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Será mesmo a entropia uma tendência à “desordem”? (ou… A liberdade em questão)

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A realidade microscópica à margem da entropia

É comum as explicações sobre a entropia a definirem, de maneira simplificada, como uma tendência natural de tudo no universo para a desorganização e o caos. Ou melhor, no universo macroscópico em que vivemos, não no universo microscópico que nos compõe e que compõe todas as coisas que existem nesse “nosso” universo macroscópico.

No universo das partículas microscópicas que compõem tudo o que existe em nós e ao nosso redor, a entropia parece não existir, e do mesmo modo parece não existir também o que conhecemos como a passagem tempo, em que as coisas que vão ocorrendo “passam” e se tornam irreversíveis.

Nesse universo microscópico que forma tudo o que existe, os acontecimentos parecem ser todos reversíveis. No nosso universo, em que o tempo passa, os acontecimentos são irreversíveis, as coisas jamais voltam atrás exatamente como foram antes.

Essa irreversibilidade parece existir precisamente porque existe a entropia (… mas há ainda alguns debates e discussões a esse respeito).

A entropia: “tendência à desordem”
…mas o que é “desordem“?!

A entropia, então, costuma ser descrita como uma tendência natural de tudo rumo à desordem. Certo, certo… é um modo de ver as coisas. Entretanto existe um probleminha nessas explicações que descrevem a entropia como tendência à desorganização. O problema é que elas estão… erradas.

Estão erradas porque o conceito de “organização” com o qual os físicos da termodinâmica (e também os químicos) mais costumam trabalhar quando definem a entropia desse modo, é um conceito muito particular, construído na verdade a partir de uma interpretação subjetiva que eles fazem do que normalmente entendemos como “desordem” ou “bagunça” em nossas vidas diárias — construíram essa interpretação tentando dar a isso que chamamos de “desordem” ou “bagunça” um sentido lógico objetivo.

Como é essa noção de “desordem” (mais lógica e obsetiva) da qual falam os físicos e químicos quando se referem à tendência para a qual a entropia caminha?

Trata-se basicamente do seguinte: consideram que um conjunto de elementos está em ordem na medida em que cada elemento está em uma posição precisa e bem determinada, claramente previsível segundo uma regra ou padrão de distribuição dos elementos.

Na medida em que os elementos passam a estar em posição imprevisível nesse todo, na medida em que cada elemento pode estar em diversas posições sem que haja qualquer regra ou padrão pela qual possamos identificar ou prever sua posição, o conjunto desses elementos está em desordem.

Assim, a variabilidade das posições dos elementos em um conjunto, na medida em que essa variação de posição deles não segue nenhuma regra ou padrão e é imprevisível, é um fator indicador de desordem. Em outras palavras, para esses senhores, a liberdade é um fator de entropia, de desordem e de encaminhamento das coisas para a morte.

Felizmente, esses senhores estão errados. Acontece que o que costumamos entender por “desordem” ou “bagunça” pode ser interpretado de outras maneiras chegando a outros sentidos igualmente lógicos e objetivos  para essa noção, bem diferentes desse sentido dado à coisa por esses físicos e químicos.

Além disso, pode-se também facilmente interpretar como “ordem” aquilo que esses químicos e físicos chamam de “desordem” para a qual a entropia tende — e aqui vale a pena esclarecer melhor e exatamente como, porque este contra-argumento é forte. 

É um contra-argumento forte na medida em que se utiliza de critérios reconhecíveis e aceitáveis pelos mesmos físicos e químicos, o que tem o potencial de demonstrar para eles, de maneira que tenderão provocar-lhes a autocrítica, uma certa vocação desse conceito de “desordem”, do qual tanto se utilizam, para a incoerência, ou pelo menos para a ambiguidade (e por tabela demonstrar a eles uma certa incompreensão do sentido humano da “entropia”).

É claro que não podemos generalizar isto para todos os físicos e químicos (o que seria uma tremenda arrogância de minha parte). Mas é fato que a crítica cabe para muitos e muitos deles.

A razão pela qual o que esses senhores chamam de desordem pode ser perfeitamente compreendido em sentido contrário, como ordem, é bem simples e compreensível: o que eles chamam de “desordem” é uma situação que, considerada como um todo, é de maior equilíbrio e simetria.

