Por João Borba – 19 de agosto de 2013 – artigo 7, vol 2
principais autores e conceitos tratados neste artigo: Flusser, Castoriadis, Paulo Freire (via Tom Zé), Marx, Proudhon, Sorel, Maquiavel, Bakunin, Sócrates; alienação, distanciamento crítico, consciência política, demagogia, senso crítico, liberdade, hospedagem do opressor, indiferença, luta de classes, justiça, dignidade humana, mito político, razão coletiva, força coletiva, antiintelectualismo, república pedagógica
Como assim, “ultrapassando a consciência política”?
Não vou falar aqui sobre o polêmico (e quase perfeito) esclarecimento de Flusser a respeito de uma necessária dose de alienação (ou em outros termos distanciamento crítico) inscrita na própria medula do que é necessário a uma boa reflexão em qualquer área — incluindo a política… como já nos mostra muito bem aliás Maquiavel, que no entanto não utilizou para isso este termo tão polêmico, “alienação”. Também não vou falar diretamente, neste artigo, sobre as passeatas e protestos dos jovens, mas sobre certos vícios intelectuais e axiológicos (o que quer dizer no campo dos valores) que são dominantes na história do pensamento de esquerda no Brasil, dos quais é preciso verificar com atenção em que medida essa novíssima esquerda jovem pode conseguir se desvencilhar.
Claro, para procurarmos nos desvencilhar de um vício é preciso primeiro que o detectemos e o reconheçamos em nós mesmos, nas nossas atitudes, sentimentos e ideias. Talvez a mobilização desses jovens tenha tido a sorte de nascer já desvencilhada, pelo menos em alguma medida, dessas coisas grudentas e um tanto sórdidas que vou apresentar aqui, e das quais minha geração (a dos quarentões e cinquentões) não consegue escapar muito bem. Talvez, talvez, talvez…vejamos.
O que vou defender neste artigo, talvez de maneira não tão brilhantemente polêmica quanto Flusser na questão da alienação — mas espero que igualmente esclarecedora — é que existe um conceito político das esquerdas que precisa ser ultrapassado: o conceito de “conscientização”. Mas por quê? Por quê? Por quê?
Propor essa ultrapassagem parece a princípio absurdo. O caso de Flusser ao menos é compreensível. Porque reenquadramento flusseriano do distanciamento crítico como marcado por uma necessária dose de alienação como elemento componente desse distanciamento crítico é algo pelo menos conceitualmente inteligível, quando descrevemos a atitude psicológica envolvida… trata-se basicamente de tomar distância para poder avaliar melhor, e podemos entender esse “tomar distância” como marcado por alguma pequena dose de alienação, de modo que seria necessário alienar-se (distanciar-se) um pouco das coisas para poder compreendê-las mais e melhor.
Além disso, por outro lado o conceito de alienação pode ser retomado em seu sentido originalmente pejorativo e escapar à provocação polêmica flusseriana se adotarmos a sua redefinição feita por Castoriadis. Ele mesmo, aliás (Castoriadis) na verdade está mais próximo de Flusser em política do que pode parecer à primeira vista… A começar porque o próprio Flusser coloca como contrapeso a essa sua provocação (essa sua valorização de uma certa dose de alienação) o valor do “politizar-se”, que é exatamente o oposto de um distanciamento: é inseri-se no contexto, relacionar-se, envolver-se. E Flusser valoriza isso mostrando que não é algo incompatível com sua valorização polêmica de uma certa dose de alienação: o que Flusser diz é que é preciso um pouco de alienação, de distanciamento crítico, para compreender melhor as coisas, e é preciso compreendê-las melhor para melhor politizar-se, para melhor retornar desse distanciamento para dentro do coração das coisas…
Pois é: e Castoriadis, por sua vez, define alienação como uma autonomização das instituições que produz na sociedade, como contrapartida, sua desautonomização das pessoas e sua dependência em relação a elas — o que o coloca afinal, politicamente, no mesmo campo de combate de Flusser: a saber, contra a tecnocracia (que está intimamente conectada ao poder sistêmico-funcional das instituições sobre as vidas humanas que delas dependem e que a elas estão presas).
Mas a conscientização política como algo a ser “ultrapassado”? Isto parece talvez coisa ainda mais difícil de engolir. Por que esse conceito deveria ser ultrapassado? Por quê?
Porque é um conceito que tende a contradizer a si mesmo. Oferece condições quase irresistíveis de sua própria negação no momento mesmo em que se realiza. E não estou falando de uma mera contradição lógica ou de definição… mas de uma contradição no próprio fato que esse esse conceito anuncia: a tal consciência política tal como ocorre nas mentes das pessoas, para além do simples conceito pelo qual a exprimimos.
Como assim? De que modo? Que contradição é essa?
É que a noção de “conscientização” envolve sempre a de que existe algo — algo dado já de saída, uma “realidade” — de que alguém está inconsciente e deve se conscientizar… ou ser conscientizado.
Isto implica a suposição de que um outro alguém já está consciente dessa realidade, podendo atuar como conscientizador ou então podendo julgar, avaliar, o grau de conscientização de uma pessoa que esteja em grau inferior de consciência em relação à tal suposta realidade.
Portanto, estão dadas aí as condições de que alguém, em posição mais “iluminada”, conduza os demais rumo a uma compreensão “mais realista” dos “fatos”. Estão dadas as condições de emergência de alguém à posição de condutor do povo, aquilo que em grego se chamava de demagogo — palavra cujo sentido mais profundo, em minha opinião, só parece ter sido captado em toda a sua extensão nas democracias atuais. O pensamento democrático atual percebe a expressão “demagogo” como pejorativa.
O que é um “demagogo”?
