Sumário
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Sobre as passeatas de protesto
e a escritura deste artigo
Este é um artigo que se inicia de modo, digamos assim, um tanto raivoso. Por essa razão, não o terminei, nem o divulguei muito. É que ele trata de assuntos políticos, e em política, as circunstâncias tendem a alterar o sentido do que estamos dizendo. E se o dizemos com intensidade raivosa, a distorção de sentido pode ser ainda maior.
Há quem pense que sou petista, porque desde que as passeatas que vinham ocorrendo começaram a focalizar a presidente Dilma como bode expiatório para um problema maior e que de longe a ultrapassa, eu de certo modo me calei neste Blog em relação a assuntos políticos de ordem mais imediata.
Não, não sou petista. Nem peessedebista. Sou antipartidário. E não, não sou (nem acho possível ou interessante ser) apolítico. Defendo que política se faz nas ruas e não em partidos ou instituições oficiais. E se faz sempre, sempre, na forma combativa da pressão. Democracia de pressão. É o que defendo de imediato (para longo prazo, minha posição se aproxima de algo entre a democracia direta e os caminhos intermináveis do anarquismo).
Por que parei de falar de política?
Para não dar caldo ao que considero uma redução do sentido original das passeatas a um alvo insignificante, medíocre, para não dizer inclusive ridículo. Pretender que a troca de um presidente, ou mesmo de um partido político no poder, vai transformar as coisas, é ridículo, medíocre e insignificante de meu ponto de vista, em termos de objetivos políticos. Uma besteira. Precisa ser feito? Talvez. Feito, vai “salvar” o país? Não. Vai melhorá-lo? Não. Vai conter um estrago que na superfície se tornou grande, porque evidente. Mas só vai cont?-lo na superfície. O que significa, a rigor… nada.
Então me recolhi. E não divulguei este artigo — que inclui críticas ao PT.
Na verdade estava decepcionado — não com o PT: nunca gostei de partidos, embora na adolescência talvez tenha dado a entender, meio que seguindo a onda de amigos, alguns peessedebistas, outros petistas, outros militando em partidos diferentes, que não tinha nada contra partidos. Não era verdade. Eu era um tanto hipócrita, confesso, não queria deixar os amigos incomodados. E pouco fervoroso em termos políticos. Não achava que valia a pena incomodar amigos com meus posicionamentos “esquisitos”, então os guardava para mim, e até caminhava com eles quando empunhavam suas bandeiras deste ou daquele partido.
Politicamente, me sentia mais à vontade (muito à vontade) entre os anarquistas, sempre que frequentava grupos de discussão com eles. Mas não fiz muitos amigos pessoais nesse meio. E caminhar com amigos era algo central na minha vida, na adolescência, de modo que tinha as amizades de um lado e o coração político de outro. Nem comentava com meus amigos meu envolvimento com os anarcas lá do Brás. Mas o fato é que nunca gostei da via partidária (ou da sindical) como via de atuação política, sempre as considerei vias intrínseca e estruturalmente sujas, podres, estragadas, corrompidas, e não por causa simplesmente das pessoas que estvam ali. Boas ou ruins do ponto de vista ético, estavam em instituições intrinsecamente ruins, e infelizmente, humanamente inevitáveis (tire do caminho os partidos e sindicatos, e outras insittuições igualmente podres surgirão para lhes tomarem o lugar).
Quando escrevi este artigo, originalmente, as primeiras passeatas — aquelas que eram criticadas como se não tivessem objetivo — tinham passado. Só que elas não tinham objetivo porque tinham objetivos, no plural, eram um esboço de manifestação inteligente (pela primeira vez na história deste país) da razão coletiva, esboço que não chegou a ser levado adiante até o ponto da integração dos objetivos em um complexo articulado que desse a essa razão coletiva (que só existe na pluralidade e no jogo de divergências) a unidade de uma força coletiva (que só se manifesta de fato como força coletiva ao adquirir unidade).
Este é, segundo o excelente analista político Proudhon, o paradoxo de toda mobilização social em questões políticas: razão coletiva (que só existe, repito, no jogo de divergências) e força coletiva (que só existe na unidade) são elementos aninômicos, quanto mais se avança em uma das direções, mais se torna difícil avançar na outra. A autonomia e a verdade de um movimento popular, sua organicidade e profundidade, dependem da razão coletiva. Seu poder de realização, no entanto, depende da força coletiva. O processo de conjugação desses dois elementos é demorado, e tende a se tornar mais delicado, mais difícil e mais frágil na medida em que avança. Mas somente essa conjugação pode atingir um caráter realmente transformador.
Quando a razão coletiva avança sem atingir a força coletiva de que necessita, a mobilização tende a se desmantelar e pulverizar em inúmeras pequenas manifestações independentes que se desligaram umas das outras, e que passam a conseguir pouco ou nada do que querem. Quando é a força coletiva que avança sem alcançar a razão coletiva, o que temos é uma força de massa atuando de modo superficial e irracional, alvo fácil para manipulações midiáticas e de lideranças oportunistas, manipuladoras etc., tendendo ao autoritarismo. E neste caso, ao mesmo tempo a ausência da convivência com o outro, com o divergente, tende a conduzir essa força irracional ela própria a comportamentos autoritários, dogmáticos, conservadores e até reacionários — mesmo quando tomada e manipulada por lideranças que pretendem coisa diferente disto, porque uma coisa é pretender razão coletiva, outra é pretendê-la, mas praticá-la aproveitando-se de sua morte no cadáver irracional da força coletiva.
