmente e fora de dúvida nos conduzir sempre à mesma resposta, de modo que nosso empenho em raciocinar corretamente a respeito da coerência ou não entre um mesmo conjunto de valores, pode nos levar a concluir que essa coerência existe, mas também pode nos levar a concluir que ela não existe, dependendo do modo como raciocinamos, da lógica que utilizamos nesse raciocínio.

Talvez a única contribuição da lógica, quanto à coerência entre os nossos próprios valores morais, afinal, esteja em ajudar a justificar por que nos sentimos coerentes ou incoerentes, depois de examinarmos bem como é que nos sentimos. Isto não deixa de ser importante, porque a ética não diz respeito só aos nossos valores morais, mas ao modo como agimos em relação a eles, e a segurança que um raciocínio logicamente mais bem organizado pode nos dar em relação à nossa coerência ou incoerência, pode nos dar maior ou menor segurança na hora da ação, e acabar determinando o modo como agimos — se agimos mais incisivamente ou com maior cuidado e atenção ao fato de podermos estar errados. Há situações, segundo me parece, que pedem um tipo de ação, e situações que pedem outro.

 

O paradigma lógico na ética

Mas a maior contribuição da lógica para a ética, um verdadeiro paradigma que tende a ser adotado por todos aqueles que se debruçam sobre a questão moral, parece estar em uma coisa que costuma ser chamada de coerência ética — e que, apesar das aparências, não é exatamente a coerência entre os nossos valores. A coerência ética não é meramente uma coerência entre coisas que se passam na nossa cabeça, não é simplesmente essa coerência de que estávamos falando, dos nossos valores morais uns em relação aos outros, “dentro” da nossa mente. Ela é um outro tipo de coerência, muito mais importante porque transborda para para fora do nosso pensamento, no nosso comportamento em relação a tudo o que existe ao nosso redor: é a coerência entre os valores morais e a ação de quem tem esses valores, na prática.

A coerência ética é um paradigma que a ética herdou daquele modo de pensar que é típico da lógica, uma regra geral em que toda ética se apoia em alguma medida: se uma pessoa tem certos valores e age de acordo com eles, está sendo eticamente coerente, porque existe coerência entre as ações dessa pessoa e aquilo que ela valoriza como um bem. Mas se ela age contra seus próprios valores, se ela acha que não deveria agir de uma certa maneira, porque reprova esse modo de agir, e mesmo assim age desse modo, então não está havendo coerência entre seus valores morais e seu modo de agir, ela está sendo eticamente incoerente, e isto quer dizer também que está sendo antiética mesmo em relação aos seus próprios valores.

Já mencionei as dificuldades que envolvem a questão da coerência (ou incoerência) entre dois valores morais de uma mesma pessoa ou agente ético, e de que modo o exame dessa coerência ou incoerência pode ser útil, apesar dessas dificuldades, mas também de que modo pode acabar não sendo útil. Agora, ao que parece, estamos em um território que é completamente outro, não é? — Não necessariamente. Essa coisa que chamamos de “coerência” permanece a mesma. Podemos transferir facilmente os mesmos questionamentos de antes para a questão da coerência (ou incoerência) entre um valor moral que deveria orientar uma ação, e essa ação que deveria ser orientada por ele.

Aqui, entretanto, o sentimento de firmeza e segurança que acompanha a sensação de estar sendo coerente — ou então, por outro lado, a preocupação de ser mais cuidadoso que acompanha a sensação de incerteza em relação a essa coerência ? torna-se um ponto fundamental para quem procura agir eticamente. Com base nisto, as questões de ética, dependendo do ponto de vista, passam a girar em torno de oposições entre firmeza e insegurança no agir — se pensamos isso em registro nietzscheano (e é difícil decidir se Nietzsche é ou não uma espécie de cético) — ou pelo contrário, prudente senso de justiça e precipitação impensada — se preferimos um registro cético tradicional, à moda dos filósofos céticos da antiguidade.

Perceba-se que são dois jogos de valores opostos, e nossas dificuldades quanto à garantia da coerência se transferem para cá tomando a forma de um dilema bem claramente definido. — O que devemos preferir? Aquele modo de agir firme e seguro, que não fraqueja diante de nada nem se perde em hesitações, porque se apoia em uma intensa sensação de coerência, e resolve as questões de maneira decisiva, mas que pode estar se precipitando em uma decisão sem pensá-la o suficiente, arriscando-se a graves erros que muitas vezes não têm mais retorno? Ou aquele modo de agir prudente e cuidadoso de quem não se sente assim tão firmemente coerente, e que por esse cuidado corre menores riscos de errar, mas pela mesma razão tende a caminhar com insegurança e sem firmeza em suas decisões, de maneira talvez até perigosamente morosa, ziguezagueante e desmotivadora, correndo o risco de perder de vista qualquer objetivo?

