Nossos cinco séculos de uma história política autoritária, espoliadora e podre (escravidão, depois falsa república, depois ditadura, depois democracia endividada, depois nova ditadura) não apenas nos acostumou a confundirmos na vida diária, nas ruas, “liberdade” com “direito de abusar dos outros e oprimi-los”, como também está nos levando a acolhermos uma visão distorcida e deturpada segundo a qual toda essa “onda nova” mundial de movimentos não-partidários significaria uma só e mesma coisa, como se todos esses movimentos sociais funcionassem sempre de um só e mesmo modo, e com um só e mesmo propósito.
Em uma palavra, há uma fantasia conservadora delirante de parte do público e da militância partidária no Brasil a respeito desses movimentos sociais, inclusive e principalmente por parte daquela militância partidária que ainda sustenta a teimosia de se autointitular “de esquerda”, mesmo diante da atual redefinição mundial do eixo de caracterização do que é “esquerda” e “direita” que está ocorrendo em toda parte à vista de todos.
A fantasia delirante conservadora de que falo, é a que tende a ver todos esses movimentos sociais não somente como “iguais”, mas também como dotados do mesmo propósito básico: criar o caos” e a “ingovernabilidade”. Isto é inteiramente falso. Esses movimentos sociais (black blocs, occupi, anônimos, autonomistas, situacionistas, anarquistas etc.) não são iguais, não tem os mesmos propósitos, não têm os mesmos valores e não têm as mesmas táticas e estratégias.
Por outro lado também não são sempre e necessariamente dissociados. Podem ter traços comuns pontuais ou propósitos coincidentes em algum momento, e se aliar uns com os outros em função desses traços comuns. Mas absolutamente não são “a mesma coisa”, não são “iguais”.
Entretanto, no nosso Brasil quase que atavicamente conservador e até reacionário devido à nossa história, no Brasil em que, como nos ensina Paulo Freire (num conceito dele que aprendi em música do Tom Zé) o cidadão “hospeda” em si mesmo o opressor, e imita inconscientemente seus próprios opressores, confundindo liberdade com direito de abusar do outro, num Brasil assim como o nosso, tendemos perigosamente a adotar como “verdade”, e com muita facilidade, o discurso reacionário que “equaliza” por baixo todos esses movimentos, pelo que eles parecem ter de pior. Equaliza para poder falar mal deles e combatê-los na opinião pública. Esse discurso reacionário considera todos os atuais movimentos sociais como uma pura e simples manifestação coletiva de ataque contra o direito e a paz social. Isto não é somente uma estupidez do ponto de vista da compreensão correta dos fatos, mas é também um perigo gravíssimo.
É um perigo porque tende a contaminar, aqui neste nosso país da “hospedagem do opressor”, a própria militância dos movimentos, e a promover o que se pode chamar de “profecia auto-realizadora”: isto é, de tanto tratarmos esses movimentos como se fossem todos a mesma coisa, tendemos a promover realmente, aqui no Brasil, a unificação, a massificação desses movimentos em uma só coisa, de porte muito maior, e muito mais forte, mas também com muito menor debate interno, e um perfil mais irracional, tolo e massificado.
Permitam-me aqui utilizar um par de conceitos com os quais o anarquista Proudhon examinava as mobilizações sociopolíticas nas sociedades ao longo da história: os conceitos de “força coletiva” e “razão coletiva”. A força coletiva adquirida pela união exerce sempre um poder magnético sobre manifestações sociais e políticas, e tende a sobrepujar perigosamente a razão coletiva (isto é, o respeito às divergências e o debate crítico público), tornando as mobilizações mais irracionais ao mesmo tempo que mais massivas.
Movimentos irracionais de massa tendem a fortalecer o oposto do pretendido por todas essas manifestações que temos observado hoje no Brasil e no mundo, isto é, tendem a fortalecer ao contrário do que pretendem, tendências autoritárias. Por que? Porque massas irracionais são (evidentemente) mais manipuláveis, ao mesmo tempo que mais fortes. Felizmente, no Brasil, essa massificação dos movimentos sociais de protesto ainda é apenas uma falsa imagem colada sobre eles pelo discurso conservador e reacionário, para justificar ações repressivas de maior agressividade. Mas até que ponto a própria militância dos movimentos sociais, no Brasil (essa militância de cidadãos historicamente acostumados à “hospedagem do opressor”) não pode ser ela própria contaminada por esse discurso opressor que a quer reprimir?
Se essa contaminação da militância pelo discurso reacionário massificante começar a acontecer com intensidade maior do que já está acontecendo no Brasil, que não é um país pequeno nem marginal no foco das atenções mundiais, essa unificação massificante dos movimentos aqui poderá exercer influência sobre os movimentos em escala global, e uma influência perniciosa, tendendo a tornar a mobilização mais forte (o que seria bom) só que ao mesmo tempo mais irracional e manipulável por grupos com intenções autoritárias.
