Por João Borba 08 de julho de 2006 – artigo 02, vol. 1
(originalmente publicado em www.eleicao.info)
Como determinar a identidade
de um grupo social?
Um funcionário público, com sua prancheta de formulários, é recebido na porta de uma casa de gente simples, por um adolescente. Pede que ele chame o “chefe da família” para responder algumas perguntas. — Óia, aqui num tem chefe não, seu moço. Chame o seu pai então, por favor. Num tenho não, seu moço, morreu. Então sua mãe. Num tá em casa, num tem ninguém, só eu. Ele coça a cabeça: tudo bem, neste caso você serve. Sua família tem quantas pessoas? — Ah, seu moço, isso depende… meus primo e minha tia eu considero da família ou não? E minha avó? Minha mãe, depois que o meu pai morreu, ficou cum o Bento, que passa muitas noiti aqui, mas nem sempre. Eu chamo ele de “tio”… mas sei lá. E tem o Bentinho, filho dele, num sai du colo da minha tia e mora aqui mais que ele, mas num sei… será que ele conta?
Uma resposta possível
O filósofo uspiano José Arthur Giannotti, no primeiro capítulo do livro Trabalho e reflexão (1984), conclui que determinar a identidade de uma família em tais condições “evidentemente só se torna possível quando a mãe ou o filho mais velho assume, diante de outras instituições sociais, o papel de representante, quando enfim um dos membros do grupo encarna a unidade familiar diante do fisco, da escola, da igreja e tantas outras instituições”.
Segundo Giannotti, a individualidade da família depende “de um jogo de substituições, onde um vale pelo outro” — ou seja, onde alguém representa os demais, e isto está inscrito na própria realidade dos fatos sociais, não é questão de ponto de vista do observador. Não cabe ao funcionário avaliar, no caso que imaginamos acima, quem realmente faz e quem não faz parte da família. O representante, no caso o “chefe de família”, emerge das próprias relações sociais que se estabelecem ali, na medida em que assume esse papel e é reconhecido nele pelos outros membros do grupo. É ele quem pode re-apresentar a família diante de outros grupos e instituições, para que eles possam reconhecer a identidade dessa família.
Isto quer dizer que a identidade de um grupo social depende de se apresentar em suas relações como uma unidade determinada, com contornos mais ou menos nítidos e não indefinidos. Portanto depende da presença de um representante que encarne essa unidade nos contatos com o ambiente externo. Por algum tempo, esse texto do Prof. Giannotti me convenceu de que a representação política poderia nascer das necessidades naturais de um grupo social, no convívio com outros.
Para mim, faltava apenas notar que não precisaria ser um representante só, e que no limite, cada membro poderia assumir e encarnar em si mesmo, à sua maneira, a unidade do grupo — uma situação bem mais interessante. Mas isso só seria possível em grupos pequenos e extremamente coesos, em que cada membro participasse nas questões que interessam a todos. Querer estender isso às massas seria acusado, com toda razão, de utópico. Em geral, mesmo em grupos relativamente pequenos, o que observamos independentemente das especulações e da interferência de nossos valores pessoais — se é que isto é possível — parece ser mesmo aquilo que foi colocado por Giannotti. (Ou pelo menos foi o que acreditei durante algum tempo. Mas vamos manter esta ideia por enquanto. Ainda há águas a rolar neste artigo, e voltaremos a esse “representacionismo” de Giannotti sob um ponto de vista mais crítico.)
O que é um representante?
Qual é a natureza da representação política?
Na política democrática, como em qualquer outra parte, um representante é aquele que re-apresenta algo — no caso um grupo de interesses — seja para alguém, outro grupo, ou uma instituição. Evidentemente não é o próprio grupo que está presente diante de nós na figura do representante, mas uma imagem desse grupo assumida por ele. Ele nos re-apresenta o grupo com uma unidade que, sem esta re-apresentação, talvez não fosse captada por nós. Sem isso seria difícil responder a quem ele representa para caracterizá-lo de fato como representante.