A noção habitual de “desordem”
a partir de exemplos clássicos

Um exemplo clássico utilizado para o maior esclarecimento da noção de desorganização entrópica é o das mudanças de estado físico da matéria (estado sólido, líquido ou gasoso), e outro é o de de dois tubos interligados, com um gás passando de um deles para o outro. Vamos usar aqui uma combinação dos dois exemplos.

Imaginemos então dois tubos interligados, mas com a ligação entre eles fechada, bloqueada, de modo que nada pode passar de um para o outro. Agora imaginemos que num desses tubos há cubos de gelo, e o outro está vazio.

Nesta primeira situação, as moléculas de água estão todas concentradas nos cubos de gelo. Se quisermos saber onde está uma delas (descartando a questão da “umidade” no ar e nas paredes do tubo ao redor dos cubos de gelo), saberemos de saída que essa molécula não estará nos espaços vazio s entre os cubos de gelo, ela estará em um deles.

E saberemos também que se estiver em um dos cubos, seja qual for sua posição nesse cubo de gelo, não se deslocará para outro dos cubos de gelo (mais uma vez, desconsiderando, e claro, a umidade fora dos cubos, e coisas como uma gotícula pingando de um cubo no outro). Mesmo que fosse um só cubo de gelo, já seria mais fácil prever onde está uma molécula específica de água nesse cubo do que se o gelo estivesse derretido, e essa água em estado líquido.

Essa previsibilidade maior oferecida pelo estado sólido de gelo, essa posição mais precisamente localizável de cada molécula de água no conjunto da água que existe no tubo, significa, do ponto de vista físico-químico habitual, maior ordem, resultante da menor entropia do gelo. A menor previsibilidade quanto à posição das moléculas oferecida pela água em estado líquido, é entendida deste ponto de visa como maior desordem.

Isto ocorre porque água em estado líquido tem maior entropia do que em estado sólido, na forma de gelo. Na verdade isso quer dizer que na água existe um maior desperdício de energia na forma de calor.

No estado líquido, suas moléculas estão menos firmemente ligadas umas às outras, se deslocam mais facilmente umas por cima das outras, e variam mais de posição, por isso a água líquida é mais fluida e maleável que o gelo.

O aquecimento faz as moléculas ganharem uma variabilidade, deslocarem-se mais, também um maior calor se desprende da água, com a agitação de suas partículas umas por sobre as outras. Essa variabilidade de sua posição, os físicos e químicos costumam entender como um estado de maior desordem.

Mas a água ocupa ainda apenas uma parte do espaço do tubo, deixando o alto do tubo vazio. Então sabemos que (descartada ainda mais uma vez a umidade do ar e das paredes do tubo acima dessa água), uma molécula qualquer dela só pode estar em alguma das posições desse espaço do tubo ocupado pela água, não no espaço vazio.

Se o tubo estiver fechado, e essa água evaporar dentro dele, tornando-se vapor, irá se espalhar por todo o tubo, porque a entropia é maior no estado gasoso que no líquido. E teremos menos condições ainda de prever aonde estaria uma das moléculas desse vapor, porque o espaço ocupado por elas é maior, e há mais posições em que cada uma delas pode estar. Maior desordem, do ponto de vista mais habitual entre os físicos e químicos.

O erro dessa noção de “desorganização entrópica”

Entretanto, como já disse, físicos e químicos estão errados quando limitam sua compreensão da “ordem” e da “desordem” a isso que descrevemos nos exemplos do tópico anterior deste artigo.

O erro pode ficar mais claro se, continuando com o mesmo exemplo do vapor de água nos tubos interligados, imaginarmos agora que acabamos de desbloquear essa passagem que liga um tubo ao outro.

O que acontece é que no momento inicial, temos vapor apenas de um lado, em um dos tubos, o que é claramente uma situação de desequilíbrio… mas com a passagem aberta de um tubo a outro, isso não vai continuar assim.

Temos agora que considerar o conjunto dos dois tubos, já que agora estão ligados e seus espaços integram de fato um mesmo conjunto a ser considerado — porque a condição em que está um tubo interfere na condição em que está o outro e vice-versa.

O que vai acontecer é que dentro de pouco tempo o vapor terá se espalhado igualmente, equilibradamente pelo conjunto dos dois tubos. E então, em comparação com o momento inicial, teremos no momento final do experimento uma situação de equilíbrio, uma situação de simetria.

