SUMÁRIO
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A questão ética na interpretação
das ações e comportamentos alheios:
reflexão sobre minha interpretação (de João Borba)
do comportamento Black Bloc
Andei escrevendo no facebook sobre o fato de com frequência andar cantarolando e assobiando, e como isso provoca interpretações divertidas acerca do que se passa comigo (embora seja o meu natural independentemente do meu bom ou mau humor). Alunos achando que eu estava “apaixonado”, alunos achando que eu estava triste porque a música cantarolada era trágica, alunos achando que eu estava “feliz da vida” por estar cantarolando etc.
Quando escrevi isto, sem tempo para levar a coisa mais longe, estava na verdade pensando no fato de estar nos últimos tempos tentando interpretar o comportamento dos Black Blocs em política, em busca de algo como uma coerência profunda esboçada inconscientemente, mas ainda não encarada de frente por eles próprios.
Neste sentido, tentando ajudar no processo de autoconscientização e autocrítica e autoconstrução mais bem pensada desse pessoal, tenho procurado apontar coisas que (neste caso específico, melhor do que a imagem de um repolho) podem ajudá-los a se entenderem com si mesmos e desenvolverem melhor sua personalidade coletiva, como o pensamento de Georges Sorel por exemplo, ou (em um nível de acesso mais fácil e em uma linha de pensamento similar, o filme “Clube da luta”). Comparar-se com a imagem de grupo politicamente organizado que esse filósofo e esse filme nos passam pode, de fato, ser mais útil no caso de um membro dos Black Blocs do que comparar-se a um repolho (embora nem sempre as comparações com formulações mais elaborada seja necessariamente melhor que metáforas simples e até um tanto cômicas). Já vinha escrevendo coisas sobre isto também no facebook e neste meu Blog (o Blog Quemdisse)
Escrevi sobre o modo como alunos interpretam meu comportamento porque estava pensando em questões éticas: em quais seriam os limites éticos dessa atitude nossa tão comum de interpretarmos os comportamentos dos outros. Estou agora refletindo acerca de minha própria atitude em relação aos Black Blocs, como se pode perceber.
O caráter político
da interpretação dos comportamentos alheios.
A “politiquinha” dos corruptos e fisiologistas:
um convite à violência
Esse tipo de interpretação do comportamento alheio de que falo é comum, porque a política é uma atividade incontornável e habitual da vida humana, que direta ou indiretamente permeia quase todas as nossas atividades. Política, no sentido mais amplo e também no mais profundo do termo, está longe de ser isto que vemos nossos “políticos” oficiais praticarem.
Política é a arte da convivência entre os diferentes, e num sentido mais egoísta que não deixa de estar presente nisto também, a arte de conseguirmos a maior vantagem nessa convivência.
Podemos nesse sentido falar em uma política “grande” (típica por exemplo dos grandes Estadistas por exemplo), que procura a maior vantagem para todos como quem joga um jogo de soma zero, desses em que a gente não ganha vencendo ou derrubando o outro, mas fazendo o máximo de pontos em cooperação com ele, contra adversários incomparavelmente maiores e mais poderosos (como por exemplo a força das circunstâncias políticas e econômicas mundiais), como aquelas que talvez estejamos perto de ter que enfrentar, se forem corretos certos prognósticos acerca de uma grande crise econômica mundial que está por vir. E podemos falar também de uma “politiquinha”: essa em que se tenta “vencer” o outro, “tirar vantagem” sobre ele, e que é marcada, acima de tudo, pela mediocridade de quem pretende colocar-se acima do mediano reforçando para baixo a própria linha do que é médio, para destacar-se como se fosse possível destacar-se “sozinho”.
O corrupto e o fisiologista, por exemplo, atuam nessa linha do medíocre, sem nem sequer se darem conta disso ou mesmo darem qualquer atenção a isso (como aliás, é típico do medíocre). A mediocridade de uns tende a prejudicar a todos ao seu redor tanto quanto, sem se darem conta, os medíocres prejudicam a si mesmos. Ou prejudicam aos demais ao seu redor ainda menos do que prejudicam a si mesmos, porque não o fará sem que os demais em algum momento acabem se dando conta do prejuízo e de suas fontes, e tomando atitude. O que pode ser bastante violento quando o maior índice de mediocridade prejudicial se encontra concentrada entre as “lideranças” políticas e econômicas (que atual sobre as primeiras com seus lobistas) em um país acostumado ao paternalismo, e o maior índice de prejuízo é de todo o resto, isto é, da imensa maioria da população.
