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    O Blog Quemdisse visa uma postagem inicial mais ágil, descompromissada e espontânea sobre meus pensamentos e assuntos de momento, para um powterior exame mais aprofundado na “euciclopédia” ProjetoQuem (enciclopédia filosófica e interdisciplinar online, de vocação crítica e social, informativa mas com posicionamentos).

Tirando os pingos dos is: para Paulo Betti

Por João Borba  05 de setembro de 2006 – artigo 18, vol. 1
(originalmente publicado em www.eleicao.info)

rosto triste meio pintadoQual o assunto deste artigo?

Este é um artigo escrito em um processo que estou de reavaliação de alguns pontos do que tenho dito em outros artigos, um processo de autocrítica e em larga medida, por uma questão de justiça e equilíbrio moral, até mesmo de retratação, por exemplo no que diz respeito às esquerdas partidárias em geral, às direitas, e aos partidos pequenos — porque há em meus artigos, conforme percebi relendo-os, algumas sérias desatenções e avaliações precipitadas, que precisam mesmo de uma revisão. Neste artigo, especificamente, não farei minha correção em relação aos partidos ainda. Por uma questão de coerência com a ordem natural de minhas prioridades, vou dedicar-me primeiro às correções que julgo necessárias em relação a pessoas, e deixar as instituições para um segundo momento.

O assunto mais central e importante que na verdade pretendo inaugurar aqui, através dessas correções (e por enquanto ainda bem indiretamente), é o que significa política, e suas relações com o que eu chamaria de uma nova configuração da esfera pública, cujo nascimento estamos vivenciando no Brasil como em todo o mundo.

Pretendia começá-lo com um texto que ainda estou preparando, intitulado Esquerda, direita: o violino do poder, que pretende ser mais um artigo de demarcação de territórios e posicionamentos em política, como o artigo Esquerda, direita, onde você lava suas mãos? (escrito com base em uma frase do ator Paulo Betti), porém desta vez de modo um pouco mais equilibrado e objetivo.

 

Um pedido pessoal de desculpas

Só que antes de mergulhar de cabeça no assunto central, pareceu-me mais importante, por razões éticas e humanas, em primeiro lugar fazer algo que meu “demônio interior” está me cobrando insistentemente — para mencionar aquela entidade mágica, em grego “daimon” ou “daimonion”, que era uma espécie de “grilo falante” ou “voz da consciência” com quem Sócrates dizia se aconselhar de vez em quando, em sua busca do Bem.  É que em meu artigo Esquerda, direita: onde você lava as mãos?, tive a infelicidade de participar do que o ator Paulo Betti chamou, com toda razão (na pág. A3 da Folha de São Paulo de 5 de setembro, no artigo Ética da hipocrisia) de seu “linchamento moral” pela mídia.

Há duas atitudes possíveis diante de sua resposta: podemos querer ver nela uma espécie de eco das reclamações que já ouvimos antes repetidamente de José Dirceu, e coisa e tal, e bla blá blá, enfim, estimulando ainda mais o “linchamento” até torná-lo uma realidade mesmo para o caso do argumento de Dirceu (e uma boa arma política para os que visassem lá na frente algo como um perdão do ex-ministro pelo público), ou então podemos pura e simplesmente, democrática e eticamente, ouvir o que o cidadão, o ator, o partidário do PT, e que até onde sei não é um político oficial (e menos ainda um com sei lá quanta experiência de campanha sendo o alvo central das atenções), está realmente dizendo.