No Brasil, de fato, as passeatas de segunda ordem, em meu entendimento, começaram com a manifestação ultraconservadora, reduzindo todo o original empenho transformação com base nessa míope crítica da falta de objetivo, e em resposta a essa crítica, objetivando as coisas num mero combate a um governantezinho (a presidente) tomado como bode expiatório (pouco importa se com ou sem razão)
Se meu artigo começa raivoso, no entanto é uma raiva dirigida basicamente a certos intelectuais petistas. E se hesito em divulgar o artigo agora, é porque estamos vivendo um momento em que se fala constantemente nos jornais da possibilidade de impeachement da presidente da república, de modo que outros partidos estão articulando os meios de capitalizarem em seu favor esse processo de crise política. Neste ambiente, criticar o PT e sua presidente é não apenas chutar em cachorro morto, mas dar mais força a esses partidos que querem tomar-lhe o lugar. E que no meu entendimento são igualmente e necessariamente podres, pelo simples fato de serem partidos, e independentemente da qualidade de seus membros enquanto pessoas.
Daí a hesitação: é um caldo que não me agrada engrossar, não sou favorável a esses outros partidos. Sou favorável à luta nas ruas em si mesma. Que se torne parte do costume natural, constante e incessante da população. Sou favorável ao poder popular nas ruas, arrancando diretamente dessas instituições, por força da pressão, aquilo que lhe é de direito. Sou favorável ao controle popular dessas instituições, constante, por meio de manifestações públicas. Basicamente e em resumo, é isto. Passeatas incomodam? Sim, para muita gente, porque não são regulares e não estamos acostumados a elas, são imprevistos que bloqueiam as ruas e nos atrapalham o caminho precisamente por isso, por não serem regulares e previstos assim como um farol de trânsito.
Mas o fato é que, divulgado ou não, o artigo já estava publicado. Ainda que com discrição. Enão, decidi assumi-lo e reeditá-lo, sem esconder seu caráter inicialmente raivoso, e sem continuá-lo como pretendia (seria bem mais longo), mas sim, esclarecendo melhor algumas coisas, acrescentando estes comentários iniciais, e outras coisas assim.
Se começo o artigo um tanto raivoso, em seguida ele acaba por se tornar, julgo eu, um pouco mais construtivo… acho. É que antes de propor qualquer coisa, começo por desabafar minha irritação com certas noções que uma certa militância intelectual esquerdista (ou que pensa estar à “esquerda” com isto) tem procurado difundir.
Circulam no Brasil de maneira muito habitual duas noções que considero extremamente perniciosas para o nosso aperfeiçoamento democrático — aliás, para qualquer aperfeiçoamento democrático de quem quer que seja. Uma delas mais antiga, a outra mais recente. Para simplificar, chamarei as duas de Noção 1 e Noção 2.
Noção perniciosa 1 – Quem é “da” elite é “superior” em geral, a todos os outros
A mais antiga — Noção 1 — é a noção de “elite” como sendo um grupo “superior” de maneira geral a uma massa de maneira geral “inferior”. E segundo essa noção, tal suposta superioridade seria uma superioridade em termos ao mesmo tempo econômicos e intelectuais (neste segundo sentido combinando inteligência e informação).
A noção de “elite” — tal como costuma ser utilizada no Brasil já há muito tempo — é portanto a de um grupo que seria dotado de superioridade intelectual e condições econômicas relativamente boas, em geral (aliás sem razão) atribuídas a essa mesma suposta “capacidade intelectual superior”. Mas também se costuma atribuir a classificação de “elite” a um grupo que seja considerado intelectualmente e também economicamente “superior”.
Em suma: no Brasil costuma-se considerar como “elite” gente rica ou pelo menos em condições econômicas relativamente boas, e que seja gente bem-pensante, isto é, inteligente e bem informada. Sendo que essa inteligência e essa boa informação costumam ser atribuídas erroneamente às mesmas tais condições econômicas ótimas ou pelo menos razoáveis — como se não houvesse gente inteligente e bem informada em péssimas condições financeiras (o que é uma falácia absurda especialmente desde o advento da popularização mundial da informática com acesso a preço baixo).
Essa “superioridade” até certo ponto financeira e definitivamente intelectual que se supõe ser característica das “elites” é, além disso, uma superioridade que se supõe geral, como se a pessoa fosse de um grupo em si mesmo e necessariamente “superior” à massa inferior dos demais, e sempre superior — independentemente dá época ou momento histórico, do contexto ou da situação.
Noção perniciosa 2 – Competência ou eficácia maior de alguém é sinal de autoritarismo
A segunda noção, historicamente mais recente — igualmente perniciosa do ponto de vista democrático, senão ainda mais que a outra — é a de que qualquer superioridade de competência ou eficácia de alguém sobre outras pessoas em qualquer área é “antidemocrática”.
Essa noção democraticamente infeliz (para não dizer catastrófica) — que deveria ser o pior pesadelo de qualquer espírito minimamente democrático, por absurdo que pareça tem defensores sinceros e de peso dentre os que se esperaria que defendessem justamente o espírito democrático.
Não vou mencionar nomes, porque não importam aqui. Mas para os intelectuais em questão (que se reconhecerão neste crítica), na medida em que defendam isso de boa-fé, como suponho que façam, peço desculpas desde já. Peço desculpas desde já a esses infelizes porque, quanto a esta segunda noção, não vou (não posso, por uma questão de decência) colocar meu posicionamento em tintas mais leves e diplomáticas do que esta discrição de não nomeá-los.
É que por mais que seja defendida (espero que) com sinceridade e boa-fé por certos intelectuais que se dizem “de esquerda”, no frigir dos ovos (isto é, na prática) se trata na verdade de algo antidemocrático, e não democrático. a meu ver pelo menos. Mas digo esse “a meu ver” com muita dificuldade, porque o que acho correto dizer é “a olhos vistos”. E não só a olhos vistos, mas com brutal evidência para quem quer que queira abri-los.
Na verdade, esta noção perniciosa é nada mais que uma cruel, manipuladora e tirânica apologia da imbecilidade generalizada. Uma apologia (perigosa) da massificação estupidificante — cujo único resultado possível seria, justamente, a instauração (e não a dissolução) de uma “elite” (no sentido já examinado acima). Uma elite em posição de poder e influência sobre uma massa imbecilizada e estupidificada. Trata-se de um meio de fazer com que as pessoas, por força da propaganda dessa ideia, não se sirvam de fato dos atuais recursos tecnológicos de informação. Porque sob o domínio dessa noção perniciosa, uma pessoa tende a desvalorizar, desprezar o esforço do estudo, do aprendizado, do conhecimento, e da busca da consistência nas informações.