A decepção com o paternalismo tende a tornar a reviravolta para impulsos violentos ainda mais intensa. Aliás, já fazem muitos e muitos meses que não passa uma semana sequer sem que eu ouça de desconhecidos na rua, nos ônibus e metrôs, nos bares etc., expressões como “alguém tem que matar todos esses políticos”. O egoísmo das elites empresariais ainda consegue se esconder um pouco atrás dos corruptos da política, mas bem mal, pois está claríssima para a população a conexão entre a corrupção política e os lucros de empresas privadas, e não apenas a ligação entre a corrupção e a falência de empresas públicas, tão mais difundida pela mídia em detrimento das conexões da coisa com o campo empresarial privado.
A questão da interpretação dos comportamentos alheios está também diretamente ligada a tudo isto, porque não interpretamos apenas o comportamento de indivíduos, mas também o de grupos, e o de toda uma sociedade. Grande parte das atividades políticas passa por essa interpretação dos agente envolvidos, porque nossas ações políticas individuais ou coletivas dependem de nossa percepção do campo de ação ao nosso redor, de como ele se recorta em regiões que são como as casas de um tabuleiro de jogo, das condições que nossos posicionamentos e deslocamentos de uma “casa” para outra, nesse “tabuleiro do jogo político”, colocam para nossas estratégias futuras de ação, e especialmente (por serem ações políticas) de nossa percepção dos demais agentes políticos individuais e coletivos que circulam conosco nesse campo de ação, alterando a todo momento essas condições que existem para nossas estratégias futuras de ação.
A ação comunicativa de Habermas
como instrumento para a reflexão ética
acerca da interpretação do comportamento alheio
Não sou grande fã de Habermas. Na verdade, não gosto muito de sua filosofia, e sou da linha dos defensores de uma filosofia da diferença, de modo algum da linha de uma “busca do consenso” à maneira habermasiana (ideia que chega a me causar inclusive enjôo do estômago!). Mas sinto-me forçado a admitir que há algo de útil em sua teoria da ação comunicativa quando se trata de refletir acerca dos limites éticos da interpretação das ações alheias.
Para Habermas, uma ação social não é apenas uma ação que se orienta estrategicamente em função de raciocínios sobre como os outros vão reagir se agirmos deste ou daquele modo. Max Weber trata como ação social esse tipo de ação meramente técnico-estratégica, em que pensamos nossa estratégia e nossa técnica de ação em função das reações que podemos prever nos outros, e Habermas (a meu ver inteligentemente) não concorda. Prefere considerar como “social” uma ação que procura comunicar algo para os demais agentes envolvidos, de modo a propor algo para todos, algo aberto a ser aceito ou rejeitado, portanto algo a ser discutido por todos, algo a ser publicamente debatido.
Digo que que as ações realizadas assim são, de maneira clara e evidente, eticamente interpretáveis, desde que assumamos que a interpretação é nossa, e que estejamos abertos ao diálogo com o próprio agente, enquanto intérprete principal de sua própria ação, porque é o que pode captar melhor suas próprias intenções.
Entretanto é claro que um interpretador externo pode às vezes demonstrar-se melhor intérprete de um agente do que o próprio agente, assim como quem observa de fora um jogo de xadrez muitas vezes percebe jogadas que os próprios jogadores, sem esse mesmo olhar distanciado, não percebem. Isto ocorre porque o que tem realmente maior peso na interpretação de uma ação ou comportamento é o sentido que se pode captar no movimento do agente examinando essas ações e comportamentos ao longo prazo, ao longo da biografia política desse agente ou pelo modo como esse agente se insere na história, entre outros posicionament0s históricos no decorrer do desenvolvimento das situações políticas no longo prazo.