O “demagogo”, no repertório democrático atual, não é aquele que conscientiza nem mesmo aquele que visa os reais interesses do povo. Pelo contrário, é aquele que demonstra mais interesse em conduzir o povo, isto é, no poder e na influência que pode adquirir como liderança popular, do que no bem que sua liderança poderia (supostamente) realizar.
Deixando de lado a hipótese (da qual me aproximo bastante) de que todo e qualquer líder seja necessariamente, querendo ou não e pela sua própria condição de líder, um demagogo neste mau sentido (embora possa tentar lutar contra isso em si mesmo), há uma coisa que podemos dizer com clareza.
Podemos dizer com clareza que, de qualquer maneira, se alguém consegue colocar-se na condição de conscientizador diante de outros — que estariam em um nível mais baixo de consciência em relação a alguma realidade (por exemplo política) —, então a única coisa que nos garante que esse suposto conscientizador não seja na verdade um demagogo é justamente o fato de ele nos convencer de que está em um nível superior de consciência. Em um nível superior que nós ainda não atingimos.
Ou seja, a única coisa que nos garante que o suposto conscientizador não seja apenas um demagogo é… nada. Pois pensemos um pouco: será que um demagogo não poderia utilizar exata e precisamente o mesmo discurso de “conscientizador”, e com exatamente o mesmo poder de persuasão? — Claro que poderia.
Por isso proponho que, nas esquerdas políticas, ultrapassemos esse conceito de “conscientização”.
Em que direção deveríamos ultrapassar
o conceito de “conscientização política”?
Em que direção?
Em direção ao que deve estar no fundo dessa mesma consciência em cada pessoa se for mesmo uma consciência autêntica. Portanto, na direção de uma radicalização da coisa, de um mergulho até o seu fundo, até a sua raiz.
Estou falando daquela habilidade que produz, que gera em cada pessoa a sua conscientização, partindo de sua própria iniciativa. Daquela habilidade que gera conscientização sem que seja preciso alguém apontar alguma suposta “verdade” (dita “inquestionável”) “não captada” pela pessoa.
Estou falando do que se costuma chamar de senso crítico. A habilidade de uma pessoa de avaliar as coisas por si mesma, a partir de critérios seus (que podem ir se formando inclusive no próprio processo de avaliação crítica, pois não precisam ser necessariamente anteriores a ele).
Estou falando da habilidade de fazer o seu próprio levantamento dos prós e dos contras. E no caso de um posicionamento político, de fazer o levantamento de seus pontos de concordância e de discordância (sempre a partir de critérios refletidos) — de modo que essa pessoa possa com autonomia negociar suas interações com os que seguem esse posicionamento, ao invés de apenas segui-lo ou rechaçá-lo cegamente.
O senso crítico é a base de toda e qualquer autêntica consciência do que quer que seja. Sem ele, qualquer suposta consciência está sob o risco de ser ilusória, de ser inclusive uma enganação manipuladora.
Um “tapa de realidade”, o choque do contato com fatos ou situações que levam a pessoa para fora do seu habitual ou da sua zona de conforto… ou mesmo o desvio a princípio suave, mas sedutor e depois intenso, irresistível, para fora — digo por exemplo um desvio produzido por meio de experiências passionais (que não precisam ser necessariamente dolorosas, desde que conduzam para além do normal)… — tudo isso enfim: “tapa de realidade”, choque ou contato com fatos ou situações inabituais, arraste desviante e subversivo para fora da zona de conforto; todos esses meios (e outros) podem ser sim, neste caso, muito úteis como instrumentos de estímulo à emergência do senso crítico e do seu cultivo por parte das pessoas. Desde que sejam utilizados de maneira não-diretiva, sem conduzir a pessoa para uma direção específica além daquela da mera abertura para a possibilidade de reavaliar criticamente as coisas.
Mas é preciso notar, em primeiro lugar, que são sempre as confrontações e contradições, as experiências de limite, de dúvida, de momento de decisão entre alternativas, as que podem produzir esse senso crítico. É o que quero dizer com o alerta de que tais recusrsos devem ser utilizados de maneira “não-diretiva”. Portanto é preciso notar que, se estamos falando de estímulo ao senso crítico das pessoas, nada disto pode se confundir com aliciamento em qualquer que seja o sentido, caso contrário, a proposta estará corrompida pala raiz.
Trata-se de provocar a pessoa a pensar — e a pensar por si mesma, sem conclusões antecipadamente dadas, ainda que a gente possa no processo mostrar e oferecer a ela nossa posição, como uma oferta e um convite a uma pessoa livre, cuja decisão deve ser respeitada (mesmo porque, em política, a absoluta neutralidade é praticamente impossível, como se sabe). Se estamos na posição de provocadores do senso crítico, nossa posição pessoal só pode ser colocada como uma entre outras alternativas igualmente possíveis e igualmente válidas como opções para a pessoa provocada nesse sentido. A escolha cabe a ela, e não sua livre decisão, se efetivamente refletida com senso crítico, não pode ser desvalorizada como decisão “alienada”, “politicamente inconsciente” ou qualquer outra besteira manipuladora do gênero.
O conceito de “hospedagem do opressor”, e a brasileira
hospedagem da indiferença
Os habitantes desta nossa terra viveram uma história constante de opressão profunda por parte de suas lideranças políticas e econômicas, desde o início da colonização portuguesa até o raiar do século XXI.
