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Presença
Presença.Um ambiente cheio de gente. Há com quem a gente até troque algumas palavras, ou um toque de mãos, um…
Publicado por Outro Borba em Quinta, 25 de fevereiro de 2016
Transcendência
Transcendência.A questão é o silêncio, já que toda transcendência (e a única transcendência possível ) está em…
Publicado por Outro Borba em Sexta, 26 de fevereiro de 2016
Transpresença
a. mente e comportamento
Estamos acostumados a teorias como a de Freud e seus seguidores (e outras variantes da psicanálise), à ideia de que há elementos em nosso inconsciente que não apenas são irracionais, mas sobretudo inconscientes e involuntários a tal ponto que se torna problemático dizer dizer clara e firmemente a palavra “Eu”. Quem sou eu?
Estamos acostumados do mesmo modo a teorias psicológicas como as dos behavioristas — para os quais são problemáticas as próprias noções de “consciência” e “vontade”, restando bem pouco além dos contornos do corpo para chamarmos de “Eu” de modo reconhecível segundo os padrões mais tradicionais nos quais utilizamos essa palavra.
Mesmo teorias psicológicas com um foco mais acentuado na questão do “Eu” como o existencialismo e a Gestalt, não deixam de tornar problemática especificamente a definição dos contornos, a demarcação das fronteiras, disto que nos acostumamos a chamar de “Eu”, e também disto que pretendem (quando pretendem de fato e firmemente) colocar no lugar do que até aqui e tradicionalmente temos chamados de “Eu”.
Estamos acostumados a tudo isso… em teorias. Mas na vida cotidiana continuamos frequentemente nos reportando de novo e de novo e de novo a esse “Eu” como se suas fronteiras fossem muito claramente demarcadas e nada problemáticas.
As teorias que problematizam isso vêm perseguindo a mente humana desde muito antes da própria construção dessa ciência da psique ou do comportamento a que chamamos de psicologia (em sentido geral, incluindo as correntes psicanalíticas).
Questionamentos e problematizações envolvendo a questão dos contornos, das fronteiras, dos limites ou delimitações do estamos acostumados a chamar de “Eu” podem ser encontradas desde sempre na história da filosofia. Entre os inúmeros filósofos que avançaram nessa direção, podemos mencionar Antífon, talvez Demócrito, Montaigne, Pascal, Rousseau, Schelling, Schoppenhauer, Nietzsche, Stirner, Wittgenstein… inúmeros.
Penso nisso e me lembro das coisas que disse nas duas postagens acima, feitas originalmente no facebook e embedadas aqui. Especialmente o que esbocei formular com a noção de “transcendência”.
b. corpo e desenvolvimentos orgânicos
Não temos controle voluntário sobre tudo o que faz parte de nós, isso é claro, nem tampouco consciência clara, ou mesmo qualquer consciência, de tudo o que faz parte de nós mesmos: na maior parte do tempo não temos consciência ou controle dos nossos órgãos internos, de sua presença em nós, e do modo como estão funcionando, nem tampouco temos controle voluntário do crescimento de nossas unhas cabelos e dentes.
E interessante: os cabelos e unhas não param de crescer de imediato quando final e definitivamente morremos. Continuam crescendo por um tempo no morto, e depois continuam ali por um tempo ainda muito mais longo quando a maior parte do corpo morto já se decompôs.
Nosso organismo não funciona em conjunto harmonicamente como um todo integrado, ao contrário do que muita gente pensa. Essa harmonia não deixa de ser observável, mas somente um olhar superficial e abstrato demais deixa de captar as desarmonias que a acompanham em paralelo.
O organismo ao longo da vida passa por inúmeros e frequentes atritos entre suas diferentes partes, uma avança seu desenvolvimento em certa direção e com isso prejudica o avanço da outra. O todo se mantém unido não apenas por harmonia de ações, mas também por, digamos assim, algo como uma relação imprevista de freios e contrapesos, mais ou menos como no sistema político de divisão de poderes… Só que não é planejado.
É um efeito colateral dos desenvolvimentos de certas partes diferentes do organismo que estão coligadas em interdependência (o elemento “harmônico” da coisa) mas que, se uma delas se desenvolvesse demais na direção em que seu desenvolvimento aponta, a interdependência levaria à ruína da outra parte, e o organismo como um todo, dependendo da relevância do caso, entraria em colapso.