Ouvindo primeiramente meu daimon, gostaria de começar fazendo algo que acho que todas as vozes na mídia deveriam se habituar a fazer, por uma questão de decência: reconhecer franca e firmemente os deslizes morais (para não dizer verdadeiros tombos) acaso cometidos em relação a indivíduos nominal e pessoalmente citados, e — porque é disto que estou falando — pedir desculpas ao ator Paulo Betti pelos excessos ao colocá-lo “no centro do circo” da questões políticas. Meu caro, peço-lhe desculpas pública, direta e pessoalmente, me desculpe por ter de certo modo “surfado” maldosa e constrangedoramente na “onda” de histeria geral em torno do seu nome. Foi uma grosseria e uma estupidez. Peço-lhe desculpas inclusive por esse tom talvez excessivamente pessoal, que pode talvez parecer abusivo, já que não nos conhecemos. Errei — já é a segunda vez que me sinto na necessidade de assumir publicamente, constrangido, um erro em meus artigos. Infelizmente é possível que não seja a última, por que sou humano, e impulsivo… às vezes pisamos mesmo no sabonete, faz parte da vida, mas no fundo, de algum modo, estamos todos na mesma grande banheira, e isso gera situações constrangedoras, como já dizia Hobbes (os cidadãos são como átomos movendo-se em um espaço restrito, os atritos não inevitáveis, etc…).

Em outras palavras, trata-se de encerrar de uma vez o assunto Paulo Betti e irmos ao que realmente interessa, pois sabemos todos muito bem que o assunto não é e nunca foi ele, e que suas colocações não pretendiam receber o caráter e a extensão que receberam. Trata-se de política, e é preciso arranjar um meio de praticá-la sem pormos em risco a integridade pessoal dos envolvidos e sem devassarmos e lançarmos publicamente aos leões — pelos precedentes perigosos que essa espécie de “circo romano” da mídia abre — o próprio espaço da vida  privada de que dispomos para respirar em nosso próprio ritmo e ensaiarmos livremente a nossa vida pública quando não estamos ainda nos lançando nela.

 

Sócrates, o circo e os leões
(ou a vida privada e certas privadas da vida)

Já que mencionei o demônio interior de Sócrates, essa entidade que ele valorizou talvez mais do que o gosto público da época permitiria, e que foi uma das coisas lançadas contra ele quando enfrentou a sanha da multidão em um julgamento injusto, acabando por ser condenado à morte numa das passagens mais assustadoras da democracia direta de Atenas (que como se vê, estava longe de ser perfeita), permitam-me então fazer uma alusão àquela peneira pendurada no teto onde nosso mestre Sócrates, o sátiro de Atenas, costumava sentar-se para ficar mais perto do deus Sol, de modo que ao entrar em sua casa, dávamos de cara primeiro com essa parte nobre de seu corpo que estava ali, espremida contra os furinhos da peneira sob o seu peso, peneirando-se… — Pera lá, meu chapa! Como assim “peneira”? Que peneira? Que raio de peneira é essa?

Pois é… Sócrates não se sentava em uma peneira. Mas a grande mídia da época — que era o teatro — construiu o boato, através de um dramaturgo cômico ligado à aristocracia que se chamava Aristófanes, que escreveu sobre Sócrates (ou melhor, contra Sócrates, ridicularizando-o) uma boa comédia chamada As nuvens. Aliás, nem mesmo era exatamente uma peneira. Mas sabem como é, quem conta um conto aumenta um ponto… e os tradutores (ao meu ver com acerto) acharam que a idéia de “peneira” traduzia bem o espírito cômico da coisa. Vamos então “peneirar” melhor as coisas e deixar o pobre Sócrates de lado um pouquinho, porque não é bem dele que estamos falando.

O fato é que a própria ocorrência desse “circo” em torno de uma pessoa considerada individualmente — como a de tantos outros “circos” similares promovidos pela mídia na cidade antiga de Atenas e, nos dias de hoje, no Brasil e no mundo — demonstra, ao lado de outras inúmeras e grandes evidências que eu colheria por exemplo na TV e na Internet, algo que não tem sido devidamente observado pelos nossos intelectuais, no que diz respeito às relações atuais entre a esfera pública e a esfera da vida privada: que a privatização da esfera pública, de que tanto se tem falado com muito receio (e pessimismo em relação às propostas de participação popular mais direta na política), tem sido intensa e crescentemente acompanhada, para o bem e para o mal, por uma intensíssima publicização da esfera privada.

