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Um dito que parece estar se popularizando
A fantasia humana é prolífica na criação de imagens educativas, que frequentemente se espalham transformando-se em ditos populares. Existe um dito popular que tem circulado nos Estados Unidos e que merece comentário. É belíssimo, mas digo que merece, apesar disso, um comentário crítico duro. Digo que “tem circulado” sem conhecimento de causa, na verdade.
É que já vi ouvi esse dito duas vezes, e uma foi num dos mais recentes filmes da Disney que chegaram ao Brasil, “Tomorrowland: Um lugar onde tudo é possível”. Da outra vez, o ouvi em contexto totalmente diferente: em videos norteamericanos da internet sobre como combater vícios a partir de nossa própria força de vontade.
Disney e vídeos da internet sobre autocura para vícios são ambos de imenso público. Então suponho que esse dito esteja circulando por lá.
Trata-se do seguinte. É belo. Mas como já disse, merece (exige) uma crítica dura.
Há dois lobos, um lobo branco (entende-se “do bem”) e um lobo negro (entende-se “do mal”). Os dois estão dentro da gente e, e estão famintos. Qual vai sobreviver? E a resposta é: aquele que a gente alimentar.
Cento e cinquenta tons de cinza (…ou mais!):
Um pouco da sabedoria pagã oriental
Meu comentário é breve: não, não há dois lobos.
A gente é um lobo só, cujos pêlos são ora mais brancos, ora mais negros, e vão variando em, digamos assim, uns cento e cinquenta tons de cinza.
Buscar o melhor, é buscar incessantemente o equilíbrio mais favorável nessas diversas tonalidades entre o que consideramos ruim em nós e o que consideramos bom em nós em cada momento, pois para cada pêlo que nos tiramos e eliminamos de ruim de cá, veremos ressurgir acolá um outro pelo de cor igual, outra coisa “ruim” qualquer de outra roupagem, com outra cara. Isto se chama vida.
O pensamento pagão oriental já está em geral acostumado a isto. E no ocidente, Jung tenta nos lembrar de algo a respeito com seu conceito de “sombra”. Temos, todos nós, o que está em cada momento na nossa “sombra”. Ela se transforma e remodela junto conosco, e precisamos permitir que se transforme.
A pura e simples repressão da sombra não é o saudável. Inclusive porque o “melhor” não é sempre e em todos os casos necessariamente o que não está na sombra. Muita coisa boa, e muito boa, poderia vir das sombras, se pudessem transitar mais livremente para a luz.
Mas o ocidentalismo repressor de raízes centro-orientais, que em termos religiosos é principalmente judaico, cristão e islâmico, parece ter uma diciculdade muito grande com essa ideia, e precisar desesperadamente separar “bem” e “mal”, ou seja, nos arrebentar em dois e colocar nossas faces, assim empobrecidas por uma visão dual, maniqueísta, em guerra uma contra a outra.
Perfeição e “redenção”: Um pouco de Nietzsche,
um pouco da luta pela vida em face da entropia
O dito popular em questão é contaminado por aquilo que Nietzsche procura criticar em seu texto Da redenção, em Assim falava Zaratustra. Nesse texto Nietzsche dialoga com a Bíblia — isto mesmo, dialoga, e criticamente… o que demonstra aliás uma intimidade com a coisa maior que a de muito crente.
Dialoga fazendo a crítica da ideia de “perfeição” que dela se costuma (provavelmente com razão) extrair da Bíblia. Ideia de perfeição que é representada, no texto, pela ideia fixa de um corcunda de tirar milagrosamente aquela corcunda das costas.
O corcunda do texto não é realmente uma pessoa. É uma alegoria, um símbolo em forma de gente. Esse personagem alegórico pede a Zaratustra a generosidade de um milagre. O Zaratustra Nietzscheano lhe responde com um choque de realidade.
Parece cabível, então, metermos a cara a inda mais na pura e simples realidade: constatar que o personagem do corcunda é, ele o próprio, apenas um personagem alegórico, simbólico — “o corcunda”, ou “deficiente”, que tem sua existência dentro de um texto cheio de outras alegorias. Portanto sendo ele a própria corcunda, que o caracteriza como aquilo que ele é, esse corcunda (que é então essencialmente “o corcunda” e nada mais do que isso), movido não obstante por essa infeliz ideia de que há “imperfeição” em suas costas, quer “tirar” isso de si mesmo, e ainda o pede a alguém (Zaratustra) que lhe parece “superior”, que lhe parece transcender a própria perfeição, a ponto de poder transbordá-la para outros e “curar por milagre”.
Pois bem: o corcunda claramente não entendeu muito bem, o Grande Zaradustra parece estar recusando-lhe o milagre e ainda por cima humilhando-o maldosamente.
Mas não é nada disso. O tal “milagre” pedido foi precisamente o que Zaratustra lhe fez: operou sua “cura” transbordante, que consiste no choque da realidade, na constatação cabal de que não há milagres e de que não são precisos milagres. Pois tudo isto o que está aí ém nós, é pura e simplesmente tudo o que está aí, tudo o que há para estar aí.
