LEITURA INICIADA EM ABRIL DE 2013.
Comecei o livro porque comecei a série de videos Sinapses do Projeto Quem (SPQ) com um videoclipe para a trilha sonora da série, e o videoclipe (que é também uma provocação para a reflexão) começa com uma pergunta: Nossos pensamentos não são feitos de mitos? — a resposta não é necessariamente afirmativa… nem necessariamente negativa. É, sinceramente, uma pergunta.
Tenho pensado muito nisto desde que comecei a examinar os pensamentos do sofista Protágoras. Descobri que ele estava procurando transformar os mitos tradicionais gregos em ferramentas úteis a serviço pensamento racional. Mas do modo como a coisa é feita, e conhecendo razoavelmente o que são os mitos (pois me considero quase tão mitólogo quanto filósofo), e conectando isto ao que Flusser diz acerca do pensamento “textual” (ou “diacrônico”) em oposição ao “imaginístico” (ou “sincrônico”), não posso evitar essa questão… porque suspeito que haja algo de mítico no fundo mesmo do pensamento mais racional.
E ocorre que Schelling, neste livro (As Idades do mundo) procura justamente, entre outras coisas, reabilitar para a filosofia o pensamento mítico. Então quis checar.
Até a página 72 (num total de 217, incluindo a apresentação de Hugo Uchoa até a pág. 32), a leitura de Schelling veio me provocando a mesma sensação que quase sempre provoca: uma combinação estranha de fascínio, decepção inicial e repetida, e momentos de grande surpresa (no melhor dos sentidos), em que seu pensamento, com o qual não concordo em quase nada, ajuda grandemente a desenvolver o meu, inclusive por contraposição. Schelling é brilhante, sem dúvida nenhuma. Às vezes me parece perder-se por tempo demais em raciocínios procurando esclarecer logicamente sua ideia de deus (o que em seu caso, significa também e ao mesmo tempo esclarecer suas ideias acerca da natureza e de sua evolução, da arte, da psicologia humana etc.), e isto me entedia — embora sejam raciocínios e uma lógica incomum, inteligente, curiosa e interessante, que anuncia o que mais tarde, em Hegem e Marx, será a dialética. Mas por breves momentos, dá vislumbres da aplicação prática desses raciocínios, de como compreender a partir deles questões acerca da arte, da mitologia, da psique humana etc., e nesses momentos, o texto se tyorna especialmente bom.
Ele faria muito melhor, me parece, se conseguisse, como Proudhon, inserir esse tipo de raciocínio demasiado seco e abstrato no próprio desenrolar das reflexões sobre os fatos, com o cuidado de deixá-los claros, e não demasiado “submersos” no exame dos fatos a ponto de nem sempre ficarem visíveis (como Maquiavel muitas vezes acaba fazendo, por exemplo).
O melhor no livro me parece ser seu exame do que chama de “três potências” com que deus vai materializando em si mesmo todas as formas materiais e por esse meio vai tomando consciência de si mesmo nas coisas que cria em si. Ideia interessantíssima, que só estou conseguindo compreender com maior clareza graças aos cursos que fiz sobre a semiótica de Peirce na PUC, em tempos de Mestrado e Doutorado, com o professor Ivo Assad Ibri — que apontou para o fato, infelizmente ainda pouco examinado, de que Peirce era um leitor de Schelling, e de que as categorias peirceanas para os signos (primeiridade, secundidade e terceiridade) acompanham as tais três potências de Schelling. Mas até a pagina 72, pelo menos, me parece bem melhor o tratamento que Schelling dá a isto em um livro anterior que eu já havia lido: SCHELLING, F. W. J. Exposition de mon système de la Philosophie: sur le vrai concept de la philosophie de la nature. Paris: Vrin, 2000.
Por outro lado, me causa estranheza que Marx, Bakunin e outros jovens hegelianos tenham escolhido esta obra inacabada de velhice de Schelling para acusá-lo de “direitista” em termos políticos. Não faz sentido. O que há de referente à religiosidade e que poderia ser conservador, até aqui, pelo menos, parece ser o mesmo que em obras anteriores, acrescido de algo ainda mais subversivo (e as obras anteriores eram sim, subversivas em relação aos poderes instituídos, na época apoiados na concepção cristã tradicional de deus, pela via do “direito divino” atribuído à monarquia). O deus schellinguiano não apenas impossibilita essa fundamentação para os poderes instituídos, visto que tudo e todos no planeta são pedacinhos de deus, mas ainda trata de um deus parcialmente inconsciente, em processo de eterna criação do mundo (como no judaísmo neohassídico), fundido com as coisas materiais em um delicioso panteísmo (que se aproxima do paganismo politieísta e mitológico) e, ainda por cima, diante do qual bem e mal não podem existir separadamente (lembrando certas formulações do pensamento oriental!).
Se há algo de conservador, deve estar mais nas atitudes pessoais de Schelling na época do que naquilo que escreveu… permanece, para mim, sempre decepcionante, a maneira como Schelling insiste em valorizar a indiferença enquanto face do divino. De minha parte, indiferença e “deus” são igualmente representações do que há de pior, prefigurações do nada e da morte.
Depois de uns dias, interrompi a leitura.
O livro vinha me arrastando para temas e assuntos muito distantes da questão que me levou a lê-lo, a questão da mitologia e do elemento mítico nos nossos pensamentos. O livro é bem mais interessante do que eu pensava, e mostra na verdade um Schelling que valoriza mais a diferença, juntamente com a indiferença (numa conciliação, aliás, da qual absolutamente não consegue me convencer).
Há passagens de teologia que são de uma beleza incrível, superada apenas, de tudo o que li sobre o assunto, pelas noções de fé e de infinito em Pascal. (Embora deva confessar que li pouco de teologia, porque o assunto não me interessa, e o pensamento mítico, que este sim me interessa, na verdade não pode ser considerado como teológico, e nem mesmo religioso. É um erro brutal limitar os mitos à esfera religiosa, embora para compreendê-los seja preciso considerar quase sempre o sentido de “sagrado”… embora me pareça, aliás, que não necessariamente, ponto polêmico que é justamente o que mais me interessa… a difícil mas interessantíssima possibilidade de dessacralização do pensamento mítico sem descaracterizá-lo, caminho que me parece ter sido adotado na antiguidade pelos sofistas).
Schelling, neste livro cuja leitura interrompi por enquanto, procura descrever o indescritível. É o que torna o livro interessante… mas também, em alguns momentos, massante, porque a tentativa às vezes perde o brilho em uma espécie de logicismo inócuo. Vou continuar mais tarde. Mas descobri que o assunto que me interessava — o pensamento mítico — é tratado apenas muito indiretamente. O livro de Schelling que precisaria ler dele é outro: Filosofia da mitologia. Este parece ir direto ao ponto.