Pior: no caso de grande difusão desta noção perniciosa, tenderia a formar-se inclusive uma massa muito provavelmente inflamada de ódio irracional (irrefletido) contra qualquer cabeça pensante que viesse a emergir nela tentando atiçá-la no sentido da reflexão — atiçá-la no sentido de um desenvolvimento intelectual mais generalizado e democraticamente real (e o desenvolvimento de uma democracia de superfície, sob o impulso de um populismo manipulador e oportunista, pseudodemocrático na capa, corruptor da democracia no fundo).
Por que esse ódio se tornaria uma tendência? Porque o que luta pelo desenvolvimento intelectual das pessoas — basicamente, aquele que é um educador, formal ou informalmente, por profissão ou por sua natureza — seria visto como um “elitista antidemocrático”!
Na prática — e para além de qualquer boa (mas neste caso inócua) intenção — trata-se em suma do que eu chamaria de “nivelar por baixo para ficar por cima”. Coisa de fascínoras, nada menos que isso. De modo algum coisa digna de um espírito democrático real.
Entre parênteses:
a idiotice intrínseca do exercício de poder e
as bolhas de fuga da entropia
Permitam-me aqui um parênteses para mencionar um outro tema — o do exercício de poder — complementar aos tratados aqui.
Essa dominação — como ademais qualquer outra, visto que todo exercício de poder sobre aquele ou aquilo que lhe é outro é necessariamente superficial — só ocorreria de qualquer como uma dominação em nível… superficial. Mas nem por isso em nível estaria ocorrendo em nível menos pernicioso para os dominados, sobretudo na medida em que vão sendo de fato arrastados (convencidos e pressionados e constante e discretamente desviados) a tomar seu tempo de vida com ações dedicadas a superficialidades — quer o percebam quer não.
Uma divertida abreviação para a tese da idiotice intrínseca do exercício de poder seria “idiodin-expo”. Divertida porque sonoramente carregada de alusões paralelas indiretas com as quais valeria a pena brincar.
O leitor me verá voltar a essa questão da idiotice intrínseca do poder — “idiodin-expo?”... :) — sempre que tratar do que chamo de idiotice intrínseca do exercício de poder — tese de minha lavra que conecta o sentido pejorativo de “idiotice” ao sentido etimológico da palavra, e a um exame simples de certas constatações um tanto evidentes relativas ao exercício de poder em geral. não vou deixar de fazer alguma breve referência mais ao assunto ainda neste artigo.
Um outro tema de meus estudos também diretamente conectado a este é o da entropia, e das “bolhas” de fantasia escapista nas quais tentamos nos socorrer dela — e que no entanto, para o melhor e para o pior, vão acabando por se tornar para nós a própria vida, ou tudo o que nos dá algum sentido para vivermos… (sem nos darmos conta de que são apenas bolhas e de que são criadas por nós, para nós, com um peso de realidade bem mais imaginário do que imaginamos).
Contra a noção de elite geral de perfil intelectual-econômico:
o sentido da palavra “elite”
Duas noções são, enfim, objeto central de crítica neste artigo — a de uma elite de perfil intelectual-econômico que seria elite (superior aos demais) em sentido geral; e a de que a competência, ou eficácia, estaria associada a autoritarismo, esta última um noção que resumo pelo efeito, que é o de um “nivelamento por baixo visando ficar por cima”.
Contra essas duas noções, ambas antidemocráticas embora uam delas se pretenda “democratizante” (o que é falso), proponho em defesa do espírito democrático outras duas: uma é a de elite real (isto é, relativa… como tudo o mais que é real neste mundo); e outra é a de de coeficácia, ou coeficiente de eficácia conjunta, criação minha na qual venho trabalhando há mais de 20 anos.
A noção de elite real (relativa) deriva da constatação de algumas coisas evidentes, mas que no mencionado uso habitual da noção de “elite” no Brasil, o usuário tende com enorme frequência a simplesmente esquecer e ignorar. A primeira delas é que o próprio significado da palavra “elite” em nossa língua não se prende a esse sentido geral em que alguém seria em si mesmo e independentemente das circunstâncias e do momento uma pessoa “superior” às demais, por ser uma pessoa mais intelectualizada e/ou mais endinheirada.
Isso é fácil de constatar em exemplos bem claros, como o de um filme famoso que traz essa palavra no título: Tropa de elite. “Elite”, no sentido de que o filme trata, tem sim algo de “pensante” no protagonista e em pelo menos um dos demais membros da tal tropa. Só que não são pensantes do “tipo intelectual”, digamos assim. e por esse detalhe, já começam a fugir do padrão do que se costuma chamar de “elite” naquele sentido geral que estou criticando aqui.
Os tais policiais pensantes do filme normalmente (se não fosse o nome da tropa e o nome do filme) não seriam pensados como “a elite”, em sentido geral, no conjunto da sociedade — nesse sentido usual da palavra “elite” que estou criticando aqui.
No entanto, são inegavelmente uma elite. E usam sim o intelecto, de modo que além disso, nesse sentido, são “intelectuais” sim, mesmo sem serem do tipo social ao qual se costuma atribuir essa classificação — o que aliás é deixado bem claro no filme pela história de um dos policiais, que tenta fazer um curso universitário e não consegue, mas de modo algum por qualquer deficiência no uso do intelecto, e sim porque, pensando, mais precisamente confrontando refletidamente o que aprende na faculdade com a realidade que vivencia como policial, detecta uma deficiência (de realismo) para ele insuportável naquele aprendizado universitário.
Se por um lado este personagem e também o Capitão Nascimento usam o intelecto mesmo sem serem do “tipo intelectual”, por outro lado eles já não têm nada do endinheiramento que costuma levar à classificação de certas pessoas como membros da “elite” na sociedade. Os membros da “tropa de elite” não são nem mesmo longinquamente classificáveis como “ricos”.