Claro, podemos jogar com o sentido de palavras como “desenvolvimento” e alegar que um câncer, por exemplo, não é um processo de “desenvolvimento”… mas isto seria fugir da questão que está em foco aqui. A questão que está em foco é a dos contornos ou limites do que chamamos de “Eu”.
É apenas para avançar nessa questão que estou afirmando essas coisas a respeito do organismo humano. Que coisa? Que os casos em que uma parte do organismo arruinaria sua união harmônica com as demais se seguisse seu desenvolvimento independentemente sem ser contida por alguma outra parte, ao contrário do que muitas vezes se pensa, são casos muito mais habituais do que costumamos imaginar, e inclusive nem sempre caracterizáveis como casos de “doença”.
O exemplo mais gritante — vale a pena notar porque é a parte do organismo humano que mais facilmente associamos ao que chamamos de “Eu” — é o próprio cérebro, que tende a buscar seu equilíbrio eletroquímico interno não importa com que consequências para o resto do corpo.
Penso em tudo isso e, mais uma vez, me lembro das coisas que disse naquelas duas postagens acima, sobre as noções de “presença” e de “transcendência”.
Não temos consciência ou controle de tudo o que é parte de nós.
E me pergunto: até que ponto o que nos exprime mas está fora do nosso corpo não é mesmo assim, efetivamente (e não apenas metaforicamente) parte do que poderíamos ou deveríamos talvez chamar de “Eu”?
c. idealismo (ou “puro” materialismo… dá no mesmo… cara de um, traseiro do outro)
No decorrer da história da humanidade acostumamos nossos cérebros (criamos e seguimos tradições) de modo a fazê-los entenderem como coisas separadas e por vezes até desconexas no mundo e em nós mesmos de um lado um plano espiritual, feito de elementos supostamente imateriais, abstratos, ou de “ideias”, e de outro lado um plano material, sensorial e concreto.
Criamos um debate envolvendo posicionamentos opostos quanto a isto: idealismo valorizando o plano imaterial em detrimento do material, materialismo valorizando o plano material em detrimento do imaterial. Mas o fato é que “material” e “imaterial” são em primeiro lugar palavras. Nos corolários desse debate, desenvolveu-se a questão de saber se o “Eu” (esta outra palavra) é (refere-se a) um organismo material individual ou algo imaterial como uma “alma”.
Entretanto é fato também que todas essas teorias e discussões são feitas de palavras. E o modo como acostumamos nossos cérebros a separar e definir o que é “material” de um lado e o que é “imaterial” de outro, foi desfavorável à consideração prática das interações entre as palavras e a nossa vida cotidiana, quando essas palavras estão organizadas formando teorias.
Tudo isso é “teoria”, diria o cérebro médio que se pode considerar, digamos assim, o padrão mais geral no caso humano, depois de toda a tradição de oposição entre material e imaterial a que o acostumamos. A vida prática é… outra coisa — diria esse cérebro, através do “órgão da fala” do organismo ao qual está ligado (estou fazendo menção aqui a uma expressão de alguém de inteligência muito aguda que conheço, meu tio por parte de pai).
Referências para uma vida após a morte
a. Descartes, senso comum? Existencialismo.
Resumindo a história sem traçá-la em maiores detalhes em seus zigue-zagues e suas idas e vindas, podemos dizer que na prática passamos a agir sempre, no mundo contemporâneo, como se algo bem sensorialmente percebível nos servisse de modelo para demarcarmos o nosso “Eu”: os contornos físicos externos do corpo enquanto organismo individual, no espaço ocupado por ele. Uma unidade com um contorno claramente demarcado, e que parece ocupar homogeneamente e continuamente uma extensão no espaço — como sugere Descartes, ao dizer que as substâncias materiais são “extensões” distintas (dotadas de contornos, limites).
O próprio Descartes por outro lado sugere também, na direção oposta, que toda extensão é (ou só pode ser captada como) uma série de pontos distintos, e sempre com infinitos outros pontos entre quaisquer dois deles — ou seja, que essa extensão material é infinitamente vazada por “buracos” inumeráveis, e não exatamente uma “unidade contínua” como parece. Mas que importa? O senso comum continua representado apenas por aquela ideia de que o “Eu” é uma “extensão” contínua ocupando um espaço, que termina nos limites dessa extensão.