É verdade, sim, que a vida privada tornou-se historicamente o forte espaço que é justamente devido à estruturação do Estado moderno e à retirada das mãos da população daquilo que era decisão sua quanto às questões públicas. Com ela nasceram e cresceram os partidos e as grandes estruturas governamentais, e a enorme alienação dos cidadãos em relação à política que vivenciamos hoje em todo o mundo. Mas é preciso prestar atenção também ao que pesa positivamente nessa balança antes de pretendermos eliminar a esfera privada e retornar àquela condição de cidade pequena dos tempos da democracia direta, em que todos devassavam livremente a vida íntima de todos e, nessa medida, o mexerico geral fazia parte do perfil das atividades políticas como algo dominante. Minhas desculpas, portanto, para além de toda ironia socrática que sem dúvida não deixa de estar presente neste texto, são sinceras — pelo menos pretendem sê-lo, tanto quanto é possível em vista do fato de não sermos telepatas e a transparência absoluta ser algo impossível —  e são inclusive politicamente fundamentadas.

 

O teorema da escova de dentes

A vida privada — o direito a não termos as nossas opiniões lançadas no meio da rua aos olhos de todos quando ainda mal acordamos e estamos, por assim dizer, com as calças na mão e a escova de dentes enfiada na boca — é uma conquista histórica a que temos o direito e que devemos lutar para preservar, pelo menos enquanto não tivermos no mundo uma alternativa realmente consistente capaz de integrar a vida privada com a vida pública sem perdermos uma coisa ou a outra.

Se por acaso, num momento de descuido, alguém esquece de tirar a escova da boca quando sai à rua, não é por isso que devemos sair por aí espalhando ao sete ventos que o sujeito está fazendo fazendo um protesto em favor da elegância, chamando todos de bocas-sujas, ou qualquer coisa assim! Nem tudo o que se diz privadamente, ou mesmo o que de nitidamente privado se deixa escapar em espaço público, é necessariamente o manifesto de uma tomada de posição no campo das lutas políticas. Mas por outro lado, frequentemente é.

E ainda mais frequentemente — diria que aliás no mais importante e mais democrático dos casos — é mais ou menos, ou seja: a pessoa tem sim seus posicionamentos, “deixa-os escapar” publicamente um pouco porque quer realmente exprimi-los, mas ao mesmo tempo sem pretender que atinjam muito impactantemente a esfera pública, a não ser “de leve”, como quem se coloca no espaço do diálogo, como quem diz “olha, gente, é mais o menos nessa direção que tenho pensado, é mais ou menos isso o qur tenho pretendido defender, o que me dizem? Será que é por aí? Vamos dialogar…” — e portanto, em vista de todas essas possibilidades, o mais correto e sensato a fazer em todos os casos é ouvir a pessoa cuidadosamente antes de sair “enquadrando-a” taxativamente neste ou naquele tipo de posicionamento, ouvir o que a pessoa disse no contexto em que ela o disse e por assim dizer no tom de voz com que ela efetivamente o disse  (ainda que o tenha dito por escrito, por exemplo).

A frase de Paulo Betti foi alardeada pela mídia — e não me excluo do erro, para não dizer da sacanagem geral — não apenas fora de contexto mas também fora de tom, como se tivesse sido dita, por assim dizer, calculadamente, cinicamente e como quem esbraveja uma tomada de posição antiética chacoalhando uma bandeira… não me parece ter sido exatamente o caso, ainda que houvesse mesmo uma bandeira flamulando por detrás dela, inclusive porque certamente não era absolutamente e de maneira nenhuma a bandeira da bandalheira antiética, e sim a de um partido que tem sua legitimidade como todos os outros, que tem uma história no país, uma história de lutas importantes, e que pelo menos em seu discurso, procura sanear-se dessa bandalheira — em que sabemos perfeitamente bem que não é o único partido que esteve metido.