Talvez não seja propriamente o caso de decidir por uma postura ou outra, mas de observar em nós mesmos, em cada situação, se nos sentimos coerentes ou não, e como devemos agir em função disto. De qualquer maneira, o paradigma lógico sugere que a coerência é algo bom, e tudo passa a depender do nosso otimismo ou pessimismo em relação a nós mesmos quanto a isso — e certamente, também da nossa disposição para tentarmos tornar nossos próprios valores sempre mais coerentes e garantir que se mantenham coerentes, uns com os outros e, principalmente, com as nossas ações.

 

Mas será mesmo que a coerência ética
é algo necessariamente bom?

Um problema para refletirmos a esse respeito: em uma época recém-saída da Idade Média, um padre chega a uma terra coalhada de indígenas que andam nus e fazem sexo a qualquer momento sem nenhuma vergonha, e que adoram as forças da natureza como se fossem uma multidão de deuses. Para o padre, esses pobres coitados estão condenados, irão todos diretamente pro inferno.

Então, agindo de maneira perfeitamente coerente com seus próprios valores e na melhor das intenções, e talvez até com um certo sentido de urgência salvadora, ele abre uma escola e passa a ensinar uma porção de verdades às crianças da tribo (que ainda são inocentes e podem ser salvas). Ensina que elas devem ler a Bíblia, que andar nu como seus pais é pecado (mesmo naquele calor tropical), e que é preciso se sentir culpado quando se faz sexo, porque existe um deus invisível que vê tudo e está em todos os lugares, vendo tudo o que fazemos e até o que pensamos, e que pode ficar muito zangado, porque não gosta dessas coisas — e esse deus invisível que está em toda parte é o mais poderoso de todos os deuses, porque os outros são todos falsos, e ele é o único verdadeiro.

E para concluir, o bem-intencionado padre da nossa historinha ensina às crianças que seus queridos avós, que contam as histórias dos deuses, estão todos condenados a queimarem eternamente em uma fogueira gigantesca, porque esses deuses que eles amam, e que estão em cada coisa da natureza que cerca a aldeia, na verdade são demônios disfarçados que querem levar todo mundo para a fogueira…

Não quero ser desrespeitoso em relação à história dos jesuítas no Brasil ou qualquer coisa assim. Talvez seja uma referência evidente aqui, mas também uma referência evidentemente caricata e distorcida. Circunstâncias históricas envolvendo conflitos entre diferentes jogos de valores humanos, são algo que precisa ser examinado com mais cuidado em seus detalhes e com maior profundidade, em todas as suas dimensões ? e nunca assim tão chapadamente. Mas cá entre nós… em uma situação que fosse realmente como a do exemplo (que não deixa de ser um exemplo perfeitamente plausível e visualizável) teria sido mesmo ético o comportamento desse padre tão coerente e tão bem-intencionado? — … E será que situações como esta, em que a coerência com nossos próprios valores nos leva a atropelar os valores dos outros, são assim tão incomuns?

 

O paradigma antropológico na ética

Existe uma ciência que se desenvolveu e se aperfeiçoou acima de todas as outras na arte de captar, justamente, valores diferentes daqueles aos quais estamos acostumados: a antropologia. Se a compararmos com a lógica, podemos dizer que ela oferece, justamente nesse sentido, um outro paradigma para a ética.

A antropologia tornou-se, no mundo de hoje, talvez a maior guardiã da atitude de observar e levar em consideração valores que são diferentes dos nossos, e luta incessantemente contra a tendência autoritária dos que têm uma maneira específica de pensar e viver, e tentam forçar os outros a pensar e viver dessa mesma maneira. Quando um grupo étnico, por exemplo, distorce todas as informações e toda a sua percepção a respeito de outro grupo para entendê-las à sua maneira, e com isso indiretamente começa a pressionar esse outro grupo para que ele seja, viva ou pense dessa sua maneira, sempre encontramos os antropólogos denunciando e combatendo essa atitude, que é uma atitude “etnocêntrica” — porque coloca uma etnia no centro da atenção e só compreende as outras a partir dela. O mais clássico inimigo da antropologia, em sua luta pelo respeito às diferenças, é justamente o etnocentrismo.