Ou então pela noção “oposta” ao campo sensorial, a noção de algo como uma “alma” imaterial cujos limites não são sempre imaginados como algo preciso, mas cujo “centro” parece ser bem claro para a maioria dos que pensam no “Eu” deste modo: centro parece estar na vontade, ou “livre arbítrio”.
Tal noção rejeita ou simplesmente ignora frontalmente tudo o que tantas teorias psicológicas e filosóficas já constataram acerca de elementos irracionais, inconscientes e involuntários do “Eu”, e que parece inclusive facilmente constatável sem teoria nenhuma — isto quando a compreensão da tal “alma” não é contaminada pelo modelo materialista da extensão dotada de unidade com contornos demarcados, tal como o corpo, contaminação que os seguidores dessa noção de “Eu” (assim contaminada) costumam recusar-se a admitir.
Diria que o mais habitual é ainda mais bizarro que isso: o mais habitual é que o “Eu” seja pensado pelas pessoas das duas maneiras simultaneamente sem qualquer coerência entre as duas visões: uma “alma” ou coisa similar dotada de vontade (ou livre-arbítrio) conjuntamente com um “corpo” material no qual ela “está” mas “não está” (porque não está presa a ele mas de algum modo é “mais profunda” nele.
Em suma, o “Eu” teria um centro e contornos fronteiriços. Mas o centro estaria em um plano e os limites em outro — dois planos que não se sabe bem como estariam ligados (e aqui nem Descartes poderia vir ao auxílio do senso comum). O “Eu” seria a conjunção de um centro imaterial (a vontade ou livre-arbítrio) com os limites ou fronteiras de um corpo material. É possível conceber algo mais esdrúxulo que isso?
Não importa.
Penso em tudo isso, e mais uma última vez, me lembro do que escrevi naquelas duas postagens, sobre as noções de “presença” e “transcendência”. É que uma das consequências mais estridentes do lado “idealista” (pró-imaterialidade) dessa concepção esdrúxula que o senso comum tem do “Eu” está em uma certa noção de “imortalidade”: a de que tal alma imaterial dotada de vontade (transcendente ao corpo mas presa a ele) se “liberta” desse corpo com a morte, consagrando definitivamente sua condição transcendente.
O que sugeri nas postagens com que iniciei este artigo foi uma outra noção de “Eu”, que se estende de certo modo a transcendências de si mesmo — virando-se do avesso, por assim dizer —, o que implica também uma diferente noção de “transcendência”. Uma nada “idealista”, mas assumindo um materialismo que não se pode dizer “puro”, e que eu preferiria chamar de “materialismo existencial”.
b. Uma “aposta nada pascaliana
Procurei colocar a seguinte questão: se podemos “transcender” expressivamente nossos limites, ultrapassando-os para reafirmá-los mais além em suportes de expressão que antes não faziam parte de nós, sejam esses suportes “coisas” inanimadas ou seres vivos (humanos por exemplo). Embutida nisto está uma certa noção (materialista, ou antes sensorial e expressiva) acerca de uma possível “vida após a morte”.
A questão é: se deixamos em alguém uma nossa marca expressiva, e depois morremos, mas essa marca, esse nosso rastro expressivo presente na pessoa só pode ser algo vivo, já que é algo na pessoa e a pessoa está viva, não é? Será que então podemos dizer que algo de nós está efetivamente (e não apenas metaforicamente) vivo ali, na pessoa, na medida em que expresso nela, tomando-a como suporte vivo de nossa expressão? Uma parte do nosso “Eu” não estaria lá (contrariando, é claro, Descartes e o senso comum com suas noções esdrúxulas de “Eu”)?
Permitam-me fazer uma alusão a Pascal, em sua noção de que o coração tem razões que a própria razão desconhece. Pascal aposta no transcendentalismo cristão. Minha aposta é bem diferente.
Fico pensando o seguinte: não seria a arte, por exemplo, uma maneira deixar também, só que indiretamente, essas marcas em outros seres vivos, e de conquistar uma vida após a morte? Nossa vida após a morte — se há alguma — não está em estar “nos outros”? Em que condições podemos efetivamente afirmá-lo? Eis minha questão — questão eu disse, não uma afirmação ou uma resposta. Eu não sei. Apenas gosto da ideia.
