• *PROPOSTA DO BLOG*

    O Blog Quemdisse visa uma postagem inicial mais ágil, descompromissada e espontânea sobre meus pensamentos e assuntos de momento, para um powterior exame mais aprofundado na “euciclopédia” ProjetoQuem (enciclopédia filosófica e interdisciplinar online, de vocação crítica e social, informativa mas com posicionamentos).

O conceito de entropia e o materialismo existencial

O conceito de entropia, que aprendi com Flusser, nos últimos anos vem se tornando fundamental para o meu pensamento.

Mas existem duas vertentes de entendimento desse conceito.

Uma vem da física, da segunda lei da termodinâmica (que estuda por exemplo o que ocorre com a energia quando a utilizamos realizando trabalho, isto é, alterando as condições de alguma coisa).

A outra vertente (mais diretamente ligada à linha de pensamento do Flusser) é a da teoria dos sistemas e da teoria da informação. É o que costuma ser chamado de “entropia da informação”.

Minha concepção da coisa (que ainda está em formação) une as duas, mas me parece que não exatamente do modo como costumam ser unidas por aqueles que fazem essa conexão.

Os estudiosos que ligam as duas vertentes costumam considerar o campo dos signos e da informação como se fosse de uma camada de realidade diferente daquela da matéria e da energia, de modo que pensam, em última instância, em quantidades de energia que seriam necessárias para exprimir tantos e tantos bits informação sem que a informação fosse corrompida por tanto e tanto de “ruído” (que é o que exprime a resistência física à informação), coisa que geralmente depende dos meios físicos utilizados para a transmissão da informação, que geram “ruído” (é fácil perceber, por exemplo, a diferença de ruído na informação musical quando comparamos um disco de vinil e uma mídia digital de alta qualidade). Trabalham com a ideia de que a ausência total de ruído é impossível, e muitos deles com a ideia de que é impossível precisamente porque não há informação sem suporte material, e a matéria traz imperfeição — concepção que talvez não percebam, mas é herdada do idealismo de Platão e do espiritualismo judaico-cristão ou islâmico (ou de outras vertentes religiosas similares).

Na verdade, tendem a considerar a base material e energética de transmissão da informação em primeiro lugar, e depois a tentar reduzir tanto quanto puderem o elemento significativo, os significados, a essa base, digamos assim, “materialista” (o que continua sendo herança de um certo platonismo como que invertido, ou menos que isso, materializado por um certo aristotelismo).

Tenho tendência a pensar nisto de outro modo, segundo o que chamo de meu “materialismo existencial (ou metafórico)”.

Sentimos vivencialmente, na nossa existência, a força da resistência dos materiais com os quais lidamos. Mas do mesmo ponto de vista vivenciamos também assim as informações, porque as vivenciamos metaforicamente como se fossem materiais (e temos tendido historicamente cada vez mais nessa direção), de modo que para nós, humanos, para todos os efeitos, a informação deveria ser tratada diretamente como “material”, no sentido de que dotada de resistências à sua alteração. E os próprios significados resistem em certa medida e de certo modo a alteração, em face de circunstâncias que tendem a alterá-los.

Para mim, a própria informação enquanto significado já envolve, portanto, resistências à sua alteração — assim como a matéria que serve de suporte aos signos pelos quais ela é expressa (o que aliás vale também para os próprios signos em si mesmos, utilizados para sua expressão). Digo que a informação, mesmo enquanto significado, consiste ela própria em um estado de plasticidade como que matérico, comparável aos estados sólido, líquido e gasoso e seus intermediários. De modo que é ela própria existencialmente “material” (vivenciável do mesmo modo como vivenciamos a matéria).

Nietzsche dizia que nunca deveríamos perdoar o cristianismo por “quebrar” um homem admirável como Pascal em dois (corpo de um lado, alma de outro)… pois de fato, os pensamentos judaico, cristão, islâmico e de inúmeras outras tendências da espiritualidade religiosa humana, costumam separar essas duas coisas como se fossem de “campos” ou “camadas” distintas de realidade. Esta minha concepção das coisas é, digamos assim, o modo como entendo e o modo como respondo a essa reclamação de Nietzsche (à qual faço coro) em relação ao pobre Pascal.

Pois é, e não me parece que a lei termodinâmica da entropia perca a validade ou funcione de modo totalmente diferente aqui, no terreno dos significados. Inclusive porque a informação não se dá JAMAIS sem suportes materiais, e a tal ponto inclusive, que a palavra “suporte” não é lá muito adequada para isto que continua a “informação” por debaixo dela. A informação “é” a própria forma “dos” materiais em que está inscrita — o que digo fazendo a simples extensão do que já vinha dizendo há pouco em outra direção.

