Por que o sexo não é tudo no mundo — para um diálogo com Hannibal Lector, a versão “civilizada” do lobisomem.
O sexo é o deslize dos tecidos sensíveis de um corpo sobre outro, acompanhado de prazer advindo em decorrência desse deslize. Os mais sensíveis costumam ser os tecidos de partes que costumamos considerar mais “internas” ou “íntimas”, como o tecido da língua por exemplo, e outros que não é preciso mencionar, porque são os primeiros a se imaginar. Como há regiões de tecido sensível que não são exatamente iguais nos homens e nas mulheres, também não é preciso esclarecer que para a mulher o sentido de “íntimo” ou “interno” tende a ser mais intenso, não é?
O sexo é também a atividade física mais intensa que um corpo (humano, pelo menos) pode experimentar, com a possível exceção de situações extremas de tortura e do instante da morte em situação consciente e torturante. De todos os exercícios, o sexo seguramente — e talvez possivelmente essa exceção mencionada (mas seria preciso consultar um biólogo ou médico especializado no assunto para ter certeza) — é a única atividade consciente a nos exercitar por inteiro e até mesmo em nível intracelular. É o mais completo de todos os exercícios físicos possíveis, ativando e mobilizando intensamente inclusive inúmeras regiões daqueles que são os elementos físicos da mente, o sistema nervoso periférico e central.
As marcas maiores da distinção entre o ser humano e outros animais (sexuados ou não) são a nossa elevada capacidade de intercomunicação (que seria considerada quase “telepática” por outroa animais, se pudessem “considerar” alguma coisa), e o nosso elevado grau de abstração, ou para dizê-lo de outro modo, de alienação enquanto seres biológicos inseridos no mundo, de distanciamento mental e ausência de contato direto com a realidade física, material, ao redor de nós.
Essa nossa alienação nos aliena também uns dos outros, cada um de nós toma contato com abstrações mentais que faz acerca das pessoas com quem se relaciona, e não com a pessoa em si mesma. Inclusive durante o sexo, porque a pessoa não se reduz, pelo simples fato de estar “transando” conosco, a apenas o conjunto daqueles seus tecidos sensíveis que entram em contato com os nossos. Mais precisamente, a pessoa não se reduz apenas ao conjunto de seus tecidos sensíveis que — estes sim, de fato, realmente — entram em contato com os nossos (que são sim, de fato realmente, uma parte de nós) pelo simples fato de estar “transando” conosco.
Mas o simples fato de estarmos “transando” sim, incontestavelmente, coloca em contato real uma parte real nossa com uma parte real dessa outra pessoa. Isso não quer dizer que nossa alienação natural em relação ao que nos é “outro” não continue presente. Só deixa de estar presente nos breves momentos em que, durante o sexo, deixamos de ser “humanos” e passamos a ser meros organismos em êxtase. Mas o sexo não se limita a esses momentos. E nesses momentos, por outro lado, nos alienamos de nós mesmos, precisamente porque deixamos desaparecer nas sombras inconscientes de nossa mente aquela alienação, que é fundamento não apenas da nossa condição humana, mas também do que chamamos de “personalidade”, a deixamos “apagar-se” em favor do êxtase orgânico no contato com essa realidade externa que é a outra pessoa. A personalidade perde um de seus fundamentos num momento como esse.
Com exceção do momento de êxtase orgânico no sexo — e de possíveis situações similares mas sem o mesmo sentimento que compreendemos como “prazer” —, a alienação natural do ser humano em relação a tudo ao seu redor está sempre e constantemente presente, definindo-nos como seres humanos (como Flusser teve a coragem de assumir, em todo o sentido materialista disto, contra o idealismo pseudomaterialista dos marxistas, aliás — com a possível exceção, esta sim sinceramente antiidealista, de Wilhelm Reich, se é que o podemos considerar efetivamente “marxista”). E é uma alienação que atinge nossos contatos uns com os outros.
Entretanto esta alienação especificamente — a alienação em relação aos outros seres humanos — tem a possibilidade de ser contrabalanceada pelo nosso elevadíssimo poder de intercomunicação. Esse poder de intercomunicação está ligado ao que os neurólogos chamam de ToM, Theorization of Minds, e essa ToM é a nossa capacidade de mentalizar o que se passa na mente do outro — entendendo por “mente”, aqui, o conjunto de tudo o que a pessoa pensa, sente etc., incluindo o que é de sua personalidade. Essa mentalização, ou imagem mental que fazemos do que há na mente do outro, pode se aproximar ou se afastar da realidade, isto é, pode realmente nos intercomunicar, ou nos alienar em uma imagem falsa do outro, dependendo do grau de interferência da nossa alienação natural.