Para mencionar um conceito de Paulo Freire que aprendi com uma deliciosa música de Tom Zé, podemos dizer que os brasileiros hospedaram em si mesmos esse opressor. (De passagem: essa música deliciosa do Tom Zé é uma em que um militante tenta seduzir para o sexo uma colega militante, usando para isso conceitos e argumentos políticos de esquerda). Pois bem: os brasileiros carregam essa atávica hospedagem do opressor em seus corações. Passaram a facilmente imitar o opressor diante de qualquer situação em que normalmente a ação opressiva se manifestaria: passaram a se oprimirem uns aos outros ou a si mesmos (ou melhor, passamos, nós) — sempre que surge uma situação em que a opressão tipicamente se manifestaria. A situação parece disparar na pessoa a necessidade de ver a opressão acontecer, e às vezes de tal modo, com tal intensidade passional, que faria a alegria ora dos sádicos ora dos masoquistas.
Precisamos aprender a detectar esse tipo de coisa em nós e a nos conter criticamente quando isso acontece, seduzindo e dirigindo nossos próprios impulsos para outros lados, de maneira que nossas reações inconscientes não sejam perniciosas. O melhor dos instrumentos para dar início a isso é o senso crítico (em relação a tudo, inclusive a nós mesmos), acompanhado sempre, e bem de perto, de uma boa dose de cultivo da sensibilidade e do nosso emocional — esse tipo de coisa que só se aprende na convivência afetiva com gente diferente de nós, e no contato com a arte, em todo o seu poder de sedução para o possível, o alternativo e, sobretudo, para o estranhamento (e estou falando aqui principalmente da arte contemporânea).
A maior barreira a vencer quanto a isso é a indiferença em relação aos outros — esse (des)sentimento habitual que herdamos de toda essa história de opressão, e que entre os nossos esquerdistas, afeta fortemente, sua leitura de dois referenciais filosóficos importantes, Marx e Maquiavel.
Essa herança cultural maldita dos séculos e séculos de opressão muitas vezes nos arrasta, esquerdistas, a ressaltarmos e colocarmos em primeiríssimo plano, no primeiro desses dois referenciais (Marx) algo que nele era um detalhe, e um detalhe que refletia o que ele tinha de pior. Nos leva também a uma leitura completamente equivocada do segundo desses referenciais (Maquiavel), com resultados igualmente perniciosos.
Fomos tratados por séculos como nada, com total indiferença por parte das forças econômicas e políticas dominante. Tratados como uma massa indiferente à disposição dos poderosos à direita, e mais tarde também dos influentes supostamente à esquerda, para manipulações e manobras interesseiras. Parece que nos acostumamos a isso, hospedamos em nós esse comportamento e passamos a utilizá-lo contra nós mesmos. Ou em sentido invertido, contra qualquer um que identifiquemos como não sendo um de nós, passando a tratar as pessoas como coisas, como ferramentas, meros “dutos”, meros “canais” para nossas ações — ou qualquer outro termo que pretendamos dar a isso.
E frequentemente fazemos o mesmo com os “nossos”, tratando-os também como ferramentas em nossas mãos… quando não o fazemos também inclusive em relação a nós mesmos, fazendo-nos (um tanto religiosamente, eu diria) instrumentos nas mãos de algum ideal ou “tarefa” maior, histórica por exemplo.
Crítica a um ponto fraco de Flusser
Flusser — por exemplo no seu livro Fenomenologia do brasileiro — criticava o peso da indiferença que sentia (com razão) na cultura brasileira.
Houve momentos em que curiosamente o ouvi, quando estava vivo, chegar a mencionar a nossa língua como talvez a melhor do mundo para a filosofia: português reestruturado desde a base (embora nem sempre tenhamos consciência disto) por uma maleabilidade tupi-guarani — devido à história da formação dessa versão peculiar da língua lusa que usamos… pois foram três séculos de tupi como língua oficial e habitual, para depois sofrermos a imposição artificial e súbita do português pelas autoridades. Mas no mesmo momento em que mencionava isto, Flusser sempre acrescentava que, por outro lado, nosso ambiente intelectual, marcado pela indiferença, era talvez o pior do mundo para a filosofia, porque aqui toda polêmica afundava numa almofada fofa de silêncio e acabava por desaparecer.
Flusser atribuiu isto, essa indiferença intelectual brasileira, às características da natureza (em sentido geográfico mesmo) deste país, cuja vastidão não permite sempre aos homens percorrerem uma variedade grande de ambientes… circula-se por longas distâncias sem que a paisagem mude.
Pode ser. Mas não creio.
Homogeneidades e heterogeneidades percebidas em uma paisagem dependem demasiadamente dos filtros pessoais com os quais a captamos. Faltou a ele compreender o processo histórico de formação cultural desses filtros de percepção que caracterizam o brasileiro. Sua fenomenologia, em geral excelente, neste caso específico não deu conta de captar traços que historicamente se assentaram na formação do brasileiro pela sua história política, social e econômica.
Mas deixemos de lado um pouco os meus referenciais maiores, e retomemos aqueles dois referenciais tão caros às esquerdas brasileiras que mencionei: Marx e Maquiavel. De que modo essa indiferença brasileira nos afetou a leitura desses dois autores?
Crítica proudhoniana a um ponto fraco de Marx,
e a sua intensificação entre os leitores brasileiros
No caso de Marx, nossa herança maldita de uma tendência à indiferença, à dessensibilização em relação aos que são diferentes de nós, nos faz tendermos a destacar um detalhe muito específico de sua teoria, decorrente do seu conceito de luta de classes — aliás a meu ver trabalhado de maneira mais realista e menos exclusivamente mítica, além de mais humana (e com isto quero dizer passional, e não moderada) por Proudhon.
A comparação entre Proudhon e Marx neste aspecto, aliás, levou o inicialmente anarquista Georges Sorel — defensor assumido e pouco ponderado da utilização de mitos políticos — a acabar valorizando mais Marx que Proudhon quanto a esta questão (posição oposta à minha). Importa notar que a teoria de Sorel com o tempo foi se deslocando para fora do campo anarquista, e sendo apropriada por defensores do absolutismo monárquico.