Se transplantamos uma “forma” para um “outro material”, já estamos operando nela uma abstração, abstraindo a parte da informação concernente ao material anterior, e é essa abstração o que estamos transplantando, não a forma (ou informação) original inteira. Ela muda nesse transplante. E só por abstração o ignoramos. Nessa abstração estamos criando uma outra forma, isenta de certos elementos (certas características) que a anterior só possuia naquele material em que estava inscrita antes de fazermos essa abstração.

Um músico que tente compor algo para violino utilizando um violino material, e depois tente compor outra música para um som digitalizado de violino utilizando um software de edição de música, se tiver alguma sensibilidade para sua própria vivência criativa como músico, perceberá facilmente a diferença.

No som resultante, para o ouvinte sem conhecimento do processo de composição de cada uma das músicas, isso pode ser até indiscernível, se o software for impecavelmente bom e ambas as músicas tocadas no mesmo aparelho de audio. A condição de receptor tende a ser a de uma percepção mais abstrata, que faz abstração do processo produtivo para detectar apenas o resultado e suas próprias formulações subjetivas a partir da recepção desse resultado. O processo de produção de material expressivo costuma, pelo contrário, buscar inclusive a consideração dos efeitos da expressão sobre o receptor, de modo que a percepção do produtor tende a ser mais concreta, mais completa.

E neste exemplo da música, o processo de composição terá sido desmedidamente diferente no caso do uso do violino e no caso do uso do software que imita som de violino. E o resultado seguramente também, independentemente de qualquer julgamento quanto à boa ou má qualidade musical. O resultado será diferente, e o músico provavelmente (se não for preso demais a abstrações) perceberá com muita clareza por que, ainda que não o consiga exprimir em palavras.

Uma das que me deliciam em bandas como Jethro Tull, por exemplo, é usarem recursos de som acústico e digital, sem desprezarem uma coisa nem a outra. A banda mostra muita sensibilidade quanto ao que cada um desses diferentes recursos sonoros tem a oferecer, ao invés de, por alguma excessiva abstração, rejeitar um dos recursos em favor do outro como se fossem recursos similares a ponto de realmente competirem em termos musicais.

Toda informação é destarte material, e tudo o que é matéria é, também informação — e informação não deve ser algo compreendido como mera “porção de energia” indiferentemente de seu significado — porque informação é significado, e não uma outra coisa de alguma outra camada supostamente “mais material” da realidade.

Corpo-alma, matéria-pensamento… meio-mensagem, suporte físico – informação… tais distinções e tantas outras similares (mesmo as operadas por autoproclamados “materialistas”) estão ainda profundamente contaminadas pelas concepções judaico-cristãs de que Nietzsche reclamava. E a meu ver, estava certo em reclamar.

Isto deve ser superado. E não pura e simplesmente abandonando à maneira de um fanático tal distinção e toda terminologia conectada a ela fugindo de pensar nisto. Mas pelo contrário, refletindo a respeito, avaliando e selecionando de maneira estratégica e deliberada o que se pretende manter e o que se pretende rejeitar da terminologia que ainda mantém algo dessa contaminação. Por que? Porque terminologias têm também suas resistências, e consequências, e seus efeitos sobre as pessoas… que podem ser instrumentalizados em favor de posicionamentos. É o que procuro fazer.

Se acreditasse em tais distinções, seria materialista. Sem dúvida nenhuma. Mas não há (ou defendo que não deveria haver em nossos pensamentos) tais distinções, tais “camadas”. Inclusive porque humanamente não temos acesso a algo que seja de fato “puramente” material.

Somos seres que vivenciam as coisas através de suas mentes, portanto em certa medida alienadamente sim, muito mais do que outros animais, e não de modo direto e imediato. É assim que somos, e caímos em perigosos dogmatismos quando ignoramos ingenuamente isso.

Quando, tantas vezes, nos pretendemos puramente materialistas, esse “puramente” é na verdade pura tolice. E inclusive, é desmaterializante na medida mesma em que é um “purismo”, ou seja, algo que depende de uma operação de abstração — pois procuramos abstrair do caminho de acesso à realidade, em nosso pensamento, nossa própria condição de alienação no campo mental.

Mas esta é também, ainda e sempre, uma operação mental, e queiramos ou não, realizando-a continuamos alienados em relação à materialidade do mundo ao nosso redor — com o qual, repito, não temos contato direto, mas só em larga medida através de nossas mentes. Pois elas comandam e torcem quase que à vontade nossas percepções sensíveis, e não é preciso muito estudo para se dar conta — com facilidade — disto.