Se o partido consegue ou não fazer essa limpeza em si mesmo, se já o conseguiu, se está conseguindo, se não está, isso tudo faz parte da discussão e não pode ser ignorado, por mais que doa ao coração dos petistas. O que o Paulo Betti fez foi — como aliás todos nós que nos interessamos pelas questões políticas e morais e não nos sentimos completamente alheios a elas — lançar uma posição nessa discussão, para o diálogo. E se sou muito mais stirneriano do que kantiano, devo ao menos reconhecer que há algo muito importante na observação de Kant de que um sujeito (uma pessoa, viva e ativa) não deveria jamais ser tratada como objeto de uso, por exemplo usando suas colocações de maneira a distorcê-las completamente como mero pretexto para a exposição de nossas próprias ideias ou a provocação estimulando posicionamentos a nosso favor… tais práticas, comuns na política de todos os tempos, na verdade estão entre as que gostaria de ver extirpadas. E por isso mesmo acho que devo reconhecer também algo de questionável na tendência de Max Stirner, que em tantas outras coisas é para mim uma referência, de promover (porque ele o fazia, assim como Marx) esse tipo de coisa.

Lastimavelmente, reconheço que fiz isso em relação à já famosa frase do ator. Há situações em que o esquecimento pode ser uma virtude, e acho que é o momento de deixarmos de lado de uma vez essa coisa de onde o político lava as mãos, afinal.

 

De volta à questão da peneira

Mas as coisas devem ser sempre examinadas com os dois olhos bem abertos. Aprendi com Proudhon a desconfiar de possível “caolhice” quando captamos das coisas apenas o lado “bom” ou apenas o lado “ruim”, e isto significa que todo esquecimento deveria funcionar como uma peneira, selecionando aquilo que realmente interessa à reflexão, e deixando de lado só aquilo que deve  mesmo ser deixado de lado.

Foi aliás com base em uma teoria econômico-moral conectada a essa idéia — a teoria da “contabilidade moral” — que ele formulou pela primeira vez na história, explicitamente e com todas as letras (antes de Marx) a idéia de um “socialismo científico”, que deveria fazer “a contabilidade e o balanço” dos bens e dos males presentes em cada situação política, em relação aos valores nos quais pretendemos fundamentá-la, de modo que não fazia sentido para Proudhon pensar em uma situação que fosse puramente “boa”, à maneira dos utópicos, ou puramente “má”, assim como não faz sentido em contabilidade pensar no crédito sem o débito ou vice-versa.

Isto não significa pegar no pé do Paulo Betti e insistir na questão. Nada disso: o que estou pedindo é que deixemos deixemos em paz pelo amor de deus (permitam-me a força de expressão, uma vez que sou ateu) o Paulo Betti, e nos dediquemos ao que é realmente político na questão, que não é realmente o fato de ter soltado um palavrão ou de defender a corrupção (porque declaradamente não é o que pretende estar defendendo). Consideremos então realmente suas posições como cidadão, se for o caso, mas neste caso, ouvindo-o.

 

De volta à escova de dentes

Voltemos, então, a falar do nosso personagem fictício da escova de dentes. digamos que ele estivesse na verdade, em função de circunstâncias sei lá quais de sua vida particular, sentindo-se de algum modo oprimido por uma vida demasiado “certinha” e rigidamente regulada em que é obrigado a ser sempre todo sorrisos e elegância; e digamos que ele detectasse nisto uma espécie de opressão que — pela via do controle social e de pequenas pressões moralistas diárias vindo de todas as direções — estaria afetando não só a si mesmo mas a muita gente ao seu redor, e então, num pequeno gesto de rebeldia semiconsciente, saísse com a escova de dentes na boca e o queixo lambuzado de pasta de dente… seria um gesto político?

Sim, seria, entre outras coisas porque ele já não está apenas manifestando um interesse pessoal, mas pretendendo representar (ou re-apresentar na esfera pública com certas características) algo que o ultrapassa e ultrapassa seus interesses privados. Mas aquele nosso mesmo alarde como se ele estivesse fazendo campanha contra a deselegância seria patentemente falso, seria, de nossa parte, uma difamação de suas posições. E de certo modo, continuaria sendo uma distorção daquilo que ele quis exprimir mesmo que alardeássemos a coisa no sentido certo, porque talvez ele estivesse apenas pretendendo “checar reações e respostas”, por assim dizer, para assentar melhor — e se necessário corrigir — suas posições e o modo como as pretende exprimir, já que esse modo de expressão inevitavelmente interfere também nas posições que tomamos.