Em outras palavras, a antropologia, entre as ciências, é hoje a grande guardiã do respeito às diferenças entre os grupos humanos. Geralmente, em política, quando falamos das “diferenças” que existem na sociedade, logo pensamos nas diferenças econômicas, em quem tem mais e quem tem menos, na minoria rica e na imensa maioria pobre, como se todos fossem iguais e essa fosse a única diferença — e como esta é uma diferença ruim, ficamos com a ideia de que as diferenças em geral são coisas ruins.

Acontece que essas diferenças econômicas (assim como as diferenças de poder), por maiores e mais graves que sejam (e são), são diferenças superficiais. São superficiais porque são diferenças apenas de quantidade. Para considerarmos que “A” tem mais dinheiro ou poder do que “B”, estamos pressupondo que “A” e “B” são dois pontos (iguais) em uma mesma linha (igual para ambos), que vai da pobreza até a riqueza ou da submissão até o poder.

É preciso sim lutar contra as diferenças quantitativas, superficiais… mas deveríamos chamá-las de “desequilíbrios”, e não de “diferenças”, porque para combatê-las é preciso justamente aprender a reconhecer e aceitar as diferenças em seu sentido mais profundo, como a antropologia procura nos ensinar.

(O leitor que tem me acompanhado talvez estranhe o que estou dizendo, em face do modo como valorizei a busca do sentido original das palavras em artigos anteriores — porque a palavra “diferença” parece matematicamente muito boa aqui. Acontece que, para mim, não se trata, de maneira nenhuma, de valorizar sempre necessariamente o sentido original de cada termo: Existe, a meu ver, uma política das palavras, que envolve não apenas a dinâmica histórica de corrupção ou desenvolvimento dos sentidos de uma palavra, mas também todo um caldo de significações possíveis que a rodeiam, e que evocam e orientam visões de mundo e hábitos de conduta, que por sua vez têm uma força prática na realidade, e efetivamente determinam uma porção de coisas.

Assim, é preciso lidar com as palavras, e com todo o campo das possíveis associações que elas evocam, como lidamos com um campo de elementos estratégicos, examinando cuidadosamente onde é preciso tentar conservar ou até recuperar um sentido, e onde é melhor apostar, ao contrário, em uma ruptura, e já existe, por exemplo, uma difusa “filosofia da diferença” de que se vem falando, encampada por herdeiros do movimento de 68… escreverei sobre esta questão da política das palavras também, oportunamente.)

 

Colocando a questão em termos mais concretos

O país — na verdade toda a América Latina — parece querer caminhar para a luta contra esses desequilíbrios e suas sequelas. Essa parece ser, direta ou indiretamente, uma forte bandeira geral por detrás de todas as bandeiras aqui e no continente (se entendermos cada cédula ou título de eleitor como uma bandeira, para além dos partidos, que nem sempre estão atentos para captar esse discreto mas persistente movimento em toda a sua extensão e profundidade).

Digamos que essa pressão popular (discreta, sem muito tumulto nas ruas ou qualquer coisa assim, mas nem por isso menos evidente) não se esvazie — como não creio que se esvazie na próxima gestão do governo, nem talvez na seguinte pelo menos — e conduza a uma mobilização mais intensa dos órgãos governamentais do Brasil no sentido de diminuir esses desequilíbrios. Atividades e circuitos de consumo das elites, então, serão mais e mais acessíveis para o resto da população.

Até aqui, tínhamos de um lado (o lado “A” no disco riscado da nossa política social) as visões de mundo e modos de vida combinados de uns poucos diferentes grupos que formam as elites endinheiradas. A convivência de séculos acostumou bem esses grupos endinheirados uns aos outros. Isso não significa que sejam absolutamente um só e único grupo vivendo orientado por um único e mesmo jogo de valores — ver as coisas assim seria distorcer os fatos em favor de uma perspectiva extremamente superficial.

De outro lado (o lado B), tínhamos as visões de mundo e modos de vida de toda uma vasta e incomparavelmente mais complexa rede de grupos que formam a maioria desendinheirada — e do mesmo modo, é superficial e distorcivo (talvez até mais do que em relação às elites) tratar essa vasta rede de grupos como se fosse apenas um único e mesmo grande grupo. Apesar da vastidão dessa rede de grupos, os “desendinheirados” se acostumaram também mais ou menos uns aos outros, pelo menos internamente em cada Estado do país — convivendo como consumidores e trabalhadores nos ônibus e trens lotados ou nas boleias de caminhão, nas fábricas e nos campos, atrás dos balcões nas lojas ou nas ruas, nas filas de feira e mercado etc.