Mas que detalhe é este, afinal, que na teoria de Marx decorre do seu conceito de luta de classes, e que, em nossa hospedagem da indiferença do opressor passamos a ressaltar como se fosse algo central? — O detalhe é a ideia de que, em vista de estarmos em uma espécie de “guerra” (a luta de classes), para realizarmos nossos objetivos torna-se válido sermos indiferentes em relação ao caráter humano (ou até mesmo em relação ao caráter de seres vivos) dos nossos adversários (“inimigos”) e até mesmo daqueles que, não sendo propriamente adversários, não estão clara e assumidamente do nosso lado na luta.
Deste ponto de vista, qualquer um que atue por exemplo provisoriamente junto a nós, mas não se caracterize como “um de nós”, passa a ser visto como coisa, como “ferramenta”, “instrumento”, mero “duto” ou “canal” das nossas ações, objeto cujas opiniões, vontades, desejos etc. no fundo simplesmente não são relevantes. Passamos a tratá-los exatamente como… os escravos negros e indígenas eram tratados no período colonial no Brasil.
Soma-se a isto, muitas vezes — como se pudesse justificar tal atitude — o discurso de que tantos séculos sofrendo essa indiferença tornaria válido inverter as posições. Ser indiferente agora em relação aos que demonstram apego à ordem instituída ou aos valores burgueses em geral. Ou seja: o discurso da vingança.
Mas por que esse sentido de vingança ganha corpo combinado a essa atitude?
Porque ele também é produto da mesma hospedagem da indiferença dos opressores históricos: o direito e a justiça, no Brasil, historicamente estiveram sempre indiferentes à imensa maioria da população oprimida pelas forças políticas e econômicos.
Sobre vingança e justiça em um bang-bang com Clint Eastwood
Até bem pouco tempo, em termos históricos, simplesmente não havia acesso à justiça para a imensa maioria da população — e a bem da verdade, em inúmeras esferas do direito, continua não havendo esse acesso. Sob inúmeros aspectos, a justiça e o direito são — ou pelo menos pretendem ser, enquanto invenção das civilizações humanas — justamente o oposto da vingança, seja ela dirigida contra quem nos prejudicou ou contra um bode expiatório qualquer. Um processo judicial pretende ser o oposto de um linchamento, por exemplo.
Não sei se consigo uma forma melhor de explicar isso do que recomendando que as pessoas assistam ao filme A marca da forca, com Clint Eastwood — e que assistam a esse filme pensando no importante personagem do juiz (que contrata o personagem de Eastwood como xerife), como se esse juiz fosse uma espécie de educador. Um educador agressivo que, em um território regido por um caos de vinganças e linchamentos, de ausência de justiça, age ele próprio injustamente apenas para provocar no personagem de Clint Eastwood algum senso de justiça. O juiz, no filme, quer tornar o seu xerife capaz de realmente civilizar o território e fazer nascer uma justiça que, na verdade, ainda não existe.
A questão toda a que estou me referindo, aqui, é que na verdade nem mesmo uma situação de caos, coalhada de vinganças e linchamentos, como a daquele filme, justifica uma atitude que se utilize dos mesmos procedimentos caóticos para, supostamente “civilizar”.
Esse tipo de atitude (como a do juiz, usando injustiça sobre outros para provocar no personagem de Clint Eastwood o senso de justiça… por exemplo, condenando à forca jovens que não mereciam isso, além de outras atitudes do gênero) é bom apenas para criar tensão dramática em filmes, por exemplo de bang-bang. A realidade é sempre ainda mais dura e crua que isso. Nela, esse tipo de atitude — seja qual for o discurso que a “enverniza e lustra”, e ainda que o praticante sinceramente acredite nesse seu discurso — só serve mesmo, a bem da verdade, como pretexto para exercícios de poder e para agradar seguidores, dando-lhes a oportunidade de descarregarem sentimentos de vingança.
Mas de qualquer modo, nesse filme, podemos ao menos acompanhar um certo aprendizado do personagem de Clint Eastwood: ele aprende a discernir a diferença entre o sentimento de vingança e o (ainda que utópico, ainda que meramente ideal) sentido do que seria autenticamente justiça.
Como a questão da justiça entra na crítica proudhoniana
ao velho oeste selvagem de Marx e marxistas brasileiros?
Justiça! — justiça não é o que está simplesmente nas leis. Nem nas decisões de juízes.
É um tipo de sentimento que a humanidade criou para si, construiu em suas sociedades, ao longo da história, e foi aprendendo a cultivar nas mais diversas civilizações, afinando-o aos poucos em todas as suas variantes pelo diálogo entre as civilizações. No mundo atual, podemos facilmente entrar em contato com esse sentimento expresso em diversas culturas que o desenvolveram. Destarte o sentimento se reproduz, se multiplica, se espalha. Mesmo tendo vivido tão pouco disto no Brasil, com um pouquinho de senso crítico, civilidade e sensibilidade podemos já facilmente sentir quando algo é justo, e quando não é.
Este era, aliás, o um dos conceitos assumidamente míticos que Proudhon pretendia utilizar como ferramenta mobilizadora para as lutas sociais — sempre defendendo paralelamente também o que ele chamava de razão coletiva. O conceito proudhoniano de razão coletiva se aproxima de uma versão coletiva do que estou chamando mais simplesmente de senso crítico. Um senso crítico coletivizado sob o signo de uma cultura do constante debate franco e aberto sobre tudo.
Outro mito que para Proudhon parecia mobilizador e útil, e que fazia par com o da justiça logo abaixo em importância, era o mito da dignidade humana — da pessoa individual enquanto digna de respeito, por exemplo às suas opiniões.