Acrescente-se a isto que as ações políticas não são, então, necessariamente “comunicativas” (para mencionar um tanto tortuosamente uma expressão de Habermas), no sentido de determinarem claramente uma única e exclusiva linha de interpretação, que se comunica por assim dizer sem ruído… e talvez nem devam ser — na verdade eu diria que esta multiplicidade de interpretações possíveis é justamente um dos aspectos mais importantes e democraticamente interessantes da ação política em geral.

Quando não damos tempo para que uma manifestação política se assente assumindo a cara que ela realmente tem, e ao invés disso calcamos sobre ela uma interpretação qualquer como se fosse um fato consumado, estamos eliminando as condições que essa manifestação teria de realmente politizar-se, no sentido de entrar pra valer no diálogo que caracteriza a esfera política democrática, porque estamos podando a multiplicidade de sentidos que ela pode ter e também as suas sutilezas expressivas, e com isso a possibilidade de entrar nesse diálogo por exemplo com meios-tons de intensidade, checando a si mesma no contraste com outras vozes antes de assumir o seu tom mais firme, e também de entrar nesse diálogo fazendo os necessários entendimentos diplomáticos com opiniões divergentes mas de algum modo conciliáveis.

A esperança de uma política mais efetivamente aberta às diferenças — a minha esperança nesse sentido, pelo menos, como intelectual e cidadão — repousa precisamente, entre outras coisas, no modelo que nos oferece uma certa virtude diplomática que existe, intrinsecamente, nos gestos e ações teatrais, simbólicos, carregados de múltipla interpretação (como em toda obra de arte). Pois uma ação política de duplo ou triplo sentido pode contemplar, de um só golpe e concentradamente, dois ou três sentidos diferentes que uma ação isolada poderia ter, e isto significa contemplar dois ou três valores divergentes ao mesmo tempo, em uma só ação carregada dessa duplicidade ou triplicidade… além de trazer para as ações políticas — pelo menos quando essa duplicidade ou triplicidade é bem realizada e não descamba em puro cinismo ou falsidade de candidatos cara-de-pau — uma certa elegância que, cá entre nós, não cai nada mal. E com este comentário encerro o teorema da escova de dentes.

 

Cuidemos bem do vaso sanitário, porque ele é de todos nós…

Se estamos interessados — e eu pelo menos estou — justamente na participação política de pessoas comuns, que todos possam sentar-se na peneira quando bem entenderem sem que ninguém lhes cutuque o traseiro com  um garfo afiado na hora “H”, se estamos de fato interessados na ação de cidadãos que se manifestam politicamente, e em dar espaço a esses cidadãos, precisamos ter em mente com toda clareza a necessidade absoluta de termos dois pesos e duas medidas, e reconhecermos que não estaremos sempre falando de hábeis políticos oficiais perfeitamente acostumados a isto, que já estão com os traseiros razoavelmente anestesiados, e não vão sair da peneira só porque os cutucamos pedindo algum espaço nesse ponto “de maior visibilidade” da casa. Estes, os políticos oficiais, vão manobras a garfada aos gritos para potencializarem a peneira, ou seja, para conseguirem com isso mais visibilidade ainda.

O que quero dizer é que é absolutamente fundamental que aprendamos a permitir às pessoas — digo, aos cidadãos em geral — não só o acesso a condições de tornarem suas vozes audíveis e suas posições publicamente visíveis (como por exemplo através de uma política de inclusão digital que considere isso seriamente como uma via de participação política também), mas também uma margem de experimentação nesse sentido, sempre que se manifestam e expõem publicamente suas opiniões, porque o teatro da ação política é um jogo bem mais duro e complexo, no que diz respeito a “coxias”, “camarins” e “bocas-de-cena” (que nele existem em muitos diferentes graus e ângulos de exposição), do que o teatro da vida privada ou até mesmo o teatro artístico, aos quais estamos mais bem habituados.