Por estranho que pareça, em política nem sempre quem está fazendo um caminho é que enxerga melhor o caminho que está fazendo, porque nem sempre se dá conta com clareza do modo como seu caminhar vai se inserindo no contexto político, examinado mais amplamente e no longo prazo. Além disso, há agentes que pensam de maneira muito imediatista, reagem sem pensar muito a uma situação de momento (no caso do Brasil, reagem muitas vezes emocionalmente e de modo irracional inclusive) e não se dão conta com clareza do caminho que vieram fazendo até chegarem onde estão, ou da direção para a qual estão se encaminhando, se continuarem rumando no mesmo sentido.
Do pondo de vista ético,
qual é o centro da questão na interpretação
das ações e comportamentos alheios?
Do ponto de vista ético, a questão é: até onde podemos levar nossa interpretação do comportamento alheio sem estarmos sendo antiéticos?
Já vimos que, em política, é muito difícil senão impossível passarmos sem esse exercício de interpretação constante das ações e comportamentos de todos os agentes envolvidos, visto que se trata da arte de construir a convivência entre os diferentes, de modo que os limites que a política apresenta nesse sentido talvez não sejam os mesmos que outras áreas da ação humana apresentam. Por outro lado, fora da política, interpretar, e acima de tudo fixar e espalhar uma determinada interpretação das ações e comportamentos de alguém no meio social em que essa pessoa circula, pode interferir fortemente na vida dessa pessoa, porque pode interferir nas suas relações sociais ali, interferência que, dependendo de como se desenvolve, pode ser perniciosa, prejudicial.
Os críticos de coisas como “fofocas” e “boatos”, sem precisarem de filosofia, já conhecem muito bem esse tipo de perigo. As pessoas que costumam se comportar de maneira estranha, incomum ou diferente, especialmente em ambientes como pequenas comunidades interioranas, também já conhecem muito bem esse tipo de coisa. As difamações e calúnias caminham em geral por esse terreno.
Entretanto, quando pensamos em termos políticos, se torna muito difícil fixar limites éticos em relação a isso. Porque o modo como fazemos com que alguém veja um adversário político também é uma ação de tipo político.
A ética do “Estadista” e da “grande política” diplomática,
visando atender e beneficiar a todos,
é suficiente? — A questão da luta de classes
Podemos pensar no comportamento do tipo “Estadista” como um possível modelo ético. Mas por outro lado, como não se sensibilizar para a observação dos que denunciam eticamente as “transações” fáceis e superficiais, os acordos de superfície, que hipocritamente escondem diferenças brutais, como as diferenças entre camadas econômicas por exemplo, entre ricos e pobres?
Como não se sensibilizar eticamente em relação aos que repudiam toda e qualquer diplomacia típica de “Estadistas” precisamente porque vêem nisto uma busca de “equilíbrio” superficial (falso, hipócrita) entre as forças de ricos e pobres? Como não se sensibilizar eticamente ao apelo dos que defendem, nesse sentido ético mesmo (que não é propriamente o de Marx, mas o de marxistas diferenciados como Sorel), a noção de luta de classes?
Ou será que alguém seriamente, sinceramente acredita (é tolo, estúpido, ingênuo, cego ou alienado o suficiente para acreditar) que um “equilíbrio de forças” entre ricos e pobres é ainda um “equilíbrio” quando continuam existindo “ricos” e “pobres”?!
Buscar uma filosofia das diferenças, valorizando-as,
leva a defender como algo normal e aceitável
a diferença entre “ricos” e “pobres”?
A resposta à questão que dá título a este tópico do presente artigo é rigorosa e contundentemente não. Quanto a isto, minha posição é a seguinte: que haja “ricos” e “pobres” não é uma diferença real, é uma equalização em que as diferenças reais são abstraídas e reduzidas a uma mera diferença quantitativa, entre quem tem mais e quem tem menos. Por isso mesmo, em questões quantitativas que envolvem a dosagem ou quantidade de força dos agentes envolvidos, é preciso buscar o equilíbrio e não a “igualdade”. Só no equilíbrio as (belas e valorosas) diferenças conseguem se manifestar.