Que “elite” não significa necessariamente gente em boas ou razoáveis condições financeiras e nem mesmo gente que usa a cabeça está bem claro ainda no filme pelo fato de que a tropa toda é “de elite”, e não apenas esses dois personagens. São uma elite no contexto mais amplo da polícia não por usarem mais a cabeça ou por terem condição econômica melhor, e sim por terem um excelente treinamento e uma excelente dedicação ao treinamento e à profissão, o que os torna os mais competentes, os mais eficazes no serviço. Só.
O sentido da palavra “elite”, então, como nos mostra o exemplo cabal do seu uso nesse filme, não se apega ao de uma superioridade “geral” que certas pessoas teriam sobre outras, como se essa superioridade se estendesse a diversas áreas de atividade simplesmente porque são pessoas “superiores”.
Ainda contra a noção de elite geral de perfil intelectual-econômico:
competências específicas (o policial e o ator como exemplos)
Mas além do sentido da palava “elite”, existe em um filme como este — Tropa de elite — que estamos tomando como fonte de exemplos, algo ainda mais importante a observar, que nos leva para além da mera questão do da palavra.
O mais importante é o fato de que ninguém por um segundo pode pensar seriamente que o Capitão Nascimento, protagonista do filme, sendo o chefe competentíssimo de uma equipe de policiais também altamente competente, teria essa mesma competência trabalhando como ator em um filme.
Pois é, gente. O mesmo exato personagem Capitão Nascimento, se fosse empurrado para um palco de teatro para fazer ao vivo diante do público o papel, por exemplo, de uma madrasta malvada numa fábula infantil, o de um velhinho com alzheimer em uma comédia, um travesti em crise de meia idade em um drama trágico, ou o papel de uma criança cheia de birras e manhas atazanando os pais em uma sorveteria, se mostraria nisto, com toda certeza, um verdadeiro desastre de tanta incompetência.
Por outro lado, ninguém pode acreditar seriamente que se colocássemos uma arma de verdade nas mãos do ator por detrás do personagem daquele filme, e o jogássemos no meio de um tiroteio real, sem palco, sem câmera, sem luzes, sem público, mas com morte e sangue reais — e depois em outro tiroteio, e outro e mais outro, (supondo que tivesse estômago para aguentar a experiência do primeiro, e saísse dela vivo) — ninguém pode seriamente acreditar, repito, que esse pobre ator se sairia tão bem quanto qualquer daqueles policiais ao seu redor, mesmo que não fossem tão excelentemente competentes quanto os representados naquele filme!
Por melhor que seja aquele de fato excelente, eu diria que pra lá de excelente ator — ele não é um policial. É um ator. Não querendo ofender, acho possível até que se borrasse nas calças no primeiro tiroteio (eu, que sou “esquentado” e metido a valente, possivelmente me borraria).
Contudo esse ator sem dúvida seria capaz de interpretar uma excelente madrasta malvada, um excelente velhinho com alzheimer, um excelente travesti, uma excelente criança birrenta… tanto quanto interpretou um excelente policial — e também interpretaria excelentemente, acredito, inúmeros outros papéis — coisa de que já deu provas mais do que suficientes. Um ator é um ator, um policial é um policial. Um bom ator não é por essa razão um bom policial. E um bom policial não é por essa razão um bom ator.
Há excelentes policiais e excelentes atores — porque competentes, eficazes no que fazem — mas não são a mesma coisa, e sua competência não é a mesma. E podemos na verdade, sem absolutamente nenhum risco de sermos “antidemocráticos”, falar em uma elite dos melhores atores e uma elite dos melhores policiais, inclusive sem que esses “melhores” em suas respectivas áreas de atuação (o que não quer dizer que o sejam também em outras), estejam necessariamente agrupados, trabalhando juntos, ou fazendo parte de algum tipo de “casta” mais elevada ou coisa assim.
Há, simplesmente, gente que consegue levar mais longe o desenvolvimento de suas atividade com alta qualidade — o que não implica nenhum autoritarismo. Implica apenas uma certa estupidez em não colocarmos em uma certa função uma pessoa mais competente para ela, do que uma outra menos compentente, se queremos resultados de maior qualidade no exercício dessa função. Só isso.
Tratar de obter esse bom resultado, de efetivar as melhores competências em cada área, não significa criar desequilíbrios no exercício do poder. A não ser que somente algumas competências sejam valorizadas e prestigiadas em detrimento das demais. E o problema, neste caso, não está na valorização das ações competentes, mas exatamente no contrário: na desvalorização de todas as demais competências existentes, como se apenas algumas fossem “especiais” e “superiores”.
O problema não está na avaliação da competência das pessoas: está na demarcação, no recorte com o qual definimos cada uma das competências profissionais separando-as umas das outras, e também na avaliação das competências em si mesmas, como se algumas fossem muito superiores às outras. O problema está em, por exemplo, não ser apreciado o trabalho competente de um excelente coletor de lixo, que exerce uma atividade de extrema importância para a sociedade. O trabalho de lixeiro, considerada a sua importância social, parece resultar de uma boa demarcação.
Não há nada de superficial, inferior ou de necessariamente desinteressante na atividade de lixeiro. Um lixeiro poderia ser um personagem interessantíssimo de um seriado de TV em que todos os episódios dissessem respeito à sua profissão, por exemplo. Mas ninguém parece querer voltar sua atenção para uma profissão que lida com o lixo. A profissão é socialmente desvalorizada apesar de sua tremenda importância, de modo que se tende a pensar no trabalho do lixeiro como se não exigisse ou não contivesse nenhuma competência, como se não houvesse entre esses profissionais os mais competentes e os menos, o que é falso (como aliás para todas as atividades profissionais humanas).
Talvez uma boa solução no sentido de vencer a injusta desvalorização social de algumas profissões, como esta, fosse o redesenho (redesign), ou redemarcação da atividade, complexificando-a com novas atividades ligadas a ela… a reciclagem, por exemplo, poderia desempenhar um papel interessante nesse sentido.