Assim, ele de certo modo atua como se fosse uma palavra viva. A palavra “livro”, por exemplo, representa um grupo de objetos extremamente diversificado, com os mais variados formatos, tamanhos, e conteúdos. Mas ela remete a certos traços comuns que atravessam toda essa variedade de livros, e os reapresenta como se fossem um só, com base nessas características comuns. Graças a isso, sabemos do que é que estamos falando. A imagem de um grupo social que transparece em um representante também funciona desse modo.
Supõe-se que uma boa representação de algo é aquela que não corrompe a imagem da coisa representada, quando a apresenta. Assim, se ao invés de “livro” dizemos “chumaço de papéis”, passamos uma imagem distorcida, uma imagem corrompida daquilo que pretendíamos representar.
O representante político é corrupto por natureza?
Chegamos, então, ao tema deste artigo: a natureza da corrupção política.
Como assim? Tínhamos uma metáfora — bem estranha, aliás, comparando o político a uma palavra — e falamos da imagem corrompida que uma expressão mal escolhida pode passar. Agora, de repente, num golpe de retórica, estamos falando de corrupção na política! Mas ora bolas, essa “corrupção” já não é a mesma! Isto, justamente, não é usar uma metáfora para corromper o sentido de uma ideia? Não. Neste caso, não é. As metáforas são mais importantes do que parece, e às vezes representam as coisas melhor do que imaginamos. Entremos então de uma vez na questão. As coisas ficarão claras no devido tempo.
O assunto que pretendo abordar, e que precisa de tanta preparação (porque é mesmo delicado) é uma certa noção que circula na população acerca do caráter do político em geral: — A corrupção na política, como dizem nas ruas, é algo natural? Em outras palavras, é inevitável, faz parte das atividades políticas em sua essência, e só pode ser lamentada, vigiada e talvez suavizada?
Esta opinião popular pode parecer ingênua, e na sua ingenuidade, perigosa. Coloca sob suspeita os representantes políticos, e por tabela, a ordem institucional que se estrutura em torno deles, prenunciando ou até mesmo sugerindo irresponsavelmente uma postura de não-participação nesse jogo, que difundida e levada a extremos, deslegitimaria a própria ordem democrática. Este é um ponto de vista.
Agora examinemos mais de perto o ponto de vista oposto: em que medida há de fato ingenuidade nessa opinião? E quais são precisamente as peças do grande jogo democrático que ela ameaça? — Sejamos claros: os atingidos, diretamente, são os representantes políticos. Essas peças, tão importantes do nosso regime político, estão efetivamente no fundamento da ordem democrática ou são um complemento? Atingi-las abalaria a estrutura da democracia como um todo?
Vivemos sob um regime de democracia representativa — esse adjetivo tem sido esquecido, assimilado ao substantivo “democracia” como se fosse parte dele tão intimamente que uma coisa fosse impensável sem a outra… será mesmo?
É do interesse da classe dos representantes políticos como um todo, por razões óbvias, assimilar essa opinião popular a uma ingênua e perigosa “cultura da corrupção” que se estabeleceu no país, e que deve ser combatida — não é verdade, e já é mais do que hora de alguém denunciar a manobra.
Embora o problema da corrupção no país não deva ser reduzido apenas a questões dessa ordem, e eu nem mesmo acredite que haja, no que quer que seja, uma “verdadeira natureza” a ser detectada, para afirmar, por exemplo que os poderosos são corruptos “por natureza”, é preciso reconhecer que a ideia popular de uma corrupção natural na política é, na verdade, recorrente e mundialmente observável em inúmeras culturas, nos mais variados períodos históricos, desde a antiguidade, em qualquer regime político, sempre dirigida — e por alguma razão — aos que detêm o poder. Nas democracias isto é ainda mais marcante, pois a única coisa que torna legítimo que uma pessoa tenha mais poder político que as outras é justamente o fato de representá-las, ou seja, o fato de não ser exatamente uma pessoa, mas uma representação viva de outras pessoas, um representante.