O conceito de justiça entretanto lhe parecia superior. Era um conceito que envolvia em si a noção de equilíbrio — coisa que não está presente nos conceitos de dignidade humana e luta de classes — e que parecia apto para, além disso e ao mesmo tempo, mobilizar um poderoso sentimento coletivo capaz de animar a luta. E animar a luta encaminhando-a ao mesmo tempo na direção da razão coletiva. Isto é, na direção de um aprofundamento ainda maior do senso crítico, da civilidade e da sensibilidade das coletividades de trabalhadores da época em relação às diferenças entre eles, e à importância de cultivarem o debate democrático com respeito às divergências.
Quanto à luta de classes, Proudhon (ao contrário de Marx e Georges Sorel), logo desistiu de sua mitificação, receoso de possíveis efeitos danosos para o próprio movimento operário. Passou então a evitar a mitificação desse conceito, mantendo-o no nível de um mero instrumento capaz de efetivamente orientar na compreensão (e inclusive na descrição empírico-fenomênica mesmo) da realidade social, com todo o seu caráter complexo e multifacetado — ao invés de simplificá-la em traços simples e grosseiros capazes de mobilizar as paixões (porque um mito produz exatamente essa poderosa simlificação apaixonante, e uma mera “ferramenta” não).
Proudhon procurou, neste sentido, orientar-se pelo conceito de luta de classes não como mito mobilizador, então, mas como ferramenta útil para compreender de fato como os modos e objetivos diferenciados e multifacetados de luta em cada um dos dois polos, das duas classes em luta, podiam se integrar mais eficazmente ou menos nas unidades de ação opostas que caracterizam essa luta. Mesmo assim, o conceito de luta de classes permanece para ele um conceito instrumental. A realidade não pode e não deve jamais ser reduzida apenas ao que esse conceito (instrumental) desreve dela, ao fazer abstração de todo o resto.
Este modo menos dogmático e mais instrumental de lidar com o conceito de “luta de classes” lhe serviu, por exemplo, para compreender mais claramente todo o debate entre os inúmeros posicionamentos no seio do operariado socialista da época — debate em que operam divergências reais que ultrapassam a unidade “classe proletária” na tal “luta de classes”, unidade que se compõe precisamente dessas divergências, e não como algo para além delas ou superior a elas.
Isto permitiu a ele compreender melhor também, evidentemente, as estratégias pelas quais poderia emergir democraticamente uma unidade de posição resultante dessa diversidade, ao invés de promover, com a mitificação da luta de classes, a imposição de uma unidade artificial com uma base passional agressiva, que tendia aos sentimentos de vingança e ódio — caminho levado adiante por muitos marxistas e, a bem da verdade, muitas vezes pelo próprio Marx em pessoa.
Tais sentimentos de vingança e de ódio que tenderiam a acompanhar a mitificação da (nem por isso menos real) luta de classes, poderiam não se dirigir apenas contra os poderes estabelecidos, mas também contra os próprios dissidentes e divergentes da orientação hegemônica no seio do operariado — como de fato se dirigiram, sob a orientação perniciosa de Marx. A orientação mitificant em relação à luta de classes acabou, como se sabe muito bem, promovendo uma verdadeira caça-às-bruxas contra os divergentes no próprio seio das lutas trabalhadoras. Violência da qual temos sequelas até hoje nas esquerdas políticas em todo o mundo… e no Brasil ainda mais, em função da já esclarecida hospedagem, por parte de nossos esquerdistas populares, da opressiva indiferença histórica da justiça oficial.
Resumo da história: aqui, no Brasil, sempre sempre radicalizamos e exageramos, à esquerda, o que Marx tinha de pior. Seu lado mais autoritário e pernicioso inclusive para a própria expressão crítica e refletida (e antoconstrução) dos posicionamentos das classes trabalhadoras. E continuamos fazendo muito disso, incessantemente. Por vezes até mesmo a ponto de desencadearmos enormes distorções no pensamento marxiano original, levando a mitificação da coisa ainda mais longe do que ele próprio a levou, e abafando o que ele teria de melhor (e inclusive de mais radicalmente revolucionário) a oferecer, que está longe — muito longe — desse aspecto passional, carregado de uma espécie de ódio vingativo recalcado sob a capa de uma indiferença estratégica e instrumentalizante em relação a quem não consideramos como um dos “nossos”.
Crítica a uma leitura que se costuma fazer de Maquiavel no Brasil
Em relação a Maquiavel enquanto referencial, as distorções produzidas em sua leitura por essa hospedagem do opressor nas esquerdas brasileiras são muito maiores, mais evidentes e por isso mesmo, mais fáceis de se esclarecer. Trata-se pura e simplesmente da ideia — que jamais esteve realmente presente em Maquiavel — de que os valores humanos (o campo da ética) estariam completamente fora dos referenciais da ação política, valendo apenas a consideração da eficácia em vista de objetivos que, então, não seriam mais sequer questionados, mas apenas colocados como que axiomaticamente , sem maiores considerações.
Esta leitura de Maquiavel é verdadeiramente absurda, de tão superficial e medíocre para um pensador que colocou acima de tudo o valor moral do patriotismo, oferecendo-o a uma nação italiana desunida para a qual ainda não existia a pátria que viria a chamar-se Itália — um pensador que, como um estadista sem governo, procurou mobilizar aquela nação desunida em torno do projeto de uma criação política macroscópica, que seria benéfica, para não dizer a longo prazo salvadora, para todos aqueles latinos de língua italiana, com sua frágil cultura da liberdade republicana em pequenas cidades livres, em meio a uma Europa de Estados monárquicos imensos e poderosos, com seus exércitos nacionais.