O competente em uma profissão deveria servir para os demais como um modelo, como uma referência educacional. Os antigos Sofistas na democracia de Atenas defendiam uma proposta ética neste sentido — coisa infelizmente bem pouco estudada, pois as pessoas estão acostumadas demais a dizer “amém” sem questionamento a tudo o que é dito por Platão, que não gostava dos sofistas (nem da democracia).
Mas evidentemente, o competente seria um modelo educacional apenas dentro de sua profissão. Não faz qualquer sentido pensar que isto formaria uma elite geral dos “competentes” em todas as áreas, porque o competente em uma área é evidentemente incompetente em outras. É possível (e valoroso) ser competente em diversas áreas, e não numa só. Mas ser competente em todas, é rigorosamente impossível.
O único elemento que poderia levar os competentes em cada área a se tornarem um “grupo”, uma “elite” geral, é construção de condições de acumulação de capital com base nisto sem que haja meios suficientes de redistribuição de renda como contrapeso. Formaria-se então, possivelmente, uma elite mais econômica que tenderia a se autojustificar com base no discurso da competência. Isso seria ruim. Mas não é o que está ocorrendo (nem de longe) no Brasil. (Aliás, as elites econômicas mais ricas do Brasil estão muito longe de serem formadas pelos mais competentes, especialmente no que diz respeito a atividades intelectuais. Se mencionarmos as que se formaram com base em atividades políticas, a competência nessas mesmas atividades políticas, especialmente quanto ao aspecto mais intelectuais dessas atividades, é um elemento ainda mais distante no horizonte (…o que digo? É um elemento quase sempre fora do horizonte dessa gente!).
Mas ainda que fosse real no Brasil o perigo da formação de uma elite econômica com base na competência (já disse que a que temos aqui é pior, baseada não raramente na incompetência sustentada com base na desvalorização do competente), ainda que precisássemos aqui combater um elitismo dos competentes, pretender resolver esse tipo de problema eliminando as condições para que as pessoas exerçam (e queiram exercer) suas competências da melhor maneira que puderem, é algo ainda pior do que uma imbecilidade irrisória. E muito pior: é um tiro no próprio pé, uma imbecilidade suicida, autodestrutiva. A menos que estejamos falando, é claro, de grupos políticos que pretendem nivelar por baixo para ficar por cima, como já mencionei. Estes se beneficiariam com a pratica de rebaixar de algum modo o valor da competência (assim como o da boa formação em geral, que é algo maior e mais pofundo do que questões de “competência”)… mas seria um benefício apenas para esses niveladores, e de resultado nada democrático.
Cada atividade humana pode ser exercida melhor, e não é ruim que exista quem possa exercer bem uma atividade. Pelo contrário. Pretende-se que não se forme uma “elite” dos competentes independente de suas específicas competências, um grupo colocado em posição “superior” em relação aos demais? Então o bom caminho está em elevar o nível de competência geral, macissamente, combatendo preconceitos e firmando mecanismos sólidos de redistribuição de renda. E não em fazer o contrário, não em rebaixar os competentes, ou pior ainda, rebaixar a própria noção de “competência”. Promover condições de que os serviços se tornem generalizadamente incompetentes sob pretexto de que a competência é “antidemocrática”, ou “não existe”, ou é “pura ideologia”, e de que não existe trabalho mais bem feito e trabalho mal feito, é apenas e simplesmente o caminho mais seguro para o rebaixamento geral da qualidade de vida de toda uma população.
Dito isto, voltemos à nossa comparação da atividade do policial com a atividade do ator, com base no filme Tropa de elite.
O que há de específico e de especificamente interessante no trabalho do ator, também não implica qualquer “superioridade” desta sobre outras atividades diferentes (como a de policial por exemplo, ou uma outra qualquer). E isto ainda que compreendamos que o trabalho do ator não tem o mesmo sentido de especialidade daquele de outras especialidades profissionais (como a de policial).
De fato não tem, porque o ator é um profissional que se utiliza de sua competência técnica específica precisamente para explorar e expor publicamente possibilidades e potencialidades comportamentais humanas. O que significa ir para além das especialidades profissionais ou especificidades de qualquer outro tipo em que um ser humano pode demarcar os limites de seu campo de vivências e de desenvolvimento prático e pessoal.
Entendamos bem de qualquer modo (e por mais que eu adore esta atividade, preciso reconhecê-lo): um ator não é uma espécie de super-humano capaz de ser qualquer coisa. Um ator é um ator… e enquanto ator, é no sentido específico dessa atividade que ele irá desenvolver sua competência prática — dificilmente superável pela competência de qualquer policial como ator, é verdade. Nenhum policial não-ator seria tão bom em uma atuação quanto um ator, e isto mesmo se o personagem fosse um policial. Mas por que? Porque um policial é um policial… e enquanto policial, é no sentido específico dessa atividade que ele irá desenvolver sua competência prática.
São duas linhas de desenvolvimento de competência bastaaaaaaaaante diferentes. O que é preciso assimilar e fazer para se desenvolver em uma dessas direções, é extremamente diferente do que é preciso assimilar e fazer para se desenvolver na outra. Ainda que mesmo com toda essa incompatibilidade possamos encontrar aqui e ali algum ponto coincidente.
Até aqui não há propriamente teoria minha em nada do que vim dizendo. São puras e simples constatações perfiladas, e uma ou outra ideia solta, lançada ao vento (como no caso do lixeiro e da reciclagem) sem qualquer exame cuidadoso. Avancemos um pouco mais.
O ator e a multiplicidade dos potenciais humanos
É possível para um ser humano desenvolver-se em diferentes direções ao mesmo tempo — ou como diria Aristóteles, desenvolver em atos diferentes potenciais humanos paralelamente, saltando de um para o outro, ou até mesmo simultaneamente?
Sim, claro! E atores, aliás, tendem a desenvolver uma consciência especialmente aguda do potencial de qualquer pessoa para viver como policial ou como qualquer outra coisa humanamente possível. E até do potencial humano para a empatia com outros seres reais ou imaginários, como quando um ator desempenha o papel de um camelo ou o de um Saci Pererê. Mas também a desenvolver uma consciência igualmente aguda das limitações que um caminho de vida impõe a uma pessoa, impedindo-a de seguir outros caminhos.