A ideia de “perfeição”, nos faz refletir Nietzsche, não passa talvez de uma tortura criada pela fraqueza humana para preservar sua existência masoquista punindo os diferentes.
Lembro desse texto e fico pensando o seguinte: tente apostar corrida com uma pessoa daquelas que do joelho para baixo têm aquelas espécies de patas de metal em lugar das pernas, depois me diga quem é o “deficiente”.
Entretanto, a própria criação daquelas “patas” metálicas belíssimas e incríveis não teria sido produto dessa noção maléfica de “perfeição”? Não creio. Creio que tenha sido produto misto, disto com a simples gana da superação de limites, mais especificamente, da luta contra a entropia e a morte sob suas diversas e variadas prefigurações sempre presentes.
Ver alguém diferente de nós nos faz lembrar daquilo que não temos em nós, e portanto, por tabela, da presença constante da morte nos “tirando pedaços” de vida. Acho que há, na própria criação deessas maravilhosas “patas” de metal como próteses, também um tanto da luta humana contra a entropia e a morte. A morte! — essa nossa bela e terrível desafiadora gigantesca de todos os instantes, da qual fugimos e fugimos mais, e que vai se insinuando a todo momento pela nossa consciência adentro.
E a luta é bela, e valorosa. Ainda mais bela e valorosa na medida em que tem a força de se estender do inconsciente até a consciência. O viver, como um todo, esse constante “fugir” das garras cada vez mais penetrantes da morte, é também uma luta. Aquela mesma da presa que, com os olhos brilhantes, foge em disparada do predador…
Vejo um certo prazer nesse brilho dos olhos da preza? Não. Vejo dois prazeres. O prazer mórbido do conforto de ser devorado pelo tempo e ir “passando”… e o prazer lúdico do jogo de fugir, do jogo intenso e vibrante, o mais intenso e vibrante de todos, da vida contra a morte.
Respondendo à distinção entre lobo “bom” e lobo “mau”:
Essa distinção é a própria invenção do “mal”
Minha resposta a esse dito, então — os incríveis lobisomens carinhosos que vivem no coração de cada humano que me ouçam — é a seguinte: a invenção do “bem” e do “mal” como coisas distintas e não-misturáveis é, ela própria o mal.
Essa distinção é a própria invenção do mal na história da humanidade, na verdade. Para além disso, “bem” e “mal” só chegam a distinguir-se e separarem-se em si mesmos em casos extremos e específicos, aliás claramente reconhecíveis sem qualquer necessidade dessa maléfica distinção em estado permanente.
Tudo é uma questão de transformação, de alteração das configurações em jogo dentro de nós, carregadas de elementos “mais para positivos” e outros “mais para negativos”, e que oscilam constantemente. De modo que devemos é buscar sempre e sempre os equilíbrios favoráveis, o lobo carinhoso, não o negro nem o branco (simbolização aliás deveras preconceituosa).
Os vícios, claro, são ruins nesse sentido, porque são fixações que nos dificultam as manobras, tiram a nossa liberdade de transformação. E nesse sentido são, sim, “maus”. Mas divida-se internamente em dois lobos famintos e distintos, parta em dois o seu lobisomem carinhoso, um “bom” um “mal” — reinventando assim mais uma vez dentro de si mesmo a “maldade” (e dupla, a do mal concentrado de um lado, e a de julgar preconceituosamente um de seus “lados” como “o mal”) e esses dois lobos vão lhe devorar as entranhas, isso sim.
O que existe ainda assim de belo e interessante
no dito popular sobre o “bom” e o “mau” lobo?
O que há de bastante interessante nesse dito que estou supondo já popular, e do qual faço a crítica aqui, é que ele semiconscientemente já faz de si mesmo a autocrítica nessa mesma direção: assume que ambos são lobos, forças selvagens dentro de nós. Incorpora já em si mesmo essa nossa pré-histórica ascendência que tento trazer à tona com a noção de um carinhoso lobisomem.
Não é à toa que os lobisomens estão entre as lendas mais antigas da história da humanidade (literalmente, porque já estão presentes em lendas anteriores àquela mais conhecida de Gilgamesh, que é do terceiro milênio antes de Cristo e está entre os textos mais aintigos já encontrados pela arqueologia). O tio-avô de Gilgamesh, salvo engano, era lobisomem. E o próprio Gilgamesh demonstra ser portador dessa herança em seu espelhamento na figura de Enkidu, seu gêmeo coberto de pêlos e com chifres de touro.
O touro e o lobo (com suas orelhas em pé, eriçadas como chifres contra a luz da lua cheia) são ambos representações desse selvagem profundo no homem, assim como também o bode, que foi mais tarde, nas lutas religiosas, dar origem à figura do “diabo”, quando quiseram inventar o mal separando-o do “bem” e combatendo-o (maleficamente, aliás).