Uma tal abstração é “desmaterializante”, evidentemente, à maneira de uma ilusão que nos aliena da realidade material ao nosso redor — ou que temos pelo menos indícios suficientes para supor que exista ao nosso redor, a tal ponto que parece tolo imaginar que não haja realidade material nenhuma aí em volta, sendo “tocada” por nossos sentidos e nossas ações. A abstração que reduz tudo a uma “pura materialidade” é igualmente tola quando se torna uma crença, porque atua como uma ilusão que formulamos na consciência por esse exercício da abstração, eu diria que nada mais que isso.

O fato de nos recusarmos a enxergar que certa matéria tem uma forma, ou o fato de não termos nome para a forma com que um material se apresenta à nossa percepção, não significa que seja matéria sem forma. E o fato de ignorarmos o caráter informativo de toda forma humanamente acessível (e quero dizer o caráter humanamente informativo, no sentido psicológico mesmo, pois há alguém, uma pessoa viva ali, de carne e osso, captando essa forma, e captando suas relações com toda uma vivência pessoal carregada de outras informações), o fato de pretendermos ignorar isso, enfim, também não significa que a informação não esteja ali.

A informação está sim presente, como possibilidade pletamente captável por nós, mas apenas que não estamos realizando essa possibilidade de informação inscrita ali, não a estamos captando ou não a estamos querendo captar.

Neste sentido, o materialismo que procura reduzir a informação e o significado a uma matéria no fundo sem informação ou significado humano reconhecível como tal é… simplório, tolo.

Digo que há materialidade existencial metafórica (e nem por isso menos humanamente real e efetiva) no conjunto das características de uma formação material qualquer — formação que pode ser por exemplo um sentimento, ou uma ideia na mente de alguém ou uma pedra no chão à nossa frente, ou ainda algo como um direito instituído e que se pretenda questionar, por exemplo o direito à propriedade privada de bens produtivos, ou outro qualquer de que se queira tratar.

Tudo oferece algum grau e tipo de resistência à alteração, e nesse sentido, tudo é vivenciável como “material”. E historicamente temos tendido a vivenciar cada vez mais como “materiais” coisas de caráter sígnico e de carater significativo, ou coisas tão fluidas que parecem “impalpáveis”, como sentimentos por exemplo — de modo que, sinceramente, distinções como aquela operada pelos marxistas entre “ideologia” e “realidade concreta” me parecem cada vez menos sustentáveis, e cada vez mais tendentes a cairem na paradoxal condição de meros dogmatismos comparáveis ao que pretendem combater.

Essa tendência histórica, aliás, a atribuo em última instância à lei da entropia.

Penso em toda informação — mais uma coisa que aprendi com Flusser — como forma inscrita em algum material. E acrescento de minha parte que “matéria sem forma” é uma mera abstração intelectual exatamente tanto quanto “forma (informação) pura, sem matéria”. Abstrações não deixam de oferecer resistência, como já nos antecipavam as constatações de Durkheim, ao tratar por exemplo tabus sociais como “coisas” dotadas de resistência comparável à das pedras e de outros objetos materiais.

Diria que existem apenas formas materiais mais maleáveis ou menos a alterações — reinscrições de informação, remodelagens de forma —, seja por causa das condições do suporte material, seja por causa dos encaixes e desencaixes (envolvendo mais integralmente forma e suporte material ou propiciadas mais por uma coisa do que por outra)… que a forma atual estabelece com as formas de outras formações materiais.

Não vou desenvolver isto aqui, vou deixar para outros artigos… mas acho que a abstração e a crença, quando combinadas, acabam sendo elementos de presença fortemente entrópica — isto é, mórbidos, de degradação da vida — em nossa psique. Mas ainda tenho muito o que desenvolver em relação à questão da entropia. Ainda tenho aquela sensação do “estou longe, cru, com muito chão ainda pela frente” nesse assunto.

Estou para desenvolver mais claramente o modo como interconecto essas duas noções de entropia, a informacional e a termodinâmica. Tenho lido faz algum tempo autores como por exemplo Norbert Wiener, que é um de meus interlocutores preferidos quando penso a respeito (além do próprio Flusser, claro).

Não descarto por outro lado a leitura de Luhman e a pesquisa de suas fontes a esse respeito, embora a linguagem de Luhman nunca tenha me agradado (acho-o de leitura desagradável, apesar do bom conteúdo que se pode peneirar ali). Na consexão da entropia com a morte, Camus me dá uma animada, dançando polca ao meu redor, girando de mãos dadas com o Flusser… dois dos meus fantasmas companheiros mais entusiasmados, e que ficam me cutucando, querendo que eu entre na dança… será?

 

 

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