Ninguém melhor que um ator está em condições de perceber que ele, enquanto ser humano, poderia ser ou poderia ter sido como tal ou tal personagem que um dia encenou — e de perceber que, de certo modo, aquilo que uma pessoa desenvolve em si mesma enquanto ser humano ao longo da vida, incluindo suas atividades profissionais mas indo para muito além delas, pode ser compreendido como um grande e complexo personagem vivido por toda a vida, e enraizado na pessoa tão fundo, que ela já não pode mais se desvencilhar sem deixar de ser a pessoa que é.
Por outro lado, ninguém melhor que um ator está também em condições de perceber até que ponto ele não é, e já não poderia mais ser — porque no decorrer de sua vida não se tornou — aquilo que está naquele personagem que ele um dia encenou.
Entretanto… cada atividade em que pretendemos nos desenvolver tem, na verdade, suas próprias exigências, seu próprio contexto e seu próprio perfil de aprendizado. Por perfil de aprendizado quero dizer algo óbvio: que cada atividade exige um tempo e um modo específicos de dedicação àquele que quer desenvolvê-la (e se desenvolver nela ou com ela — vou procurar tratar aqui esses dois desenvolvimentos conjuntos, para todos os efeitos, como um só; o da pessoa em uma atividade, e o da atividade que está sendo realizada por ela de maneira cada vez mais deselvolta, mais desenvolvida… guardo a diferenciação, que não deixa de ser importantíssima, para outra ocasião).
Os caminhos de desenvolvimento exigidos ou os caminhos alternativos possíveis para o desenvolvimento de uma pessoa em uma atividade (ou da atividade por uma pessoa) não são sempre perfeitamente compatíveis com os caminhos que essa pessoa precisa ou pode percorrer para o desenvolvimento de/em outra atividade.
Por isso é que costumamos nos desenvolver em certas atividades mais do que em outras — e é bom que o façamos, porque não é realista acreditar que seja possível nos dedicarmos a aprender a desenvolver mais e mais tudo quanto é atividade humanamente possível. Nem mesmo escolhendo muitas mas não todas é provável que consigamos. Se o fizermos, a qualidade das atividades desempenhadas por nós tenderá provavelmente a cair.
Por outro lado, focalizar como centrais umas tantas (de preferência não muitas) atividades compatíveis umas com as outras, e mantendo-se informado não só quanto a essas atividades diretamente, mas quanto a toda a rede de relacionamentos diretos ou indiretos que existe entre esse conjunto de atividades e inumeras outras coisas no mundo ao nosso redor, tende a ser muito mais benéfico para o desenvolvimento e a maior qualidade das atividades realizadas do que a pura e simples especialização cega, meramente técnica e dedicada estritamente ao que diz respeito à realização de uma tarefa específica — o que é coisa de tarefeiro, que faz o que faz sem reflexão, planejamento, criatividade ou visão global envolvendo implicações mais amplas daquilo que está fazendo.
Há algo especialmente interessante na consideração do caso do ator, quando estamos falando de política, que é na verdade o campo em que está inserido o assunto tratado neste artigo.
É que um dos maiores ícones intelectuais do pensamento político mundial, senão o maior — Maquiavel — se utiliza justamente da imagem do ator como metáfora para o exame mais cuidadoso do agente político eficaz (ou competente) em geral, e do lider político eficaz (ou competente) em particular. E é aí, para sermos exatos, que começa a encrenca.
Maquiavel — ou onde mora a encrenca
quando tratamos de competência política
em uma democracia
A encrenca reside na teoria de Maquiavel — ou se inicia ali — porque Maquiavel fala sobre competência política, e porque, embora tenha sido em sua época um republicano radical, havia avaliado que não existiam condições históricas para o republicanismo continuar se desenvolvendo, e a região da Itália (onde existia sua cidade, a pequena mas rica e exuberante república de Florença) teria que passar por um duro e talvez prolongado período de monarquia absoluta para evitar o mal ainda maior da colonização por uma monarquia absoluta estrangeira.
As cidades da região correspondente à Itália, na época, eram cidades-Estado, isto é, cidades independentes, e não existia ainda um Estado mais amplo chamado “Itália”. Na avaliação de Maquiavel, os novos países que estavam se formando na Europa (por exemplo a França), com monarquias absolutas poderosas e belicosas, logo veriam vantagem em invadirem e colonizarem essas ricas cidadezinhas italianas.
Essas cidadezinhas não mostravam qualquer condição de se unirem rapidamente contra o estrangeiro no caso de uma emergência, de modo que contra uma possível invasão desse tipo, Maquiavel só via saída na tomada rápida de todas essas cidades por um monarca absoluto suficientemente competente para isto, suficientemente competente para fundar o Estado da Itália e mantê-lo unido, para além de todas as tensões e divergências entre essas cidadezinhas, contra o ataque de exércitos estrangeiros.
Isso exigiria do monarca uma tremenda competência estratégica no uso das armas, pressões e negociações — competência que Maquiavel comparou à de um ator, porque o bom uso das armas, pressões e negociações dependia, basicamente, de saber lidar com três diferentes públicos atentos às ações desse líder, provocando neles os efeitos emocionais e reações práticas necessários: os públicos formados pelo conjunto dos inimigos, pelos aliados e pelo povo.
A competência política descrita por Maquiavel é principalmente a do líder, e em seu livro mais famoso, O príncipe, é especificamente a de um lider monárquico e absolutista que tivesse condições, disposição e interesse para realizar a fundação da itália como um país unindo cidades antes independentes.
Não obstante são competências que podem, com pouco esforço e pouquíssima correção, ser adaptadas para a atuação de todo e qualquer líder político, inclusive em uma democracia de tipo representativo como as de hoje. No limite, podem ser reinterpretadas com facilidade até mesmo para servirem de orientação ao cidadão comum nas suas micro-relações de poder no cotidiano em todas as áreas. Tamanhas atualidade e adaptabilidade engrandeceram ainda mais a condição maquiaveliana de referência e grande ícone do pensamento político mundial.