O desequilíbrio de riquezas precisa ser sanado para acabar com a neutralização das diferenças que iguala a todos de um lado na condição de “pobres”, ao fazer suas vidas girarem em torno dessa condição puramente quantitativa, e de outro na condição de “ricos”. Não há “equilíbrio” possível, inclusive, entre ricos e pobres, porque riqueza e pobreza são expressões de um desequilíbrio profundo que elimina, mata, o florescimento de diferenças reais interpessoais, entre pessoas (ou personas) individuais ou coletivas, que poderiam avivar nossas vidas com uma atividade mais efetivamente política — de arte da convivência entre os diferentes sim, no sentido mais pleno.
Examinar a democracia de Atenas pode ajudar na luta
contra o desequilíbrio de poder econômico em uma sociedade?
O sintoma maior e mais claro desse desequilíbrio está no fato de os termos “político” e “cidadão” estarem hoje diferenciados, e de que o termo “cidadania” se refira a um conjunto muito reduzido e muito menos poderoso de atividades em comparação com aquele conjunto das atividades desempenhadas por “políticos oficiais” — assim como o fato de os termos “trabalhador” e “empreendedor” (ou empresário, aquele que desenvolve um empreendimento) estarem diferenciados no mesmo sentido, com uma minoria como “grandes empresários”, dotada de um poder de ação, em termos de interferência na vida social, muito maior do que o poder de ação das atividades dos “trabalhadores”.
Na antiga democracia de Atenas, não havia essa distinção entre “político” e “cidadão”, e exercer a cidadania, interferir na vida da pólis (cidade-Estado grega da antiguidade), era exatamente o mesmo que exercer uma atividade política. Ali, apesar de todos os defeitos ligados a costumes conservadores que dificultavam a realização plena da democracia (como por exemplo o machismo generalizado, ou o preconceito em relação a estrangeiros) a nação ateniense se encaminhava mesmo assim cada vez mais para um equilíbrio político-econômico (ou seja, um equilíbrio de poder) cada vez maior entre as diversas comunidades, bairros, ou “demos” como se dizia na época.
Note-se que “demos” não significava “o povo”, como se fosse uma mesma e una massa de gente igual: significava uma pluralidade de comunidades diferentes existentes na cidade, cada qual com seu perfil, seus interesses e suas necessidades. E essas comunidades não estavam diferenciadas umas das outras quantitativamente, como comunidades “ricas” e outras “pobres”, mas qualitativamente, por seu perfil realmente, porque os demos foram uma criação política artificial visando isto entre outras coisas, de modo que em cada “demo” da cidade havia, equilibradamente, gente de todas as camadas socioeconômicas.
O resultado teria sido belo do ponto de vista ético, se outros fatores — todo um complexo deles, hoje disponíveis para estudo nos livros de história — não impedissem a realização desse equilíbrio mais radical, em que desapareceriam as distinções entre “pobres” e “ricos” ressaltando-se em lugar disso as diferenças reais.
Será que a noção de luta de classes e a postura de “negação”
são mesmo os melhores meios de combate ao stablishment?
Ignorar as desigualdades quantitativas de poder dos grupos sociais uns sobre os outros, isto é, os desequilíbrios de poder — por exemplo os desequilíbrios entre ricos e pobres — ou disfarçar esses desequilíbrios sob ações diplomáticas de falsa negociação, não resolve o problema. E toda negociação que procure resolvê-lo deste modo será sempre necessariamente falsa, injusta e não propriamente negociada, todo acordo ou contrato obtido nessas condições é na verdade inválido, porque na verdade não há negociação justa possível ou “contrato” real entre duas forças desiguais: ao lado mais forte imporá sempre suas condições.
Por isso é que os defensores da noção de luta de classes — com toda justiça e com bom senso estratégico, aliás — procuram reforçar (com todo exagero e toda mitificação possível, aliás) a unidade de interesses das classes mais pobres contra a unidade de interesses das mais ricas: porque assim, a balança do desequilíbrio de poder passa a pesar menos do lado dos política e economicamente mais influentes, e mais do lado dos quantitativamente mais numerosos, pois a quantidade também é uma força, e sob este critério, a força passa para o lado dos mais pobres, que são a classe (incomparavelmente) mais numerosa.