E não me parece algo assim tão contra-intuitivo para o senso comum como se poderia imaginar à primeira vista: estou dizendo apenas que talvez — talvez — nossa “vida após a morte” esteja afinal nas marcas e lembranças que deixamos nos outros. Será assim tão estranho assim esse modo de pensar?
Gosto da ideia, já disse. Acho que traz boas implicações e provoca interessantes reflexões. Talvez esteja disposto a apostar nela. Então o que me pergunto é: será realmente defensável? De que modo? Até que ponto?
c. Artaud e — principalmente — Stirner
Minha noção de “expressão” em toda essa espiral de reflexões é inspirada, no presente artigo, na de Antonin Artaud, caso alguém tenha curiosidade em saber… Mas a referência mais forte aqui é Max Stirner.
Tudo isto que escrevi acima até este ponto (inspirado em vivências é claro, mas estas não vêm muito ao caso) é de certo modo uma resposta a Stirner — o defensor radical do ego-ísmo. Trata-se de um pensador fascinante (e de uma teoria para mim extremamente sedutora), bastante razoavelmente comparável a Nietzsche. Se Nietzsche vê tudo o que há de animado ou inanimado como uma rede de vontades de poder impondo-se umas às outras, procurando dominarem-se umas às outras, Stirner vê tudo como uma rede de impulsos de apropriação pelos quais se vais formando um conjunto de coisas apropriadas ao qual podemos chamar de “Eu”.
Para Stirner, esse conjunto de itens (materiais ou imateriais, vivos ou não, pouco importa) já apropriados continua se apropriando de mais e mais itens, construindo-se incessante e interminavelmente como um “Eu” por meio dessas apropriações (que vão remodelando-o no seu conjunto). Mas há em sua teoria o seguinte elemento interessante: existe uma apropriação “completa” e uma apropriação “incompleta”.
A apropriação incompleta de Stirner é aquela que normalmente conhecemos: há um sujeito apropriando-se de algo, e algo, um objeto de sua apropriação, sendo apropriado por ele. O que Stirner diz é que neste caso, o objeto apropriado vai em contrapartida se apossando do seu apropriador e dominando-o, remodelando-o à sua maneira.
Mas apropriação “completa”, segundo ele, aquilo de que nos apropriamos se dissolve em nosso interesse, perde seus contornos para nós conforme é absorvido por nós e vai se tornando parte de nós. O objeto de apropriação em si perde totalmente o interesse conforme deixa sua marca em nós e vamos nos apropriando dela (e pode até ser deixado de lado), fazendo uma marca nossa, de nós mesmo em nós com o uso daquilo que ele nos oferece como, digamos assim, matéria prima a ser processada e totalmente transformada em nossa autoprodução.
O Ego, ou “Eu”, está em constante autoprodução, transformando-se em conformidade com tudo aquilo de que vai se apropriando completamente.
O que estou acrescentando aqui é a ideia de que esse “apropriar-se” não é, para mim, exatamente algo como um “agarrar” ou “assimilar” à maneira de Stirner, mas um jogo em que cada “Ego” entra por duas vias simultâneas de sentidos opostos, mas ambas de caráter linguístico: a via da interpretação e a da expressão. Nos “apropriamos” de algo ao reinterpretarmos esse algo à nossa maneira (o que pode ser encontrado claramente já na teoria educacional de Stirner), mas digo que também ao nos exprimirmos nesse algo, deixando nele nossa marca.
É um artigo mal composto, pouco claro, carregado de imprecisões — reconheço e o assumo. Mas pelo menos estão aí um tanto atrapalhadamente lançadas — para evitarmos decepcionar por demais os acadêmicos — parte das fontes de onde tirei tudo isto.
É um artigo muito pessoal, quase um “esguicho” impulsivo de pensamentos ainda bem pouco refletidos e ainda mais mal costurados em palavras.
Uma provocação — é o que o artigo traz de melhor. Porque escrevo para os outros escrevendo-me, pondo-me um pouco do avesso.
Não podiam esperar que o lado avesso fosse o mais bem acabado, não é?