Digamos que a partir de agora, mais ou menos rapidamente, passemos a ter essas duas redes de grupos, que não estão nada acostumadas uma com a outra, convivendo cada vez mais nos mesmos espaços de circulação e consumo. Em outras palavras, digamos que os desequilíbrios sociais sejam abordados só do ponto de vista quantitativo, em termos de distribuição de dinheiro ou poder, e que não haja (como não tem havido) preocupação efetivamente significativa com questões educacionais, com a informação, com as artes, com o folclore, com as formas de expressão popular etc.

Neste caso pode-se imaginar que haverá, mais ou menos subitamente, uma aproximação e um contato mais intenso entre visões de mundo e modos de vida muito diferentes. Costumes mudarão, formas de relacionamento mudarão, mudarão as avaliações a respeito do que importa e do que é irrelevante, padrões estéticos mudarão… isso se refletirá estrondosamente nos meios de comunicação e informação, no marketing, nos ambientes de consumo etc., em toda parte, enfim.

Como é que esse cruzamento de visões de mundo e modos de vida vai acontecer? Haverá conflito? Tensões e desgostos diários? Para além dos números do IDH, que não captam esses dados antropológicos mais sutis, como isso afetará a qualidade de vida de ambos os lados? Como isso tudo afetará, finalmente, os posicionamentos políticos, por exemplo? Haverá uma nova onda de antinordestinismo fascistoide nas regiões sul e sudeste? Haverá risco de retrocesso nesse movimento de equilibração? Haverá risco de políticas que sigam o contrafluxo e promovam o desequilíbrio, chocando-se com o fluxo natural que as coisas vêm tomando? Aumentará o índice de incidentes violentos, por exemplo?

No meio do caminho, entre o lado A e o lado B do nosso disco social, tínhamos até aqui a “classe média”, outra rede de grupos, de formas variáveis e difícil de descrever com precisão… — uma verdadeira dor de cabeça para os estudiosos, a ponto de Marx, que nunca foi preguiçoso, preferir chutá-los para fora do disco só para não ter que escutar a compliqueira de suas vozes dissonantes. O que acontecerá com essa tal “classe média”? Apesar de menor que o “lado B” do disco, ela forma na verdade (e parece que sempre foi assim) uma rede de grupos igualmente complexa em visões de mundo e modos de vida, e sempre crescente, seja por empobrecimento dos que caem do “lado A”, seja por enriquecimento dos que saltam para fora do lado B. Qual será o papel dessa rede intermediária em tudo isso?

Uma coisa é certa: se seguirmos esse caminho — da solução dos desequilíbrios pela via meramente quantitativa — teremos cada vez mais incompreensão, cada vez mais valores morais contrastantes e dilemas éticos a resolver, e a pura e simples coerência poderá nos ajudar cada vez menos nesses dilemas, porque sendo perfeitamente coerentes com nossos próprios valores, podemos acabar tornando inviável o convívio com outros igualmente coerentes, mas com valores diferentes dos nossos. É necessário, então, que tenhamos um outro paradigma, para corrigir as deficiências da coerência ética em seu estado puro, e tudo aponta para aquilo que a antropologia, mais do que qualquer outra ciência, tem a oferecer.

 

A consideração das diferenças

Esse outro paradigma ético, de tipo antropológico, e bem diferente da coerência, já vem se desenvolvendo há muito tempo discretamente, paralelamente, ao longo da história, de maneira mais modesta e sem nunca ter chegado, até o momento, a assumir clara e abertamente o status de “paradigma” do pensamento ético… — mas apesar de modesto, nem por isso é menos presente, ou menos eficaz em sua influência sobre quem procura pensar a questões éticas e/ou agir eticamente, desde a antiguidade até os dias de hoje. É um paradigma que nasce à sombra daquela incerteza que às vezes podemos sentir em relação à nossa própria coerência, quando nos questionamos se no fundo não estamos sendo incoerentes ou antiéticos de algum modo, ou até mesmo se a nossa coerência, por mais firme que seja, é realmente suficiente para termos a certeza de que estamos agindo da maneira correta.