Em meu artigo anterior, procurei assumir, com bom-humor e leveza, o ponto de vista desse representante político. Neste, procurarei assumir sob este ângulo o do cidadão comum, ainda que para isso tenha que adotar, como uma espécie de exercício especulativo, uma noção um tanto platônica e aristotélica de uma “natureza essencial” das coisas, que não é exatamente a minha, mas me parece representar mais ou menos bem o espírito dessa ideia popular. De qualquer modo, o resultado, com base em minhas próprias ideias e por outras vias, seria aproximadamente o mesmo.
A corrupção como um “desnaturamento”
Antes de qualquer coisa precisamos nos entender quanto à ideia de “corrupção”. Em tempos passados essa palavra tinha um sentido mais amplo e profundo que o atual. É interessante notar como as palavras perdem o sentido original com o tempo. Geralmente nascem abertas a todo um leque de significações e dando a elas um sentido comum e profundo. Depois, com o uso, vão se gastando como moedas. Alguns significados — em geral os mais superficiais e que exigem menos reflexão para serem lembrados — se fixam, e os outros vão sendo deixados de lado. Frequentemente o sentido mais profundo que os articulava se perde.
Os avós de nossos bisavós, que sabiam das coisas, diziam que algo estava “se corrompendo” justamente quando estava perdendo sua natureza original. Como o metal, que quando enferruja e vai perdendo suas características originais, ou a maçã que apodrece com o tempo. Nesse sentido, poderíamos dizer que cada palavra, e mesmo toda a nossa linguagem, tende a se corromper com o tempo, e perder de vista aquilo que tinha o objetivo de representar.
A “corrupção”, portanto, estava ligada à ideia de decadência, de degradação, de decomposição de algo rumo ao fim de sua existência, coisa que às vezes podia ser revertida, às vezes não. Um doente, por exemplo, dizia-se estava com a saúde “corrompida”. Mas o envelhecimento seria também uma corrupção do corpo. A própria vida, então, pareceria uma luta constante contra a corrupção do corpo e da alma — se Nietzsche não viesse nos dizer que há mais do que mera sobrevivência nisto que chamamos de “vida”, e que a vida não quer ser conservada, mas vivida.
Não é uma noção conservadora. Apenas exprime a ideia de que as coisas um dia se acabam, e de que isto não se dá de uma hora para outra, mas por um processo natural que pode ser observado. É natural que as coisas, em um certo momento, entrem em processo de degradação e comecem a “se retirar da natureza”, a perder seus traços naturais até finalmente deixarem de existir. É o caminho natural da morte. Mas por outro lado, é preciso que certas coisas se acabem para que algo de novo possa nascer, algo que tenha uma outra natureza, outras características. Se o processo de corrupção das coisas de certo modo é ruim, porque é um processo de decadência, de degradação, de queda em direção à morte, não significa que o que pode nascer desse processo também seja ruim.
Além disso, nem tudo o que não é corrompido é necessariamente bom. Na verdade, esse sentido de “corrupção” acompanha uma ideia muito prática e utilitarista: a de que a natureza das coisas é boa para alguma finalidade, e conforme elas se corrompem, deixam de ser boas para essa finalidade, até se tornarem totalmente inúteis em relação a ela. Assim, por exemplo — para lembrarmos de um referendo que circulou no país recentemente — não estaria em questão se uma arma é algo bom ou ruim, mas se ela é boa para sua finalidade (matar o outro). Diríamos então que a arma estaria “corrompida” na medida em que ela começasse a emperrar, a disparar sozinha etc. A discussão quanto à finalidade (se é boa ou ruim), estaria num outro patamar. Se a própria finalidade fosse ruim, diríamos que a coisa era ruim por natureza.
Agora, apontando finalmente para no nosso alvo neste artigo, pergunto: qual é o sentido original da representação política?
O que significa a corrupção entre os nossos representantes políticos, se tomamos o termo “corrupção” em toda a sua extensão? A resposta que temos por enquanto é aquela que derivei de uma pequena passagem do livro do prof. Giannotti: a natureza da representação política está na própria identidade de um grupo social como um todo, assim como essa identidade também se define em função dessa representação, de modo que uma coisa parece se definir pela outra e vice-versa.