Considerando tudo isto, o sexo e, como já disse, e possivelmente certas situações de tortura física e de proximidade consciente e fisicamente torturante da morte, são os nossos únicos pontos de contato real com o que nos é outro no plano material — ou melhor, os únicos pontos de contato capazes, inclusive por sua sua intensidade, de superar (ou pelo menos contrabalancear) a nossa alienação natural em relação ao mundo material em que vivemos.
A diferença entre o sexo e os casos mencionados de tortura física e proximidade fisicamente torturante e consciente da morte, está à primeira vista no quesito prazer. Mas isto pode nos enganar. A capacidade humana (e diria mesmo mamífera em geral) de encontrar traços de prazer no sofrimento e na dor, e mesmo na expectativa de uma morte terrivelmente dolorosa, não pode de modo algum ser subestimada, por mais que tenhamos a tendência de considerá-la “doentia”. Essa possibilidade é um fato — facilmente atestável aliás, graças às facilidades da Internet. Nossa ToM felizmente nos permite visualizar isso pela imaginação, mas havendo dificuldade de acreditar no nível que pode atingir o que chamamos de “masoquismo”, a Internet está aí.
Na verdade parece bastante natural que o cérebro, em desespero diante da tortura e da morte iminente e dolorosa, cumprindo sua função natural de manter o equilíbrio mental necessário às condições básicas de sobrevida, transforme parte do medo e da dor em prazer: isto aliás ajuda a compreender um pouco da função orgânica dessa alienação humana, e por que ela acompanha em alto nível esse estranho animal dotado de um grau comparativamente bastante elevado (em relação a outros animais) dessa coisa chamada “consciência”.
Passei um dia por uma experiência chocante nesse sentido: estava na cozinha, preparando um prato que adoro: hambúrgueres. Tinha à disposição uma trituradora elétrica, e minha ideia era moer a carne nela. Por alguma razão, talvez pela potência violenta da máquina, senti algo inusitado e terrível… senti que aquilo era carne arrancada de um corpo, e não “comida”, que aquela carne tinha sido arrancada de um animal, que para isso foi morto.
Senti o que pode ter sido a sensação do pobre animal no momento da morte, provavelmente sem consciência do que estava acontecendo, uma súbita sensação de “nada mais”, ou melhor, uma sensação de cessar de sensações, e depois, nada. Senti a presença (ou melhor, a chocante ausência) do bicho ali, naquela carne, que era já um pedaço dele, arrancado e morto… agora brutalmente triturado, se é que se pode falar em “brutalidade” diante do que já está morto. Senti o quanto sou um animal carnívoro, um predador indireto, e com um requinte de crueldade absurdo no matar, mesmo não tendo matado diretamente o bicho, e inclusive até mais por essa razão… pela minha indiferença em relação a esse assassinato, triturando agora a carne da vítima, depois de pagar por ela nun açougue em que um açougueiro me sorria com a discreta presença do sangue em todo o ambiente, no avental, no facão… e eu agora triturando a carne da vítima para !@#$%^&*á-la numa chapa em óleo fervente, e depois cravar os dentes nela, e me deliciar saboreando-a, sadicamente.
Até que ponto suportamos em nós mesmos esse sadismo? Uma vez conscientes disso, às vezes somos fortes, e a força, neste caso, acaba equivalendo ao sadismo. E às vezes, na imensa maioria das vezes, me parece, somos fracos. Naquele momento, não suportei. E senti também a importância da alienação humana em relação ao mundo material. Um leão — ou um lobo — não precisaria dela, porque não tem esse nível de capacidade de consciência em relação às vítimas de que se alimenta. Nunca antes compreendi tão bem o sentimento de certos vegetarianos. Não pude comer aquela carne, foi impossível.
E agora sou… carnívoro, como sempre fui, e continuo adorando hambúrgueres. Porque compreendi como é possível utilizar a nossa alienação, e fazer uso dela para direcionarmos nossos empenhos, nossas lutas de vida, para aquilo que escolhemos como o mais relevante para nós, aquilo que julgamos que realmente merece mais a nossa desalienação, a nossa consciência. Porque essa consciência pode se expandir em tantas direções, que tornaria a vida humanamente impossível. Teria como única solução viável o suicídio. Assim, compreendo os vegetarianos, mas não escolhi essa luta. Sou carnívoro, e voraz. E com o risco de deixar essas pessoas chocadas, digo ainda que o prazer carnívoro, na culinária, é um dos muitos que me dão força para viver — e me empenhar em outra lutas, aquelas que escolhi.