Por falta de um nome melhor, vou chamar esse paradigma de “sensibilidade ética”. A sensibilidade ética começa a se desenvolver a partir do momento em que paramos diante dos nossos próprios valores, e — mesmo quando parecem perfeitamente coerentes e agimos rigorosamente de acordo com eles — nos perguntamos seriamente: “Será que estou certo? E se todos os meus valores estiverem errados? Afinal, estes meus valores, este meu modo de pensar a respeito do que é certo e do que é errado, não é a única maneira de pensar que existe quanto a essas coisas…”. Quando fazemos nossas avaliações e julgamentos éticos, quando estamos decidindo se uma conduta, ação ou comportamento — nosso ou de quem quer que seja — é ético ou não e em que medida, podemos nos orientar pela nossa própria coerência ética, e condenar aquilo que achamos errado porque não é coerente com os nossos valores. Ou podemos nos orientar pela nossa sensibilidade em relação aos valores éticos de outros, que pensam diferente de nós. Podemos, por exemplo, tentar entender o ponto de vista daqueles que julgam nossas ações, ou então o ponto de vista daqueles cujas ações estamos julgando.

O que importa notar é que, se estamos nos orientando pela sensibilidade ética, já não é mais o nosso sentido lógico e racional o que está à frente em nossa avaliação, e sim a nossa percepção do outro, que tem provavelmente valores diferentes dos nossos — e que pode considerar ético aquilo que consideraríamos antiético, ou considerar antiético aquilo que consideraríamos ético. Por isso o termo “sensibilidade” combina bem com este paradigma.

Trata-se da observação e da atenção em relação aos valores alheios, de captar os valores dos outros, como quando paramos para realmente prestar atenção em nossas sensações físicas, quando vemos, escutamos, tocamos em algo com a ponta dos dedos, sentimos um perfume ou saboreamos alguma coisa. Não é uma questão de raciocínio. Quando está em jogo a sensibilidade ética, nossas avaliações morais já não são mais tão racionais, e passam a depender da nossa percepção, da nossa capacidade de perceber o outro, aquele que é diferente de nós e que avalia as coisas de um outro modo. E agir de acordo com essa percepção significa respeitar o fato de que o outro tem seus próprios valores diferentes dos nossos, e levá-los em consideração.

 

Os dois paradigmas na balança

Em termos morais, o perigo de se agir unicamente com base na coerência ética está no autoritarismo, no etnocentrismo, no desrespeito às diferenças, em atropelar os valores dos outros em favor dos seus próprios. O perigo moral de se agir unicamente com base na sensibilidade ética, por outro lado, está mais do que bem documentado na linguagem popular, em expressões idiomáticas da nossa língua portuguesa: é o perigo de se perder a força de caráter, de se tornar um “maria-vai-com-as-outras”, um “banana”, de não ter opinião própria e só seguir a dos outros, de se tornar um “lambe-botas”, um “puxa-saco” dos outros — mas o essencial do que todas essas noções pejorativas descrevem, está no abdicar da própria liberdade, dos seus próprios próprios princípios e decisões morais em favor das opiniões alheias. E sabemos que sem liberdade, sem decisão própria, não é possível falar em ética.

Ser ético não é “seguir regras” só porque todos acham corretas essas regras — (assim como não é rebelar-se contra as regras como um “adolescente em crise” só porque são regras). Ser ético é seguir por sua própria decisão os valores que se julga os mais corretos, sejam eles de acordo com as regras e as opiniões alheias ou não… mas o fato é que não vivemos sozinhos no mundo, e às vezes, realmente julgamos correto dar um pouco mais de atenção aos valores dos outros, mesmo que esses valores acabem contradizendo alguns dos nossos próprios valores e princípios.

Por exemplo: um marxista ortodoxo típico (essa interessante espécie em extinção) teria provavelmente uma dificuldade muito grande de conceber o que estou dizendo senão como uma visão “pequeno-burguesa” já “conformada” com as mudanças por vir, e que aponta para uma suavização da luta de classes a fim de entregar o anel para não perder o dedo… No entanto, apesar de escrever imaginando que a maior parte de meu público leitor realmente será — provavelmente e se não estou enganado — de grupos que esse marxista ortodoxo classificaria como “pequeno-burgueses”, o fato é que, nesta avaliação, ele estaria profunda e radicalmente errado em relação ao que está por detrás deste ponto de vista diferencial da ética que estou confrontando com o ponto de vista mais tradicional — que é o da coerência. (E aliás… também creio que entre meus leitores, “pequeno-burgueses” como eu, pode haver bastante gente de formação direta ou indiretamente marxista… só não creio que essa classificação realmente descreva alguma coisa: todos nós que vivemos em cidades, ou seja em burgos, somos burgueses, no sentido mais forte, completo, profundo e evidente do termo… — que infelizmente, não é o sentido marxista).