O que essa resposta poderia explicar
Se a natureza do representante é a de re-apresentar um grupo — formando uma imagem em que esse grupo aparece, através dele, como uma unidade com identidade própria — sua corrupção seria o processo pelo qual ele perde essa natureza, e com ela sua competência para re-apresentar esse grupo.
Há muitas maneiras de perdê-la. Ele pode, por exemplo, não apresentar uma imagem coesa e unificada do grupo, e representar apenas algo de oscilante e indefinido. Pode também re-apresentar uma falsa imagem desse grupo, uma imagem na qual o próprio grupo não se reconhece. Estas duas alternativas, curiosamente, colocariam, na categoria de “corrompidos” como representantes, políticos que desempenham suas atividades na melhor das intenções e completamente dentro da lei, e que sem dúvida protestariam.
Incluiria por exemplo os que perdem ou diluem drasticamente o contato com suas bases; e os que, mesmo sem perdê-la, uma vez no governo não entram em contato com os problemas diários da população em geral, que deveriam passar representar, e se relacionam mais com outros políticos do que com ela. — Isso ocorre também porque estamos falando de gente, de grupos humanos — cujos sentimentos, valores, interesses e necessidades mudam e se redefinem constantemente, e quem pretende representar aquilo que muda, precisa acompanhar a mudança. Logo, é a coerência que nos obriga a declará-lo: corruptos, sim, inapelavelmente, e no sentido mais profundo do termo — protestem o quanto quiserem. O pior dos casos, entretanto, continua sendo o do suposto representante que simplesmente não carrega mais, em si mesmo, imagem nenhuma de grupo nenhum, mas apenas os seus próprios interesses. Este já não representa ninguém, a instituição representadora desapareceu nele, é apenas ele próprio que se apresenta, com seus interesses, fingindo-se de representante para obter o que quer — e aqui encontramos uma conexão com a “corrupção” no sentido atual, e uma possível explicação para suas origens: a desconexão do representante com aqueles que deveria representar.
Ao que parece caímos enfim em algo banal: trata-se simplesmente do compromisso efetivo do representante em relação aos seus representados — suas bases num primeiro momento, e depois, quando eleito, sem traí-las ou abandoná-las, a população como um todo. A novidade parece estar nos contornos mais abrangentes desse sentido mais profundo de “corrupção”, pois já não estaríamos falando só de atos ilegais, nem mesmo apenas dos que governam em interesse próprio, mas da própria perda do sentido de representatividade, naquilo que ele tem de mais profundo. A bandalheira da “corrupção” no sentido atual e mais específico seria apenas uma das consequências nefastas disso.
O que esta resposta não explica
O problema é que essa noção a respeito da identidade de um grupo social, que na juventude extraí de uma leitura — reconheço que rasteira apenas do início — de uma obra de Giannotti, está errada.
Desconheço se as posições do professor — a quem admiro, e muito — pareceriam diferentes em uma leitura mais completa e aprofundada do livro, ou se seu posicionamento em relação a isto mudou — não o reli para escrever este artigo, porque minha intenção absolutamente não é polemizar. Se pretendesse fazê-lo, seria em relação a certo artigo sobre o filósofo P.-J. Proudhon publicado por ele na Folha de São Paulo, que me ficou entalado na garganta, porque o jornal, ao qual escrevi, não me deu o espaço para uma resposta na época (preferiram procurar um nome de mais fama e peso para o debate, e talvez tivessem razão em fazê-lo, porque Giannotti é Giannotti… mas no final das contas, o resultado foi que nenhuma resposta chegou a ser publicada, e o tamanho das distorções acerca de Proudhon exigia uma boa resposta, mas enfim, que se há de fazer…!).
O que quero realmente colocar em questão é a noção de representatividade política, e um certo sentido em que ela poderia ser considerada, como popularmente se diz, corrupta por natureza. Nossa brincadeira neste artigo, de certo modo uma brincadeira de bandidos e mocinhos, com revólveres de espoleta, também não pretende depreciar gente de bem que esteja se esforçando por fazer alguma coisa na política. Mas não há crítica consistente que não rasgue algumas fantasias, e os revólveres de espoleta são um tipo de brinquedo cujo potencial agressivo já foi reconhecido — embora do ponto de vista legal parece que, curiosamente, mais do que em relação às armas de verdade… sigamos em frente então, e digamos o que tem que ser dito antes que liberem as pedradas e proíbam os argumentos.