Por detrás do autoritarismo manipulador tão divulgado de Maquiavel, fervem uma paixão (ética) pela liberdade e uma esperança republicana cuidadosamente articulada em seus textos para o futuro da Itália. Eficácia e ética colocam-se para ele em dois planos diferentes, mas que não deixam de interagir. Um o da observação crua e desiludida dos mecanismos práticos habituais da ação política (hoje diríamos cientificamente). E outro o da orientação ética que deveria reger essas ações de maneira realista e eficaz (e nem por isso menos intensamente ética), no caso firmando-se nos valores do patriotismo e da liberdade republicana.
A interação entre os dois planos é orientada pela ética, pelos valores, deles é que parte essa interação. O plano da eficácia, firmado inicialmente sem o outro plano, oferece por isso mesmo o realismo desiludido, distanciado e crítico, de modo que no momento da interação, ele mede os limites e possibilidades efetivos daquela ação ética mapeando-lhe os caminhos para evitar-lhe o erro, a ilusão e o fracasso.
Isto é que é Maquiavel, e não um simplório apologista da antiética na política, incapaz de tirar de sua realidade o melhor proveito — melhor para o bem público, no sentido ético mesmo.
O simples apologista de uma prática política sem ética ele provavelmente compreenderia na verdade como um tolo… assim como não deixa de ser um tolo, para ele, o príncipe incapaz de compreender os sentimentos do povo que pretende liderar. Pois no jogo das forças políticas, o bem público é aliado do povo, e não dos poderosos. Tolice aliás crônica para os dessa espécie — os príncipes — e que cedo ou tarde acaba por vitimá-los. Que Maquiavel apesar disso tudo ainda demonstre também, claramente perceptível em sua linguagem, em sua retórica, um contraditório fascínio pelo desprendimento moral típico do pathos do tirano, isto não afeta a estrutura coerencial de sua teoria.
Diria que que esse fascínio, que ele felizmente conseguiu afastar da estrutura lógica de seu raciocínio e manter apenas no nível da retórica, se deve a uma curiosa combinação. De um lado sua paixão pela liberdade (aqui escapando de seu conceito republicano da mesma rumo a um sentido mais próximo daquele que viria a ser o de Hobbes). De outro lado, uma certa hospedagem do opressor de que ele próprio parece ter sido vitimado, sobretudo depois de ter sido inclusive preso e torturado pelos Médici, família dominante na política de sua cidade… — algo como aquele estranho sentimento de identificação, que muitas vezes ocorre, das vítimas de sequestro ou tortura com seus sequestradores ou torturadores, patologia já bem conhecida dos psicólogos.
Nas esquerdas brasileiras, frequentemente Maquiavel é adotado como uma justificação teórica para a pura e simples ausência de ética nos procedimentos em relação aos que não estão claramente entre “os nossos” na luta de classes (o que inclui a desgraçada caça-às-bruxas, ou patrulhanento ideológico, contra divergentes no mesmo polo da luta).
Os velhos valores maquiavelianos (patriotismo e liberdade republicana) são substituídos aqui por um conceito que permanece ocultado e afastado de qualquer efetiva reflexão, sob uma capa tão mítica quanto a do conceito de luta de classes — um conceito que por isso mesmo, por essa mitificação comparável à do conceito de Iuta de classes, não tem condições de se articular realisticamente com o nível da eficácia, e permanece como uma orientação meramente utópica, que adquire o tom de um pretexto bem pouco trabalhado ou elaborado: estou falando do conceito-valor de revolução popular.
Nossa hospedagem em nós mesmos da indiferença histórica por parte das forças políticas e econômicas está, por assim dizer, na medula dessa nossa leitura medíocre de Maquiavel, na qual todos se tornam meros instrumentos para um objetivo cujo caráter ético é pouca coisa mais que um pretexto.
Assimilamos a ele próprio, enquanto teórico, aquilo que ele justamente denuncia na atitude dos tiranos (como bem observa Rousseau ao comentá-lo), e adotamos isso para nós como modelo parcial para uma ação nossa que, por outro lado, é orientada por uma leitura (também distorcida como mencionamos) de Marx. Recolhemos e concentramos num só modo de agir o pior que encontramos em um e o pior que podemos projetar — por incompetência de leitura — no outro.
Crítica proudhoniana a um ponto fraco de Bakunin
Para que eu não deixe faltarem faíscas de toda essa minha crítica também na direção de teóricos que estão bem mais próximos de minhas próprias posições (embora já tenha feito a crítica a um ponto de Flusser, tão próximo de mim que criticá-lo já é quase fazer uma autocrítica), falemos um pouco aqui de um outro autor que que está também entre os que mais amo: Bakunin. Leia-se o brilhante texto com o qual se lançou no centro das polêmicas socialistas na época em que conviveu com Marx entre os jovens hegelianos: A reação na Alemanha, escrito sob o pseudônimo de Jules Elisée.
A leitura desse texto — denso, mas claríssimo e de uma linguagem inclusive saborosa, atraente — devidamente acompanhada do estudo de seus efeitos sobre os leitores socialistas na época, é mais do que suficiente como um exemplo para compreendermos o que significa ser, no sentido mais forte possível do termo, radical, sem ceder ao fanatismo e acima de tudo, sem por isso deixar de respeitar eticamente os adversários (ou mesmo inimigos) enquanto seres humanos.
O próprio Marx, na época, certamente não negaria essa avaliação — inclusive chegou a ser influenciado, e bastante (como muitos jovens socialistas alemães na época) por esse texto de Bakunin (aka Jules Eliée). Só que Marx foi influenciado justamente por aquilo que vou em seguida criticar no texto de Bakunin.