Maquiavel, portanto, foi o responsável por isolar e demarcar a competência especificamente política, enquanto competência para lidar vantajosamente com um quadro de forças em tensão política constante. E tornou-se referência quando se trata de pensar o que significa um líder político ser mais competente que outro, de um modo geral… mesmo em democracias.
Pois bem. Vivemos no Brasil de hoje sob um regime de democracia representativa, governado por representantes políticos eleitos. Uma democracia é uma forma de república, e a democracia representativa, nos tempos atuais, é mundialmente a mais encontrada em toda parte, e a mais consagrada das formas de república conhecidas.
Uma república é uma organização política dotada de mecanismos e recursos que visam garantir que as coisas sejam feitas para o bem público, e não em benefício apenas de grupos ou famílias específicas. E que procura aperfeiçoar tais mecanismos e recursos o máximo possível e mantê-los em tão bom funcionamento quanto possível. No caso da democracia representativa, o principal mecanismo para isto é o sistema eleitoral para a escolha dos representantes da população no governo ou junto a ele.
Nossa democracia, no Brasil, está organizada de modo que a autoridade oficial mais elevada, o representante político dotado de maior poder, é a figura do presidente da república. Ele (ou ela) deve representar os interesses e necessidades da nação como um todo, lidar com o jogo de tensões das forças políticas favoráveis e desfavoráveis no país e fora dele visando o melhor para a nação, segundo sua interpretação (supõe-se que conectada à interpretação de seu partido), e deve além disso chefiar o gerenciamento do Estado do ponto de vista técnico-administrativo em todas as áreas, sabendo distribuir da melhor maneira os cargos disponíveis para esse fim e delegar poderes da melhor maneira e na medida mais adequada.
O exercício da presidência da república, portanto, exige: competências simbólicas (para fazer com que a nação se sinta representada); competências político-estratégicas (como aquelas descritas por Maquiavel), para lidar com as forças políticas em jogo; e competências gerenciais, de tipo técnico-administrativo (para chefiar, orientar, supervisionar etc. aqueles que tiver escolhido para os cargos administrativos que estiverem em última instância sob sua responsabilidade).
De todas essas competências exigidas de um líder político democrático em sistema representativo, dois tipos — e não apenas um — são claramente políticos: as competências simbólicas (para fazer-se valer como representante de fato junto à população); e as competências político-estratégicas. Mas Maquiavel, interessado mais vivamente no problema político específico que as cidades italianas viviam em seu momento histórico, se aprofundou no exame de apenas um desses dois tipos — o político-estratégico — deixando sobre o outro apenas vagas e indiretas indicações, ainda que úteis.
O problema em si da qualidade de uma representação política junto à população representada era ainda bastante prematuro, não estava no seu momento histórico, não havia se colocado historicamente como um problema de força e relevância para os pensadores políticos da época em geral. Um mundo dominado sobretudo por democracias representativas, como o de hoje, era algo ainda bem longe das expectativas habituais da época, apesar de as questões de representação política não serem de todo estranhas à população nas pequenas repúblicas italianas de então, como Florença.
O fortalecimento da questão da representação, tão pouco tratada por Maquiavel, e que por isso não conta suficientemente com suas excelentes orientações, levou a um dilema interessante no pensamento político democrático. Um dilema que acaba por remeter às antigas polêmicas envolvendo Sócrates, Platão e os Sofistas na primeira democracia da história, cinco séculos antes de Cristo — que era uma democracia direta, fundada em plebiscitos para a tomada direta das decisões, e não para a eleição de “representantes” políticos.
Naquela democracia direta da antiga Atenas de cinco séculos antes de Cristo, democracia em que os representantes políticos praticamente não existiam e, quando existiam, tinham enquanto representantes eleitos uma posição de bem baixa relevância, com decisões de bem menor porte e meramente complementares… naquela primeira democracia, enfim, um dos pontos de divergência e debate entre Sócrates, Platão e Sofistas era precisamente a questão da competência técnica na tomada das decisões políticas — visto que as decisões políticas fundamentais (e aliás também as administrativas) eram tomadas pela multidão, e não por pessoas especificamente preparadas para isto.
PT, saudações… essas coisas que dizemos no adeus.
Isto tudo que acabo de dizer para atores, evidentemente, vale do mesmo exato modo para atrizes. Engraçado ter que esclarecer isso. Mas nos dias de hoje… Enfim, nunca fui de tomar lideranças políticas — ou de qualquer outro tipo — como exemplos (ainda que muita gente infelizmente seja de fazer isso), de modo que não me cobrem cometer atrocidades do tipo “homa sapiens” ou “mulhero sapiens” ou coisas do gênero. Na verdade, parte das razões de eu estar escrevendo este artigo reside precisamente no absurdo descaso — histórico — dos líderes políticos oficiais do nosso país em relação à educação.
Por muito tempo tivemos presidentes enaltecendo-a (a “educação”) em si mesmos, como se fossem “elite” no preciso mau sentido do termo que estou combatendo aqui, mas deixando o povo quanto a isto ao deus dará — e inclusive transmitindo, ora mais conscientemente ora menos, uma imagem de orgulho precisamente por não representar o povo em sua “grosseria” intelectual…!
Depois, bizarro, chocante, ridículo mesmo, vieram as lideranças que, supostamente, tinham como tarefa histórica virar isso do avesso, sanar nossos quatro séculos de escravidão e desinformação e des-formação exploratória numa guinada democrática radical. E o que fizeram? Aprofundaram ainda mais o absurdo das lideranças anteriores, até o ponto de enaltecerem em si mesmos a má formação educacional como se fosse algo de valor, ao invés de ressaltarem sua formação às vezes sim, excelente, no nível de uma educação informal através de experiências de vida.