Retomando o argumento, por este conceito ampliado de “corrupção” estaríamos falando de um processo naturalmente inscrito no próprio desenvolvimento do representante político enquanto tal. A corrupção da representatividade, em um político como em uma palavra, seria parte natural de seu processo de declínio e desaparecimento, após um período de desenvolvimento até o seu apogeu. Essa estranhíssima imagem seria cabível? Esta é uma questão que nossas especulações deixaram ainda em aberto, e devemos tentar respondê-la sem forçar a realidade como se ela devesse caber necessariamente em nossos conceitos, ou estaríamos também promovendo a corrupção desses conceitos em relação àquilo que eles deveriam representar!
A princípio, a ideia é a do político até certo ponto como um jogador de futebol que, se não sai de campo no auge da carreira, tende a se tornar uma figura decorativa nas mãos dos patrocinadores. Só que a corrupção política, em toda a extensão de seu sentido, parece ter a tendência de ser maior e mais profunda justamente nos mais altos escalões, entre aqueles que estão no auge…
O paradoxo da representatividade
Para não nos estendermos demais, vamos diretamente ao ponto mais sensível dessa questão: a passagem do representante apoiado em suas bases e na defesa de certos interesses específicos — e que portanto tem claramente delineados os grupos aos quais representa — ao representante eleito, que não pode limitar-se à defesa de grupos específicos, e deve pelo contrário representar todo um amplo conjunto de grupos e interesses, que já não são exclusivamente os que representava antes.
De que modo essa necessária reviravolta, que ocorre várias vezes na carreira de um político (e até certo ponto na de um partido), avançando para círculos cada vez mais amplos de representação, tende a afetar a sua natureza enquanto representante? Se o grupo social representado tende a ser cada vez mais amplo, segundo a evolução da carreira desse representante, que efeitos isso pode ter sobre a relação entre eles?
Estou me referindo a um paradoxo observado em política já desde a ascensão ao poder dos primeiros representantes da burguesia, na passagem do monarquismo absoluto às primeiras monarquias forçadas a ouvir esses representantes, e depois nas primeiras repúblicas com lideranças eleitas.
Trata-se do seguinte: se uma determinada população tem muitos diferentes partidos e candidatos para representá-la, cada partido e candidato representará diferentes grupos e aspectos dos interesses dessa população, e assim, ela estará supostamente mais e melhor representada em sua complexidade, sob diversos ângulos e em todas as suas facetas. Mas quando um desses partidos e candidatos for eleito, um pequeno grupo e um pequeno conjunto de interesses tenderão a estar mais bem representados que todos os outros, e os demais, ou seja, a maioria, se sentirá mal representada, tendendo a deslegitimar o poder público.
Por outro lado, se essa mesma população tem apenas dois partidos e candidatos para representá-la, é a maioria que estará representada quando um deles for eleito. Mas para isso, até mesmo essa maioria se sentirá provavelmente mal representada, porque “seu” partido e “seu” candidato representa também uma grande quantidade de outros interesses que não são exatamente os seus e que, muito frequentemente, são até contrários aos seus — e mais uma vez, o sentimento de estarem mal representados tende a deslegitimar o poder público.
Conforme procura crescer como representante — e é natural que procure — o político ou o partido representa uma imagem cada vez mais superficial da população. Mas essa população não deixa por isso de ter a sua identidade própria, como o raciocínio que derivei do livro de Giannotti levaria a crer: apenas deixa de estar efetivamente representada.