O que tenho a criticar é que Bakunin, nesse seu texto de inauguração como pensador revolucionário radical, mesmo valorizando fortemente a curiosidade humana e o aprendizado, julga a ponderação crítica da razão, pesando prós e contras, avaliando as coisas de modo refletido, como um procedimento típico de intelectuais conservadores.
Por que? — Porque julga que essa ponderação racional de algum modo contém, abafa, diminui a força, o impulso, a potência com que a pessoa se atira na ação política revolucionária. Como se a impulsividade cega e irracional fosse algo valoroso e importante para as esquerdas revolucionárias… talvez Bakunin tenha ido nessa direção por atender melhor certos sentimentos de impaciência e de emergência habituais na juventude. Entretanto, será que por compreendermos essa impaciência e essa emergência, devemos mesmo nos deixar dominar por ela e incentivá-la?
Esse texto de Bakunin, que eu saiba, nunca mais foi desmentido por ele pelo resto da vida, mas apenas completado com alguns novos conceitos, com uma maior influência de Proudhon e com muita, muita experiência revolucionária prática.
A influência proudhoniana, aliás, levou Bakunin a se tornar um pensador crescentemente contraditório, pois para Proudhon a força coletiva, mobilizada por mitos de forte impacto passional, não exclui necessariamente a razão coletiva, construída por meio do debate constante entre consciências críticas com posicionamentos opostos — razão coletiva que na verdade, segundo Proudhon, é essa própria condição de divisão em oposições que se mantêm em constante debate.
Bakunin não soube desconectar a força coletiva da noção do que seria um sentimentode certeza inquestionável similar ao da fé — uma espécie de fé revolucionária. E como a razão coletiva descrita por Proudhon produz o questionamento e a reflexão constante quanto aos rumos a seguir (durante o próprio processo em que vão sendo seguidos, inclusive), isto para Bakunin, parecia uma proposta despotencializadora para os movimentos políticos.
Entretanto Proudhon, apesar de ateu declarado e assumido, e de revolucionário radical, constantemente lançado na cadeia como agitador por seus livros, era curiosamente membro aceito na maçonaria francesa. Isto significa que tinha acesso a estudos de sabedoria pagã antiga que não deixavam de estar presentes entre os maçons. Significa por isso mesmo que compreendia o sentido inteiramente diferente da “crença” dos antigos pagãos gregos e romanos em suas divindades.
Para os povos da antiguidade não existia a separação judia, cristã e muçulmana entre crer e criar. As histórias míticas que se contavam dos deuses gregos na antiguidade eram, para aqueles antigos gregos, assumidamente uma criação humana, uma invenção… mas pelo empenho coletivo ritualístico e sinérgico em torno daqueles mitos, eles passavam a adquirir o peso de uma realidade para todos os envolvidos, o que equivale a dizer que, para todos os efeitos, tornavam-se reais para aquelas pessoas que se empenhavam em cultuá-los.
Pois bem: sem ser pagão, ou cristão, ou de qualquer outra religião (e assumindo inclusive uma postura estranha, polêmica e conflituosa em relação à própria maçonaria, embora estranhamente tenha acabado aceito nela), Proudhon no entanto parece ter sido capaz de assimilar esse sentido de um empenho sinérgico coletivo em torno de algo — de modo a dar a esse algo uma crescente força de realidade.
Na verdade, o contato com fontes de estudo cultivadas entre os maçons pode ter-lhe fortalecido a reflexões nesse sentido, mas elas eram mais antigas nele. Já vinha examinando essa questão por seus próprios estudos desde bem jovem, muito antes de ter entrado para a maçonaria, Proudhon descrevia aproximadamente dessa maneira esta estranha entidade (“instituição imaginária”, diria Castoriadis) a que chamamos de “sociedade”.
Essa espécie de unidade — a “sociedade” ou união de múltiplos agentes associados, seja qual for o tamanho do grupo — é formada então pelo empenho sinérgico de uma quantidade de indivíduos na construção ou destruição de algo (através do trabalho ou da guerra, respectivamente). E parece adquirir uma realidade e uma força que supera em muito a mera soma das forças dos indivíduos envolvidos, se os consideramos um a um isoladamente.
Esse diferencial de força produzido em um grupo de indivíduos pela sinergia na interação entre eles — como Proudhon demonstrou apoiado em demonstrações já realizadas antes dele por Adam Smith — é algo que pode ser inclusive medido na produção de uma equipe de trabalho, por exemplo. Nem por isso é necessário, para que tal sinergia ocorra, que o grupo inteiro tenha uma mesma fé ou certeza.
A sinergia é de fato estimulada pela existência de um objetivo comum para os esforços construtivos (ou destrutivos, como em uma guerra), mas é produzida pelas interações entre as personalidades, os sentimentos e as ações distribuídas em funções diversas e complementares… sua força motriz — como muito bem observa Proudhon — é principalmente a organização do trabalho, e não alguma crença ou certeza, à maneira daquela que mobiliza os fanáticos.
Um mito mobilizador das paixões coletivas, portanto, não seria para Proudhon algo em que as pessoas simplesmente acreditariam (ilusoriamente): seria uma assumida produção do imaginário coletivo — para recorrermos à linguagem de Castoriadis — mas nem por isso menos digna de empenho, de cultivo intenso, apaixonado e sinérgico por parte da coletividade dos trabalhadores. Empenho que não seria em nada diminuído pelo cultivo paralelo e simultâneo da razão coletiva, dos debates críticos e da reflexão apaixonada (…ao contrário do que Bakunin parece ter imaginado, por não ter a mesma formação que Proudhon quanto à história das religiões e ficar preso ao modelo cristão, por mais que tenha se prendido a esse modelo justamente para criticá-lo).