Qual seria o resultado disso? Grupos de perfil autoritário dificilmente conseguem se conter diante de massas poderosas e irracionais. E seguramente tentariam manipular os movimentos em favor de propostas autoritárias. E seguramente quebrariam a cara, estimulando algo possivelmente ainda pior do que o autoritarismo, e que não agradaria nem aos autoritários, nem aos manifestantes: uma anti-hobbesiana guerra civil, e digo anti-hobesiana porque seria constitutivamente, intrinsecamente pautada no impasse, sem qualquer solução possível em decorrência do conflito, autoritária ou não — de modo que qualquer solução teria que vir por outros meios e mediante outras propostas e mobilizações, de sentido absolutamente imprevisível, e que não há como avaliar se seria um sentido bom ou ruim para qualquer dos pontos de vista envolvidos.
Só há como avaliar o seguinte: não haveria solução rápida, e nem mesmo qualquer solução no horizonte por um bom tempo, durante o qual conviveríamos apenas com o conflito incessante, com predomínio das tendências e grupos mais agressivos e violentos, conflito em níveis insuportáveis, e como já disse, sem qualquer paralelo real ou profundo com uma hobbesiana “guerra de todos contra todos” solucionável pela via autoritária. Sem qualquer paralelo real ou profundo com isso por duas razões. Primeiro porque seria uma guerra não de indivíduos apenas, mas de agenciamentos políticos heterogêneos com forças e graus de coletivização oscilantes, e não iguais. E em segundo lugar (o mais importante) porque seria uma guerra de um modo geral definível justamente como sendo dos autoritários contra os antiautoritários e vice-versa (embora as pessoas e grupos e agenciamentos das mobilizações provavelmente ficassem oscilando incessantemente também de um desses posicionamentos ao outro). Nada mais é previsível com muita segurança para além disso. E uma guerra civil nesses termos não seria apenas longa, mas desestruturante e portadora de profundos e intensos sofrimentos sociais.
Faço essa avaliação observando que não se trata efetivamente de movimentos de “massa”, isso a que estamos assistindo. Não se trata de algo simplesmente manipulável, como pessoas e grupos autoritários seguramente tenderiam a acreditar. Não se trata de movimentos “de massa” como os de outros tempos, de modo que essa “massificação”, se ocorrer, se fará por mecanismos inteiramente diferentes daqueles do passado, e com resultados inteiramente diferentes. Frequentemente inclusive com resultados opostos: na verdade, não se trata mais de “massa” mas de redes (e note-se bem, não digo nem mesmo “rede” no singular, mas “redes”). Trata-se de uma massificação difusa, “em nuvem”, para usarmos a linguagem mais correta para isso hoje (embora a metáfora da “liquidez” de Bauman também não seja nada descabida aqui), uma nuvem massificante difusa que se estende por caminhos incontroláveis percorrendo essas redes e transbordando-as de umas para as outras.
Deixo então o alerta: se os “da esquerda” — da real, da social, aquela que pode ser definida como “oposição social histórica” e de modo absolutamente nenhum como “oposição” em sentido político-partidário —… se os “antiautoritários” enfim, os simpatizantes dessas mobilizações sociais em geral (como eu próprio) querem evitar esse perigo em que podemos incorrer pela sanha manipuladora dos “autoritários” (que dificilmente ouvirão esse tipo de apelo, embora a coisa seja igualmente perigosa para eles), é aconselhável cultivar sempre com a maior clareza possível as diferenças e divergências no seio das mobilizações sociais, e promover incessantemente o debate entre essas tendências divergentes, animando a razão coletiva a se cultivar e desenvolver em conjunto com a força coletiva.
Conceitos como o de “luta de classes”, ou generalizações abstratas e superficiais como “a classe trabalhadora” ou “a classe explorada”, por exemplo, são interessantes para o incitamento e o cultivo da força coletiva, mas são ao mesmo tempo inúteis (e se mal utilizados, até perniciosos) para a razão coletiva (coisa de que aliás já temos experiência histórica de sobra desde o stalinismo). E a razão coletiva é precisamente o mais difícil de se cultivar, e o mais frágil e solúvel diante da força coletiva com a qual deveria se equilibrar para exercer sobre ela a função orientadora e organizadora… por isso, a razão coletiva é o que exige maior atenção, e redobradamente em contextos histórico-culturais como os do Brasil, em vista da questão da “hospedagem do opressor”.
A força coletiva, segundo a filosofia proudhoniana, está ligada não só à união, mas também à tendência patológica humana (incurável) para a absolutização das coisas, que apesar de nos conduzir a ilusões fanatizantes, por outro lado carrega nosso empenho de dedicação e intensidade. A própria defesa da liberdade individual frequentemente caminha por esta perigosa senda (Proudhon prefere o que chama de liberdade composta, que é grosso modo uma liberdade que se vivencia e se realiza parcialmente de maneira individual, parcialmente de maneira coletiva, em conjunto com outros). O remédio proudhoniano para o absolutismo é a contraposição dos absolutos uns aos outros em regime de realização conjunta de atividade comum, e em condições de equilíbrio de forças — o que nos remete diretamente àquele seu conceito de razão coletiva.
Proudhon tinha um nome particularmente interessante para esse difícil — mas extremamente potente e renovador, quando atingido — equilíbrio entre força coletiva e razão coletiva. Chamava isso de… Justiça!