Minhas leituras e reflexões pessoais me conduziram a romper a distinção tradicional entre diferentes sentidos com os quais se costuma compreender a palavra “valor”, e em especial entre dois deles: o sentido econômico e o sentido ético. Pode parecer estranho, mas é sim precisamente o que estou dizendo: que o sentido em que dizemos que um bem econômico tem valor passa a ser no fundo, em minha teoria, exatamente o mesmo sentido em que dizemos que algo é um valor moral para alguém.
Minhas considerações nesse sentido partiram da crítica a duas noções econômicas a respeito do que se costuma chamar de “valor de uso”: a de Marx e a dos economistas liberais da linhagem marginalista.
Quanto a Marx, digo que não compreendeu o suficiente em sua teoria o sentido e a importância do valor de uso, embora tenha esboçado muito vagamente alguns traços de pensamento mais ou menos bem orientados quanto a isto.
Quanto aos economistas liberais da tradição marginalista, erraram ainda mais grosseiramente, tratando o valor de uso como se fosse uma questão subjetiva, como se a expressão “uso” devesse servir para falarmos de um valor que, nos objetos, depende do comportamento de agentes subjetivos, e o fizeram ao mesmo tempo buscando alguma objetividade nisto pelo caminho errado, buscando-a em meros joguetes matemáticos que nem sequer esbarram o fundo da questão.
E o fundo da questão está em que o valor de uso se liga ao modo como (e à medida na qual) o objeto trabalha, alterando com seu trabalho o comportamento de seus usuários (incluindo entre esses usuários, com seus modos de uso, os próprio produtor). O objeto trabalha sobre o comportamento de cada sujeito alterando-o em sentido bastante específico, que depende das formas inscritas nesse objeto pelo trabalho humano, as mesmas que o fazem caracterizar-se mais propriamente como processo. Marx teve a infelicidade de não captar a centralidade disto.
As leituras que me instigaram as livres reflexões que fui desenvolvendo mais e mais a partir dessas críticas foram, já digo, as de textos:
- de Vilém Flusser, sobre o trabalho e a informação e sobre as relações sujeito-técnica-objeto;
- de Pierre-Joseph Proudhon, referentes à divisão e organização do trabalho e à sua teoria das funções (aplicação de sua dialética serial à economia), e também referentes à sua contabilidade moral (conceito pelo qual antecipa o que hoje é chamado de contabilidade social);
- e do matemático e psicólogo Kurt Lewin, em sua psicologia topológico-hodológica;
- parcialmente também leituras de Max Stirner, sobre a relação entre apropriação e formação pessoal — temática pela qual radicaliza tópicos do liberalismo capitalista de John Locke jogando-os contra o próprio liberalismo capitalista;
- e da Teoria Matemática dos Jogos — por mim combinada à topologia hodológica (isto é, vetorial) de Kurt Lewin.
Parto basicamente de uma teoria que concebe o mundo (físico ou não-físico, incluindo por exemplo o campo sígnico e linguístico) como composto de processos — que são dotados de grandezas vetoriais e que se cruzam uns aos outros de diversas maneiras, constituindo-se mutuamente por esses cruzamentos. E extraio dessa mesma concepção dos processos constitutivos do mundo uma teoria dos valores intrínsecos a esses processos, sejam eles valores morais, econômicos ou de qualquer outra espécie.
Mas a descrição mais útil desses valores é a que podemos obter a partir de uma reformulação da noção econômica de valor de uso, tornando-a mais consistente, objetiva, fundamental e complexa.
Não vou desenvolver isto aqui. Estou apenas relatando um caminho em minhas reflexões que na verdade, em grande parte já foi percorrido. Guardo isto para a escritura de um ou mais pequenos livros.
Professor João Borba,
Importantes reflexões, uma vez que os valores ou pelo menos o sentido de valor foi desvirtuado, trabalho, a meu ver, iniciado por Marx. No entanto, o ponto proposto, confesso, não havia pensado faz-me pensar sobre outro aspecto do mesmo problema: as relações capitalistas e o valor de uso.
O valor de uso, neste contexto, é um valor no sentido moral ou econômico? Eis a dúvida que surgiu que, como tantas outras, levam-nos à busca. Cada qual em busca do Santo Graal.