Em suma, o texto A reação na alemanha, de Bakunin, apesar de suas brilhantes contribuições e intensas repercussões a história dos movimentos revolucionários na época, embutiu inadvertidamente em toda essa influência o que hoje chamaríamos de um cavalo-de-troia: o virus do antiintelectualismo.
E esta é mais uma praga que assola as esquerdas brasileiras, transmitida a elas não diretamente por Bakunin, mas indiretamente por sua influência sobre outros pensadores socialistas, a começar por seu paradoxalmente feroz adversário Karl Marx. O preconceito e a desconfiança em relação à reflexão e àqueles que procuram pensar a fundo a respeito das questões políticas. É alias uma praga internacional.
Mas a incubadora maior dessa praga no nosso país não está exatamente na influência de teóricos: está na nossa história, e não é nada difícil de detectar. Está em nossa experiência histórica de uma educação formal de alto nível sempre oferecida apenas a elites endinheiradas. Como resultado, desenvolveu-se a (tão ridícula quanto perigosamente perniciosa para as próprias esquerdas) associação entre o intelectual, o estudioso, e a classe burguesa… ler muito e ter bom repertório linguístico, se não tivermos muita, mas muita cara de povo mesmo (como tem por exemplo o Pablo Capilé), tende a nos tornar, para muitos, imediatamente suspeitos de contaminação burguesa…
A praga tem inclusive uma infeliz penetração em certos intelectuais assumidamente “de esquerda”, e — é realmente de pasmar — até entre filósofos. A principal vítima da acusação de contaminação burguesa pelo simples (e precioso) ato de pesar prós e contras criticamente costuma ser — por absurdo que pareça, em um país tão carente desse tipo de profissional como o nosso — nada menos que o educador, o professor.
Circula em certos meios uma espécie curiosíssima de apologia à disseminação popular da estupidez (claro que não nesses termos, coloca-se a coisa em palavras mais “bonitinhas”). Como se a generalização da ignorância e da irreflexão fosse de algum modo sinônimo de igualdade — afinal, dizem os que argumentam nesse sentido, não é democrático que alguém saiba mais que os outros e, portanto, se dedique a tentar ensinar-lhes alguma coisa…
Por uma república pedagógica
Eu de minha parte quero muito que me ensinem de tudo… e receberei todo e qualquer ensinamento com meu muito querido senso crítico, cultivado carinhosamente ao longo de toda a minha vida. Jamais — jamais! — cega e acriticamente.
Quero muito mesmo que me ensinem sobretudo aquilo que me desafia e estimula o senso crítico. E precisamente porque tenho meu senso crítico já bastante cultivado, pouco me importa, aliás, se o ensinamento vem de filósofo, de burguês, de padre, de político filhadaputa, do Capilé ou de zé mané de sei lá onde. Desde que realmente tenha conteúdo de valor, denso, consistente, digno de uma boa reflexão, e mexa com minha cabeça me provocando a pensar. Se vier de alguém que sabe como ensinar realmente bem, alguém experiente e jeitoso nisso, que “tem as manhas” de fazer o papel de educador, no sentido de realmente provocar o aprendizado a se desenvolver por si mesmo e criticamente, sem pura e mera “fazeção de cabeça”, sem pura e mera manipulação, inclusive com a capacidade de autocrítica, então neste caso por que não? — Ainda melhor, ora bolas!
Todos nós sabemos mais (e também menos) uns que os outros. Uns sabem disto, outros daquilo. Alguns se especializam precisamente em passar adiante o que aprendem, ensinar — é o meu caso, minha paixão inclusive, por isso é que sou professor e filósofo, duas atividades dedicadas justamente a isso. Sou bom nisso? Não sei, não me cabe julgar. Mas tento, e tenho experiência em tentar sempre fazer isso da melhor maneira que posso.
Não quero colocar o meu tipo de atividade (educacional) acima dos outros. As atividades humanas têm sempre a sua importância, que varia de uma a outra e na mesma atividade de acordo com o contexto… Mas quanto à política, no meu entendimento — e acho que é a última coisa que tenho a dizer aqui neste artigo — comunismo, socialismo estatal ou libertário, democracia direta, autonomismo, seja o que for: não há profunda e disseminada liberdade no que não for ao mesmo tempo uma república pedagógica.
A antiga Atenas, ao menos para os seus em torno de 40 mil cidadãos com acesso à Assembleia Popular onde decidiam as coisas… era por exemplo uma república pedagógica. Sua política estava quase inteiramente estruturada de modo que dependia centralmente da educação e constante reeducação desses cidadãos uns pelos outros (embora Sócrates, deliciosamente crítico, achasse que ainda não era o bastante), e inclusive nunca na História os educadores foram tão valorizados em seu papel educacional e sua importância no campo político. Até a arquitetura da cidade, sua planificação urbana, naquela democracia direta, foram pensadas pedagogicamente.
Falo de uma república centrada precisamente na constante e incessante educação por todos os meios, formais e principalmente, acima de tudo, informais… no sentido de uma educação crítica… etc. etc. etc… Não preciso descrever mais aqui essa educação que defendo como miolo de liberdade política. O que já foi dito neste artigo me parece mais do que suficiente para passar uma primeira ideia básica da coisa… — e de educação meramente informativa, sem desenvolvimento do senso crítico, mal se pode considerar como educação. Não vou me aprofundar aqui quanto a isto, acho que já disse bastante.
Digo apenas, para encerrar, que a pedagogia de Sócrates (lido separadamente de Platão, talvez até em oposição a ele) pode ajudar em alguma coisa — embora sozinha não baste, porque os conteúdos (as informações) precisam ser valorizados também (senso crítico sem aplicar-se a conteúdos não é nada, fica na mera masturbação intelectual negadora, que não nos ajuda tando assim).
É isso aí, mais ou menos.
Fica registrado pra pensarmos a respeito.