Por que se assemelham lobo e os animais domésticos cornudos nessas antigas lendas mesopotâmicas de milênios atrás? Sobretudo porque esses com animais com chifres (armas de guerra) mas domesticados, são de enorme importância na produção de alimentos no período final já agropecuário da pré-história, de modo que os cornos (chifres), de armas, passam a simbolizar por um lado o órgão sexual masculino, com seu poder de participar na reprodução humana, e de outro, o poder de (puxando arados e também fertlizando a terra com esterco) de fecundar a mãe-terra, gerando alimentos. Quem tiver curiosidade quanto a isto, pesquise sobre o antiquérrimo símbolo da cornucópia.
Mas por que o lobo associado a isso, e porque a fusão de lobo e gente? Por que o lobisomem?
Porque antes ainda de termos domesticado os bois e bodes e cabras e carneiros (esses chifrudos “amigos”), domesticamos o lobo. O mais aintigo dos animais domesticados pelo homem, que vem nos acompanhando desde a mais remota pré-história também na busca de alimento, que na época era realizada pela caça. De povos caçadores, passamos a povos agricultores e pastores, e os lobos nos acompanharam transformados geração após geração, em cães.
Mas no início, éramos companheiros de caça, e o termo companheiros é o melhor para isso, porque beeeeeeem no início, éramos também peludos como eles, e tínhamos inclusive um tanto de rabo também. Só que fomos dominando a arte da caça, dirigindo a caçada, e eles nos acomapnhando cada vez mais, agradecidos, porque a caça conosco resultava em mais alimento.
Comendo juntos… e da comensalidade
ao acolhimento do outro
E também porque lobos têm já um pouco desse instinto canino que possibilita o acolhimento do outro em sua matilha como se fosse apenas um lobo “um tanto diferente” — embora isto não esteja tão ressaltado neles como nos seus descendentes, os cães.
Nisto consiste a beleza, literalmente profunda (no tempo, na memória, em nossos genes) daquilo que o dito popular aqui criticado permite transparecer de nossa memória profunda, digamos assim. Na beleza do acolhimento do outro, do diferente, e inclusive do que está “na sombra”, permitindo assim a integração com a luz que pode alterar-lhe as condições (ao mesmo tempo que altera as da luz).
Se me permitem uma brincadeira bem-humorada, diria que é a beleza permitir uma bela luz, digamos assim,um tanto “luciferina”. Digo isto brincando com a palavra “luz” e com a palavra “fera” — que em português, seja correta ou não a etimologia, parece resguardar um parentesco com a ideia de origem, visto que “fer” significa “fazedor” (de certo modo, “criador”). Para uma brincadeira provocativa, parecer é suficiente.
Em tempo, e indo além da brincadeira: o lado maléfico das “seitas satânicas”, que em muitos casos se tornou real, foi literalmente uma invenção do próprio cristianismo medieval, pois em sua luta de repressão (violenta) aos paganismos, gerou reações que assumiam a imagem feita disso pelo cristianismo medieval — o que é, aliás, facilmente pesquisável.
Alguém quer comprovar? Basta dedicar-se ao estudo da coisa com seriedade, e orientar-se sempre pelo seguinte: busque de prefer~encia sempre o que houver de mais consistente e bem-informado, e de preferência de mais neutro em matéria religiosa, no campo da história das religiões, e fazer isso peneirando criticamente para “neutralizar” tudo o que pareça tendencioso para um lado ou para outro nessas guerras religiosas. As reais e antigas seitas pagãs, não eram nada disso.
Em suma: os lobos estão na nossa mais antiga história de acolhimento do outro, e na figura dos cães, seus descendentes, se transformaram de certo modo em parte de nós. Gostemos ou não de cachorros, eles espelham algo milenar e profundo que de certo modo está ainda em nós, lá no fundo. Um certo sentido de selvageria domesticada.
O lobo como um outro interior
Rachar o lobo interior em dois, no entanto, acolhendo essa superfície maniqueísta que adquirimos na história das guerras religiosas, reprimindo um dos lados, não é exatamente o melhor meio de aprendermos a acolher a alteridade em nós mesmos, e transfigurá-la em algo positivo em nosso equilíbrio global, segundo nossos próprios valores.
Digo que o outro tem sempre algo de boas energias a colher, mesmo quando paradoxalmente pareça o que há de mais oposto aos nossos valores e de mais inaceitável aos nossos olhos.
Trata-se de como lidar com o que não queremos em nós: arrancando um pedaço de nós (o que não vai acontecer a não ser ilusoriamente, gerando uma sombra reprimida e ainda mais maléfica em nós), ou aceitando nossas mil facetas, obscuras ou luminosas nos mais diversos graus, e permitindo que se alterem umas pelas outras.
Epílogo (uma ponte para o tema futuro da entropia)
Em outra ocasião vou procurar examinar de que modo operar com a própria entropia, redirecionando-a e “deixando correr as coisas”, pode em certas circunstâncias ser melhor para os seres humanos do que bater-se de cabeça contra ela tentando combatê-la “na porrada”… por ora basta lembrar que não temos chifres, e dar cabeçadas pode não ser boa ideia.
Fica aqui o meu comentário crítico, de acolhimento transformado do lobo hobbesiano… meu comentário de carinhoso lobisomem.