A guinada a ser realizada, tarefa histórica assumida e depois vergonhosamente traída, era justamente uma tarefa de aprofundamento e radicalização na organização de espírito democrático, e foi evidentemente traída pelos aspectos viciantes do poder, que constituem o que há de mais antidemocrático no caminho… e a traição continua sendo empurrada adiante inclusive por espíritos guiados sinceramente por valores nessa direção, mas incompetentemente.
E vejam bem, não estou me restringindo à democracia representativa, quando menciono isto como tarefa histórica assumida e traída. Não estou sequer excluindo aqui, na direção oposta, a via de um comunismo antiautoritário e ultrademocrático — embora pessoalmente a minha seja preferencialmente nem uma nem a outra. Minha via, caso alguém esteja curioso, é a de algo na direção do autonomismo de Castoriadis, devidamente radicalizado por umas boas doses de anarquismo e situacionismo — e como caminho ainda em registro moderado, mas realístico, uma democracia de pressão popular constante, e crescentemente participativa.
Essa tarefa de aprofundamento democrático, de consolidação de alguma forma de organização pautada em um espírito mais profundamente democrático no país, essa tarefa vergonhosamente traída — me parece evidente, mas me surpreendo percebendo que não parece tão evidente para certas gentes (especialmente as que estão oficialmente no poder) — não poderia deixar de ser senão uma guinada educacional radical, tanto no sentido formal tanto quanto no informal do aprendizado popular. E no entanto, aí está com toda clareza a idiotice intrínseca do exercício de poder arrastando viciosamente esses “atarefados”, que sequer enxergam seu vício, para uma total, completa e absoluta desvirtuação da tarefa originalmente assumida por eles próprios.
Sua antiga tarefa, corroída mais e mais pelos vícios do exercício do poder, foi se aprofundando e radicalizando cada vez mais e a passos largos no sentido oposto de tudo o que possa se entender como de espírito democrático, reduzindo-se cada vez mais à simples cruenta tarefa de assumir e manter e aprofundar o poder, a qualquer custo inclusive, com os ritualísticos e vazios planos para…, planos para…, planos para…, planos que param. Acompanhados do complemento igualmente ritual e vazio (recheado apenas de um certo desespero) da culpabilização alheia… — ah, o malvado o capital, o golpismo da oposição etc. etc. etc., como se tais coisas (foda-se se reais em maior medida, em menor medida) desculpassem a traição da tarefa.
Repetem-se e rePeTem-se e rePTem-se esses já esgotados rituais, cristalizando e consistencializando e buscando imortalizar o que é na verdade um suicídio sistêmico da tarefa de aprofundamento democrático… e só o que se faz, e como diz o agourento corvo de Poe, nada mais nada mais nada mais… — a menos que queiramos acrescentar esse algo mais que é o amém pseudolaico a uma tarefa histórica mártir, traída e morta pela nova tarefa, imposta, como gostam de dizer, pela própria “realidade política”.
Pois é, não, tais desculpas não desculpam. Falta existencialismo a essa gente. Parar de culpar a puta que os pariu (que somos nós, população brasileira, e nossa História de opressão e internalização e repetição por nós mesmos da opressão), e assumir responsabilidade pelas próprias ações. Assim como falta à gente também o mesmo: tomar ação ao invés de ficar só cuspindo de bobeira e xingando. Pra resolver o quê na base da cusparada e do xingamento? Me digam? O que? — Desenvolver críticas publicamente, e refletidas, buscando a correção de alguma coisa, já é pelo menos um passo.
Quanto ao PT, estou farto, sinceramente, desses rituais em que mergulharam. Porque, vejam bem, não é a não realização da tarefa o que está em questão: é o caminho tomado o que está em questão. Sempre e necessariamente. Como poderia ser diferente? Alguém seriamente espera “chegar em algum lugar” e então… parar de caminhar? Não é o cumprimento da tarefa em si o que importa, mas o próprio caminho que a tarefa impõe. Porque ela na verdade se realiza no seu próprio caminhar, e não no destino projetado. Estou me dirigindo aqui, é claro, àqueles que são ainda (teimosia que acho difícil de entender, mas me esforço) de boa fé defensores do PT.
E o problema aqui, bastante claro, me parece, é o seguinte: não se vai ao próprio casamento pelo atalho do muro da piscina da vizinha gostosa que nos disputava com nossa noiva, e que pratica nudismo insinuando-se para a gente a todo momento…. sabem como é? E se suspeitamos (por exagerado que pareça para outros) que a própria vizinha gostosa organizou uma estratégia para provocar um trânsito infernal em todos os demais caminhos para igreja a fim de impedir o casamento (o que, vejam bem, pode ser mesmo verdade), o que vamos então dizer à nossa noiva?… — Não é minha culpa, meu amor, a vizinha fez acontecer esse engarrafamento no trânsito e o único caminho possível era o atalho pela piscina dela, por isso é que eu… demorei tanto!
É o que PT está dizendo para justificar por que “está demorando tanto” em sua tarefa tão religiosamente assumida (fica a lição: suspeitar sempre dos carolas). Parece que esse pessoal não entendeu até hoje que o objetivo maior é o próprio caminho, e não algo que “está lá na frente” (sabe-se lá a que distância). Falta-lhes ler um pouco mais de Georges Sorel, pelo menos, se não engolem os autores anarquistas, que trabalham isso mais a fundo e mais maduramente, em toda a sua paradoxal jovialidade… os anarquistas trabalham isto sem a mesma impaciência o objetivo “final” — porque compreendem melhor o caráter de kantiana ideia reguladora dessa tal “finalidade”. Mas va lá, o genial mas impaciente Sorel também serviria, até certo ponto.
O problema é que levar às últimas consequências Sorel significaria abandonar a via partidária, e mergulhar na sindical. E levar às últimas consequências os anarquistas significaria no mais moderado dos casos ficar na margem crítica do movimento sindical, dançando com cada pé ora para dentro ora para fora… e no mais radical, abandonar sindicatos (e quaisquer instituições duradouras) em favor de organizações mais fluidas, criativas e provisórias.