O que em geral falta pesar na reflexão dos defensores da luta de classes é que a agressividade com que tende a se desenvolver o empenho por essa unidade de ação das camadas mais pobres, agressividade que se volta inclusive contra membros das mesmas camadas que ousem pensar diferente ou de modo mais original, essa agressividade belicosa, tende a promover o florescimento de novas instâncias de desequilíbrio de poder no seio dessa mesma suposta unidade que está sendo construída.
A postura de negação do stablishment, tão valorizada na história do socialismo desde a influência de Hegel, trazida em versão radical e agressiva para esse meio (socialista) principalmente pelos socialistas alemães e até mesmo pelo anarquista russo Bakunin, que convivia com eles, infelizmente é também um fermento muito eficaz para o desenvolvimento de autoridades — isto é, de desequilíbrios de poder entre quem “manda” e quem “obedece”. Não é a toa que em nenhum outro campo de relações humanas impera tão firmemente a noção de hierarquia de comando como nas organizações militares, embora não seja impossível pensar estruturas de organização militar alternativas e menos hierarquizadas (o que muitas vezes ocorre no caso de guerrilhas, mas mesmo nelas, a noção de autoridade costuma ter um peso acima do que tem na maioria dos outros campos de relações humanas).
Por isso é que Proudhon, sabiamente, considerava mais coerente com a postura anarquista que defendia, que as pessoas procurassem agir positivamente — isto é, criando novas formas de organização independentes do stablishment, e negando o stablishment indiretamente por meio dessas organizações tão independentes quanto possível. Achava melhor que se lutasse para firmar formas de organização intependentes, alternativas, o que seria uma outra maneira de lutar contra o stablishment, ao invés de se lutar diretamente contra ele: porque toda organização tende a gerar mecanismos pelos quais ela possa se perpetuar, ainda que isso seja impossível, de modo que organizar-se contra alguma coisa nos torna dependentes de que essa coisa continue existindo para podermos combatê-la e manter também a nossa luta sempre acesa e permanente.
Se a luta se dirige para a construção de algo que, indiretamente, destrói o stablishment, ao invés de se voltar diretamente para a destruição, nossa postura de combativa se volta para a afirmação do que estamos tentando afirmar, e para o combate de barreiras e impedimentos (que se concentram no stablishment), de modo que nos tornamos menos dependentes da existência do stablishment.
Mas deixemos para outra ocasião essa discussão de estratégias revolucionárias, e voltemos à nossa questão dos limites éticos na interpretação das ações e comportamentos alheios…
Sugestão de alguns elementos
para a discussão ética da questão
da interpretação do comportamento alheio
Minha sugestão é, para começarmos a pensar eticamente a respeito da interpretação de ações e comportamentos alheios, partirmos de início da consideração do critério de Habermas para definir a ação social, e da noção de que, se a política é (como sugere Hanna Arendt) a arte da convivência entre os diferentes, então toda ação social nesse sentido é necessariamente política, e portanto, eticamente interpretável se a interpretamos comunicando socialmente nossa interpretação do mesmo modo, isto é, como uma proposta de interpretação aberta ao debate, e a um debate no qual os próprios agentes cujas ações estão sendo interpretadas não podem ser excluídos ou marginalizados da interpretação.
Pensemos um outro tipo de caso.
As ações que não são comunicativas só são ações políticas indiretamente, na medida em que de algum modo interferem nas condições vigentes de ação política. Por exemplo, as pessoas que acham que o comportamento individualista e competitivo no mercado de trabalho é um problema unicamente seu, e que não pretendem “comunicar” isto a ninguém ao agirem desta maneira, no entanto podem estar indiretamente comunicando sem se darem conta, o que é preciso ser verificado, examinado, para sabermos se é mesmo o caso, situação em que cabe trazer a pessoa à consciência do caráter comunicativo (político) de sua ação. E mesmo quando não o estão fazendo, quando se verifica que, de fato, não estão comunicando a ninguém o seu comportamento individualista e competitivo, é preciso examinar em que medida esse comportamento, de qualquer modo, não afeta as condições de ação política, as condições de busca da convivência entre os diferentes.