Para compreender-me, o nosso hipotético marxista ortodoxo precisaria compreender, entre outras coisas, o que significa pensar a questão da luta de classes, de que Marx falava, sob a ideia de que talvez não haja nada desse papo de uma “revolução” final, definitiva e salvadora, e de que as grandes “revoluções”, quando ocorrem, não são sempre e necessariamente coisas boas, e nem apontam sempre e necessariamente para uma mesma direção, um mesmo “destino” histórico.

Na verdade, duas pessoas de formação originalmente marxista (ou talvez marxista e freudiana) me apresentaram bons argumentos nesse sentido: a professora Jeanne-Marie Gagnebin, da PUC de São Paulo, em um curso sobre o filósofo Adorno e a Escola de Frankfurt, em meus tempos de Mestrado, e antes dela o filósofo Cornélius Castoriadis, que sempre considerei e continuo considerando uma excelente leitura (os frankfurtianos e o grupo de Castoriadis não “se bicam” muito bem, mas são ambos de origem marxista e freudiana, uma dobradinha que tem rendido bons frutos). É preciso reconhecer, aliás, que os marxistas heterodoxos (dos quais em geral também discordo) têm transformado o paralelepípedo economicista de Marx em uma das tendências filosóficas mais lúcidas, autocríticas e renovadoras de nossa era — o que é um fato observável e evidente seja qual for a nossa avaliação de seus resultados, no balanço final.

Examinando as coisas sob este ângulo, talvez fosse enriquecedor, para o nosso hipotético marxista ortodoxo, se permitir pensar um pouco no seguinte, nem que seja como um mero exercício intelectual: o que significa, exatamente, a constante luta, conflito e sofrimento em vista de um “mundo melhor” — em que não seria mais preciso lutar, conflitar, sofrer?

Como parâmetro para esse exercício intelectual, eu proporia levar em consideração o possível acerto da seguinte opinião: há lutas pela frente — aliás, prazerosos desafios, eu diria. Mas se alguma dose de suor e sofrimento tende a fazer parte delas, devemos dosar esse sofrimento em função de um objetivo que não esteja “lá adiante” não sei onde, e sim aqui, agora, na nossa vida de cada dia, que não deve ser vivida como se fosse uma dolorosa missão em função de uma felicidade “no além” (ou em um “destino” de felicidade que imaginamos em um futuro improvável… dá no mesmo).

Mas feito o exercício, ele — meu amigo marxista imaginário — deveria então necessariamente abandonar seu próprio modo de pensar em favor do meu, se acabasse concluindo que faz algum sentido o que digo? — Será mesmo? Até que ponto? Porque todo um conjunto de valores que norteiam a vida de uma pessoa, especialmente valores bem estruturados e coerentes, não é algo que se deva necessariamente deixar de lado em bloco e por inteiro de uma só vez , mas um todo complexo que tem muitas facetas e componentes, alguns mais fixados e rígidos na mente da pessoa, outros menos, alguns menos interessantes e outros mais… (aliás, esse tipo de reviravolta sem uma atenção mais ou menos equilibrada aos “prós” e aos “contras”, geralmente não me parece uma coisa muito boa, para a formação ou o desenvolvimento de uma pessoa que se julgue dotada de um bom senso crítico).

Para encerrar a questão (…por enquanto…), creio que este é, justamente, o principal dilema que o cético tem a enfrentar no campo da ética: qual é o melhor paradigma a seguir? A coerência ética ou a sensibilidade ética? O que é mais ético? Sermos realmente autênticos e coerentes em relação aos nossos próprios valores, sermos nós mesmos (e dane-se que estejamos de algum modo “fora de moda” ou isolados, sem quem se interesse por nos ouvir), ou sermos sensíveis ao apelo das diferenças, da presença do outro diante de nós, aceitarmos ser e fazer valer um pouco menos daquilo que somos, sermos um pouco menos autênticos, e nos tornarmos mais diplomáticos, políticos, negociadores…?

Sinceramente, não sei. Para parafrasearmos Shakespeare… coerência ou sensibilidade, eis a questão!

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