O que escapava àquele raciocínio extraído do texto de Giannotti era que a identidade de um grupo social não depende de fato da presença de um representante, e sim da intensidade com que seus membros se sentem e se mostram mais associados uns aos outros do que associados a outros grupos ao seu redor, de forma que o grupo tem um grau de adensamento, um grau de coesão, que lhe é próprio independentemente até mesmo de ser representado ou não. O representante apenas re-apresenta para outros essa coesão natural do grupo, e se sua representação pode participar também na estruturação dessa coesão, na formação da identidade do grupo como um todo, ele só desempenha esse papel em grupos pequenos, aos quais pode representar efetivamente… e querer estender isto a grandes massas populacionais é algo que beira… a utopia.
O isolamento parlamentar
Em suma: o representante, conforme se desenvolve como representante, tende naturalmente ao seu grau máximo de ineficácia.
Quando vamos às questões práticas da administração pública, isto se torna ainda mais evidente. Não se pode administrar um país como se a população fosse apenas um conjunto de pessoas iguais, que vivem entre as mesmas fronteiras geográficas, falam a mesma língua e apresentam tais e tantos traços culturais comuns — como se as diferenças que caracterizam a sua composição não importassem. Uma imagem tão simplificada e superficial deixaria de fora tantos dados fundamentais que seria evidentemente inútil para um administrador público.
Dependendo do grau de precisão e detalhamento que o representante quer em suas informações — ou seja, do grau de profundidade que ele considera relevante para os seus fins, no conhecimento que tem dos seus representados — podemos dizer o mesmo para qualquer agrupamento social, seja qual for o tamanho. Vale, por exemplo, para uma classe socioeconômica. “A burguesia”, “o proletariado” etc. — noções assim tão gerais e que podem ser descritas em poucos traços característicos, só podem ser úteis para o representante quando ele necessita apenas de uma imagem superficial e simplificada desse grupo, por exemplo para referir-se a ele frente a outros políticos, que representam outros grupos, ou frente à mídia, para passar a ideia de que é legitimamente um representante de tal grupo, ou que se opõe legitimamente a tal outro. Mas de modo algum serve para considerar o grupo como efetivamente é, e representá-lo de fato.
Para o representante honesto e decidido a cumprir bem o seu papel, tudo se resumiria a uma questão de manter-se bem informado sobre os seus representados, se não houvesse dificuldades práticas bastante sérias nesse sentido, e chamaria, em relação a isto, o testemunho de um trabalhador francês das classes mais populares que, na primeira república mais legitimamente democrática instaurada depois da Revolução Francesa, teve a esperança de poder representar eficazmente os interesses dos seus pares tornando-se deputado: o mesmo P.-J. Proudhon, cujo nome já mencionei neste artigo:
Ingressei na Assembleia Nacional com a timidez de uma criança e o entusiasmo de um principiante. Assíduo desde as 9 horas da manhã, às reuniões dos departamentos e comissões, eu só deixava a Assembleia ao anoitecer, exaurido de cansaço e desgosto. Tão logo punha os pés naquele Sinai parlamentar, afastava-me das massas; absorvido pelas tarefas legislativas, perdia inteiramente de vista os acontecimentos do momento(…). É preciso ter vivido naquela câmara de isolamento chamada Assembleia Nacional para entender como, quase sempre, justamente os homens que mais completamente desconhecem a situação do país são aqueles que o representam…
(PROUDHON. As confissões de um revolucionário, 1849).
Para não perdermos o bom-humor, e considerando que a vida — e especialmente a vida política, quando a examinamos sob certos aspectos — não deixa de ser uma grande piada, eu sugeriria a esse respeito a leitura de um interessantíssimo piadista da área de Administração, que parece estender esse paradoxo, sob uma outra formulação, a toda e qualquer liderança: Laurence J. Peter. O Princípio de Peter reza, com muito bons argumentos, que “em uma hierarquia, cada indivíduo tende a atingir seu nível próprio de incompetência”. Naturalmente, os representantes políticos, os homens do poder e da hierarquia por excelência, mais do que qualquer outra classe profissional neste mundo, não estão imunes a isso…
João Borba Professor e Filósofo. Especializado em questões Éticas, Políticas e de Teoria do Conhecimento.
Nota: o título Isolamento Parlamentar é de George Woodcock, em uma seleção de textos sobre anarquismo.