Equilíbrio e simetria claramente não são sinais de desordem, mas de ordem —  sob uma interpretação de “ordem” diferente, como se pode perceber com facilidade, mas igualmente plausível, igualmente adequada para o caso, igualmente lógica e objetiva, e inclusive mais simples e intuitiva do ponto de vista leigo!

A bem da verdade, mesmo antes de abrirmos a passagem entre os tubos, havia já mais equilíbrio e simetria na distribuição das moléculas no vapor do que nas da água líquida, e mais nas da água líquida do que nas que se distribuíam pelos cubos de gelo — o que é não apenas facilmente observável, mas inclusive facilmente mensurável também.

Destarte o conceito habitual de desorganizaçção entrópica com o qual tantos físicos e químicos trabalham precisa ser revisto, pois está, para dizer o mínimo, incompleto.

O mais preciso é considerar, sim, a entropia como uma tendência irreversível à desorganização relativa à posição de cada elemento de um todo, mas ao mesmo tempo que o todo em si se torna mais e mais ordenado no sentido do equilíbrio, da completude, da simetria e da homogeneidade… — em conformidade aliás com um raciocínio já desenvolvido com base experimental e matemática, em outra área das ciências, pelos teóricos da psicologia da Gestalt, segundo métodos fenomenológicos.

Esses psicólogos não desenvolveram seus estudos alheios às contribuições da física, muitíssimo pelo contrário… a própria noção de Gestalt tem origem na teoria física dos campos, inclusive. A concepção que Vilém Flusser — filósofo por meio do qual me introduzi na questão — tem da entropia está conectada, por um lado, à cibernética e à teoria da informação, e por outro, a essa tendência para o equilíbrio do campo das vivências psicológicas que é observada na teoria da Gestalt.

Portanto a princípio podemos dizer que, pelo menos no caso específico do experimento com os tubos de vapor de água que acabamos de descrever, a entropia, de certo modo, “rouba” a organização dos elementos componentes do todo para trasferi-la para o todo em si. Contudo, eu diria que essa interferência do grau de entropia na relação entre o todo e suas partes é mais complexa do que isso.

O que basta por enquanto é compreendermos isso: os físicos da termodinâmica costumam entender “desordem” como uma situação em que cada micro-elemento de um conjunto poderia estar em muitas diferentes posições no conjunto, sem que nenhuma regra, padrão ou previsibilidade de comportamento desses elementos permita localizar,

Mas se esquecem que de um outro ponto de vista, sob uma outra interpretação de “ordem”, aliás perfeitamente compreensível a partir de seu próprio ponto de vista (porque também se utilizam dela sob outras circunstâncias), o maior equilíbrio significa também maior ordem, e a tendência para o equilíbrio exprime, de certo modo, a própria entropia.

Se a entropia não é
a desorganização de elementos “livres”…

…Isto tem implicações complexas e interessantes do ponto de vista da liberdade — se entendermos que podemos compreendê-la como movimento de baixa probabilidade, de baixa previsibilidade, de baixa dependência em relação a “regras”.

A “liberdade”, compreendida assim, não é necessariamente aliada da entropia e da morte térmica, como o modo de pensar habitualmente inspirado na física e na química tende a sugerir, e podemos sim nutrir alguma simpatia, afinal, por uma certa dosagem de “bagunça”.

A desordem, enfim, não setá sempre e necessariamente caminhando da direção da morte… ops, corrijo-me antes de excessivo otimismo: não está mais encaminhada no rumo da morte térmica do que qualquer outra coisa no universo. A avaliação do que está e do que não está mais encaminhado (ou melhor, mais acelerado) no rumo entrópico da morte, é algo no mínimo bem mais complicado.

Flusser, curiosamente, via no improvável e no imprevisível — dentro de certos limites — não um fator de entropia, mas um fator de resistência à entropia. Cabe examiná-lo mais de perto quanto a isto. Pessoalmente, me parece que ele está certo.

E cabe, finalmente, nos perguntarmos ainda mais isso: o que é, efetivamente, a “liberdade”? Será que a definição dela como mera improbabilidade ou desconexão em relação a regras e padrões de previsibilidade é realmente a mais válida?

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