E esta é, finalmente, a razão por que há diferença entre o sexo e a tortura ou a sensação física e torturante da proximidade da morte. Embora o prazer possa ser (e tenda a ser, em alguma medida) captado ou criado pelo cérebro também na tortura ou a sensação física e torturante da proximidade da morte, aqui a sensação consciente não deixa de nos aparecer como a consciência de uma prefiguração da morte. Aqui, a vida só se intensifica (por exemplo buscado o prazer) como uma forma de fuga diante dessa prefiguração da morte, em si mesma inaceitável. Quando há pura e simples aceitação da morte, essa intensificação da vida que aproxima tais situações daquilo que vivenciamos no sexo, desaparece.
A diferença portanto é essa: na tortura e dor de proximidade da morte, há fuga em relação a essa morte. Uma atitude de negação (alienação) em relação a esse fato, o fato soberano de todos os fatos. A realidade suprema e inultrapassável. O fim, o limite, o contorno final da realidade do vivo. Aquela realidade absoluta da qual a a própria alienação, paradoxalmente, é uma pálida imitação. A morte é ao mesmo tempo a mais completa e absoluta realidade para um ser vivo, e a mais completa e absoluta alienação.
E no caso do sexo há o contrário: há direta exaltação, afirmação da vida. O que significa desalienação em relação ao que nos é outro — desalienação que apenas atinge momentos, no cume do êxtase, de alienação por outro lado em relação a nós mesmos, mas ainda esta é uma alienação em relação à nossa própria alienação constitutiva como seres humanos e como pessoas. Isto é, continua sendo uma desalienação. Um mergulho na nossa organicidade.
O sexo, portanto, não é tudo no mundo. É apenas o mais direto e intenso contato que podemos realmente ter com o mundo enquanto seres materiais e viventes. Nada mais (e nada menos) que isso.
Mas existe aí algo mais a considerar, sim: o sexo se realiza mais completamente nesse sentido enquanto atividade compartilhada (com outra pessoa) — e não entre uma parte do corpo (por exemplo as mãos ou as pontas dos dedos) e outra do mesmo corpo, diretamente ou indiretamente através do uso de “coisas”, objetos etc. Pode se realizar também entre duas pessoas que (alienando-se em relação ao fato de estar com uma outra pessoa) se consideram como “coisas”, como “objetos” de prazer. Trata-se meramente de uma versão mais elaborada do que chamamos de “masturbação”. Ainda não está presente aí todo o potencial vitalizador do sexo… (embora possa ser algo muito gostoso). Se há ao menos o prazer da descoberta parcial de uma pessoa desconhecida, nesse sexo, a coisa já muda de figura. É menos masturbatória e menos incompleta no sentido do que estou tentando exprimir aqui.
O sexo é — ou tem o potencial de ser — uma experiência muito, muito especial. E faz muito sentido que não se queira compartilhá-lo com qualquer um. Pois significa abrir mão de todo esse potencial por algo que, para quem tem a mínima consciência ou mesmo intuição desse potencial, será necessariamente insuficiente e insatisfatório, acompanhado de uma vaga sensação de “vazio” ou de “insignificância”. Não que haja alguma coisa de errado no sexo masturbatório, ou que não seja gostoso também. Apenas não é… o que poderia ser, em termos de prazer e de vivência, não é toda a experiência que poderia ser.
Mas temos outros meios de atingir esses momentos de desalienação, de “mergulho” na nossa própria organicidade viva e de mergulho na materialidade do mundo ao nosso redor. Não são meios tão intensos, seguramente. São meios mais tranquilos, mas o prazer e a vivência (a vitalização mesmo) que eles proporcionam, podem ser cultivados para perdurarem por mais tempo. Um deles é o prazer culinário, da degustação.
Os jogos e brincadeiras às vezes podem proporcionar isso também. Devidamente direcionados para isso, podem ser meios de desalienação (em relação ao mundo material). Assim direcionados, se tornam — do mesmo modo como o prazer culinário da degustação sempre é — meios que podemos chamar de estéticos — do grego aisthésis : percepção, sensação.
Estão ligados fundamentalmente ao que chamamos de arte.
8 de Junho de 2013