A questão ética está mais implicada evidentemente na ação consciente do que na ação inconsciente. Podemos criticar eticamente alguém na medida em que sua ação seja consciente de seu caráter antiético, mas não me parece correto criticar a pessoa por um comportamento de que ela não tem clara consciência, ainda que interpretemos esse comportamento como sendo “antiético”. Neste caso, nossa própria interpretação é que é antiética.
Por outro lado, podemos julgar eticamente se a pessoa não está conscientemente se mantendo alheia ao caráter antiético de sua ação, se a pessoa não está se recusando a tomar consciência. Mas aí, mais uma vez, não estaremos sendo éticos se apenas projetarmos sobre a pessoa nossa própria avaliação do que é ético ou não, porque se fizermos isso, estaremos tratando a pessoa como coisa, como objeto, e não como sujeito com liberdade de pensar e avaliar as coisas por si mesmo, isto é, com dignidade humana (a referência, aqui, é Kant). O único modo de podermos considerar eticamente a pessoa, é dialogando francamente com ela, e nos arriscando a encararmos uma noção ética sim, mas totalmente diferente da nossa, pois a pessoa, sem deixar de ter suas próprias noções perfeitamente éticas, pode simplesmente não concordar conosco que o ético a fazer seja mesmo aquilo que pensamos que seja.
A meu ver, a questão ética tem que ser encarada precisamente assim: como uma questão aberta ao debate. Uma questão que é colocada por nossas ações tanto quanto pelos nossos dizeres (senão até mais). De modo que a questão ética é colocada à maneira daquilo que Habermas chamou de ação comunicativa. E é, portanto, necessariamente uma questão política também e simultaneamente. Uma questão implicada diretamente na arte da convivência entre os diferentes.
Como parto do princípio do que chamaria de equilibrismo radical, do princípio de que devemos buscar o equilíbrio de forças na discussão de qualquer questão, na proposição de qualquer coisa como modelo para a sociedade, acho que a questão do que é eticamente válido ou não quando tratamos de interpretar as ações e comportamentos alheios deve ser pensada em escala, e buscando o equilíbrio entre as forças diferentes em jogo.
Quando digo isto, quero dizer que devemos pensar se é ética ou não cada uma de nossas interpretações da ação alheia…
- …considerando com diferentes pesos os diferentes graus de politização com que essas ações que estamos interpretando são colocadas (isto é, em que medida são consciente e estrategicamente ações comunicativas)
- … considerando os agentes cujas ações estamos pretendendo interpretar, conforme a força que eles tenham para interferirem com seu próprio ponto de vista nessa interpretação de suas próprias ações. Por exemplo: não podemos considerar com o mesmo peso, no balanceamento em busca do equilíbrio de forças, um agente individual e um agente coletivo formado por toda uma massa de gente, nem considerar com o mesmo peso um agente individual e uma instituição poderosa perante a qual ele tenta defender seus direitos… por outro lado, nem todo agente individual tem a mesma força para fazer valer como dominante sua interpretação do comportamento alheio ou do seu próprio comportamento: um rico e um pobre claramente não têm, um super bem relacionado e um tímido e retraído, sem muitas relações interpessoais, também não… e o poder de um indivíduo, nesse sentido, por vezes pode chegar a superar o de uma coletividade). É preciso pesar, pôr na balança, as forças reais que cada agente tem para fazer valer como dominante uma interpretação que faz do comportamento alheio ou do seu próprio, no jogo político das interpretações.
- …considerando os diferentes graus de repercussão que nossas interpretações podem atingir em cada caso, o quanto essas repercussões afetam os agentes cujos comportamentos estão sendo interpretados, e (como já mencionado no item 2) qual a força que esses agentes têm para se contraporem a uma interpretação que, tornando-se pública e difundida, os afete.
Deixo a discussão por aqui, para que outros possam pensar, talvez melhor do que eu, a partir daquilo que esbocei.
Textos de João Borba na net
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