Como se não bastasse, o jogo teatral da política é ainda bem mais complexo em relação ao jogo de contracena entre os atores envolvidos, porque não estão todos “no mesmo elenco”, nem encenando “a mesma peça”, e nem tampouco dividindo pacificamente o mesmo público, e tudo isso ocorre ao mesmo tempo, às vezes em espaços cênicos independentes, um grupo político de um lado, outro de outro, atuando para públicos diferentes, mas muito frequentemente no mesmo espaço cênico ou em espaços cênicos que se entrecruzam e interpenetram, para públicos que dividem a atenção entre esses elencos concorrentes.

Em outras palavras, é um jogo duro e difícil para o cidadão comum, como eu, como o Betti, como quase todos nós, mesmo o mais politizado, e torna-se ainda mais difícil quando tem de lidar com a sanha da mídia. Ser por acaso um cidadão habilidoso nas artes teatrais não facilita muito as coisas na prática, porque apesar das similaridades, política é algo que se aprende com uma experiência muito diferente daquela dos palcos, como se vê.

Para um ator — e estou pensando aqui em meus próprios tempos de ator amador — atuar politicamente fora dos palcos significaria experimentar duas experiências diferentes que se complementam, e não uma simples extensão da experiência como ator (do mesmo modo como um político oficial também não teria necessariamente, só por essa sua experiência política, a mesma malícia e sagacidade necessária a um ator quando está no palco). Conhecer por dentro as artes teatrais e como são praticadas talvez facilite, por analogia, a compreensão de alguns aspectos fundamentais da engrenagem desse moedor de carne que é a política, mas uma coisa não se confunde com a outra.

É necessário, em outras palavras, que guardemos nossas “pauladas” críticas apenas para os hábeis e experientes políticos oficiais — esses sim, não têm desculpa, pois sabem ou já deveriam saber muito bem como atuar nessas circunstâncias, e existe até mesmo um nome para os mais habilidosos nesse sentido, quando estão no mais alto cargo do poder executivo: são chamados de estadistas. Quanto aos cidadãos, mesmo os mais famosos, que a muito custo conseguem lidar com a sanha e o poder massacrante das instituições que dominam a mídia, me parece mais democrático sempre, em primeiro lugar e acima de tudo, ouvir.

 

Como ouvir o cidadão que está sentado na peneira
com uma escova de dentes enfiada na boca

Ouvir efetivamente uma pessoa, e isto vale para qualquer circunstância da vida, mas especialmente o caso de ouvirmos um cidadão em seus posicionamentos políticos, significa ouvi-lo inclusive dando-lhe o tempo de corrigir-se, se for o caso, ou de reafirmar o que disse no mesmo tom ou em outro tom, até assentar devidamente suas posições — caso contrário, não estaremos realmente falando dessa pessoa, não a estaremos realmente ouvindo quando supostamente respondemos a ela, mas apenas difamando-a, mesmo que façamos isso sem querer, e o que é o mais grave, não estaremos permitindo à pessoa o tempo da reflexão e da ponderação de tudo o que está real e relevantemente envolvido na questão.

Corrijam-me se estou errado, mas creio que alguma dose de impulsividade na colocação pública das opiniões — e como parte de minhas desculpas quanto a isso diria que mesmo o direito ao erro, desde que devidamente corrigido até o assentamento das verdadeiras posições em jogo — é algo normal em regime democrático, e é o que mantém o diálogo quente e garante às pessoas a condição de tomar posições com maior sinceridade ou pelo menos com maior autenticidade, resguardando o espaço de manifestação das diferenças de opinião, em oposição ao morno princípio de tolerância caracteristicamente liberal.

Por isso advogo que deveríamos atentar mais ao diálogo autêntico e, como contrapeso, ao esforço diplomático de entendimento mútuo em nossas diferenças, do que à tolerância, que deve ser considerada apenas em baixa dosagem, como um instrumento para facilitar essas coisas. O que estou dizendo é que, curiosamente, a noção de “tolerância”, em que se tolera, se suporta, se deixa ocorrer sem reagir ou sem deixar que nos cause qualquer efeito as posições do outro (ou seja, em que se ignora em certa medida o outro), não é a única nem é a melhor maneira pela qual podemos e devemos combater a intolerância, e pode ser inclusive substituída com grande beneficio pelo esforço de compreensão — que é algo bem diferente da pura e simples concordância.

 

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